Profeta da Liberdade e da Libertação–Hélder Câmara
Dom, s.m.; título nobiliárquico conferido aos dignatários eclesiásticos romano-católicos. É interessante que o povo chamava Hélder de o dom. Tenho a impressão que isso está mais para Marcel Mauss (Essais sur le don), para quem o ato de dar gratuitamente confere um poder (mana) que é a um só tempo mágico, sagrado, abertura imanente da transcendência. Esse era o dom, dom Hélder Câmara. Como poucas personagens da segunda metade do século XX teve a oportunidade de indicar que, após a Segunda Guerra Mundial, não haveria condições de ser cristão sem oferecer um testemunho profético disso no mundo. Ele foi um homem da Igreja Apostólica Católica Romana. Acreditou que a igreja não podia imiscuir-se dos compromissos com a sociedade do seu tempo. Por isso, aceitou o desafio que lhe fez um bispo francês que viera participar do Congresso Eucarístico Internacional, no Rio de Janeiro. Este bispo lhe disse – conta a lenda: porque não emprega essa energia na questão das favelas? Ele empreendeu a energia sim, e planejou um conjunto habitacional, entre a Gávea e o Leblon, com oito blocos, escola e igreja para a população de favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro. Nasceu assim a Cruzada São Sebastião. Incomodado com o modelo eclesiástico medieval que perdurava (perdura?), no qual ubi episcopo ibi ecclesia, e para o qual a unidade eclesiástica fundamental é a diocese, ele esforçou-se para construir a noção de pastoral de conjunto. Notou com isso a necessidade de uma conferência episcopal nacional, e foi assim um dos principais articuladores da criação da CNBB. Sua postura eclesial e teológica o levou a ser uma das mais importantes presenças no Concílio Vaticano II. Ali exerceu grande influência para que os temas daquela contemporaneidade (1962-1965) não deixassem de ser a anima mundi, a evangelii lumem. Por isso, sempre estimulou o estudo dos documentos do Concílio, em especial sua nova concepção eclesiológica e pastoral. Durante o período que precedeu o golpe militar e a instalação do regime das trevas dom Hélder apoiava as iniciativas integralistas. A morte de um assistente seu, o padre Henrique, foi fundamental para sua conversão. Ele compreendera que a ditadura não era uma tentativa de renovar a política nacional em favor das brasileiras e brasileiros, porém era uma arma também anti-pobres. Não era contra a pobreza, e sim mais um mecanismo de eliminação dos pobres. Nasce daí sua solidariedade efetiva com o mundo dos pobres e a sua libertação. Numa das missas que celebrava para comunidades, na Catedral do Recife, recordava: Em muitas comunidades que vou celebrar o povo reza o salmo 23, “nada me faltará”, e eu olho em volta e vejo que está é faltando tudo... A noção exata da carência, da miséria – ao final da vida ele provocou uma campanha para a superação da miséria – era o elemento chave para um novo modo de ser igreja, um novo modo de fazer teologia. Com Pedro Casaldáliga participou da Missa dos Quilombos e fez aquela célebre interpretação de Louvação a Mariama: Mariama, mãe de Deus e nossa mãe... nem precisa ir tão longe, como no teu hino. Nem precisa que os ricos saiam de mãos vazias, e os pobres de mancheias. Nem pobres, nem ricos, Mariama! O dom celebrou o seu jubileu de ordenação no Rio de Janeiro, na igreja Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado. Dom Eugênio Salles presidiu a celebração. Durante toda a missa não deu a palavra ao querido dom. Ao término ele disse que dom Hélder podia falar. A assembléia gritava: fala dom Hélder! E ele, com seu tamanico, jeitinho meigo e inconfundível sotaque disse, balançando aqueles frágeis braços no ar: não preciso falar, os meus olhos falam, meus braços falam, meu corpo inteirinho fala... E nada mais disse. Todos entenderam tudo. E como num responsório de uma salmodia, gritando, e quase cantando, disseram: dom Hélder, profeta da América Latina! Neste ano o dom completaria um centenário. Porém, de que vale um centenário para quem nos abriu os sonhos de beleza e partilha da Eternidade!
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