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OS NOVOS CAMINHOS DA AMÉRICA LATINA
Ano 4 - Nº 14
Fevereiro de 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
A Canção da Bolívia


Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr
Belém - O presidente da Bolívia, Evo Morales, fala durante encontro para discutir a integração da América Latina

Por: Oscar Tafetáni

É raro o nome Evo. Séculos de história sagrada do Cristianismo deram à palavra Eva uma conotação feminina. Eva, a mulher original. Eva, a pecadora original. Eva, como uma parte do gênero humano criadora da vida, ao mesmo tempo negada e encoberta, sempre submetida ao ditado do Pater masculino.
É raro o nome Evo.  Mas Maria Mamani, uma camponesa Aimara, a quem lhe tinha chegado o gesto (antes mesmo da palavra) de um presidente argentino chamado Juan Perón e (principalmente) o de sua esposa chamada Eva, decidiu chamar a um de seus filhos Juan Evo Morales. Simplesmente assim.
Evo Morales, dirigente cocaleiro, um dos três filhos de Maria Mamani que conseguiu sobreviver (porque os outros quatro se perderam muito cedo, vítimas das doenças da pobreza), meio século depois daquela simples decisão nominativa de sua mãe, conseguiu que a maioria do povo boliviano, o povo que o elegeu presidente em fins de 2005, o ratificasse agora nas urnas, e do melhor modo possível: votando o SIM a uma histórica reforma da Constituição, votando o SIM contra o latifúndio e seus defensores, votando o SIM a um  programa  no qual,  pela primeira vez na história da América os habitantes originários, os autênticos filhos da terra, decidem tomar o destino em suas mãos.

Chicho e Evo, comparados
Salvador Chicho Allende Gossens Castro Uribe, médico pertencente a uma elite de liberais e maçons que alimentaram o radicalismo e, logo depois, o socialismo no Chile, pode chegar em 1970 – depois de recorrer um longo caminho e sofrer não poucas derrotas – à Presidência desse país, como líder da coalizão chamada Unidade Popular.

À semelhança do que se passa hoje na Bolívia, logo o Chile ficou dividido em dois. De um lado esta instável coalização que tinha levado Allende à Presidência, com claro apoio popular e dos trabalhadores. Do outro, os setores médios e a “aristocracia” econômica e política, comprometida com as empresas norte-americanas e com o poder dos grandes proprietários de terras.

Com seu país partido e com um permanente complot  golpista apoiado por Washington (lembremo-nos que América Latina era um vulcão ardente cravado no meio da Guerra Fria), a via chilena para o Socialismo tinha poucas possibilidades de se consolidar e prosperar.
A pior confirmação deste prognóstico chegou num nefasto dia 11 de setembro de 1973, pelas mãos de Augusto Pinochet e de um grupo de militares treinados e obedientes, a serviço do Império .

Evo Morales Ayma, o filho de Maria Mamani (por que não resgatar sua linhagem?) encabeça o que poderíamos chamar, embora pareça leviano, a via boliviana para o Socialismo.

Em que consiste? Consiste em voltar a dar às palavras muito queridas da mitologia ocidental – como democracia --  seu sentido profundo. Porque assim como a democracia ateniense – primeira da História – tinha o vício natal de deixar fora dos Direitos a humanidade escravizada, assim também as democracias bolivianas paridas pela Independência – e até o Grito de Chuquisaca, de 25 de maio de 1809 – tinham a imperfeição de ter deixado fora das decisões e do governo as etnias originárias.

Esta, cremos, é a grande diferença que existe entre a malograda via chilena para o Socialismo e esta prometedora e vibrante via boliviana que hoje lidera Evo Morales.

Deus e seus Distritos
Em todo o Departamento de Santa Cruz de la Sierra, dilapidando fundos e recursos que poderiam ter sido empregados para melhores fins, a oposição fechou fileiras contra o projeto “ateu”, “abortista” e “desagregador” do MAS e de Evo Morales.

“Deus vota NÃO” foi a atemorizante consigna lançada na oportunidade. Séculos de opressão, de ignorância e servidão, numa única frase.
E Deus votou NÃO em Santa Cruz de la Sierra, efetivamente, assim como em Tarija, Beni e Pando. Claro que Deus votou SIM em La Paz, Oruro, Potosí e Cochabamba, que são os distritos mais populosos e determinantes. Em Tarija, até que não se conheça o escrutínio decisivo, ainda não se pode saber como Deus votou.

Evo Morales Ayma – o filho de Maria Mamani – conseguiu que o povo boliviano, seguindo as regras da democracia ocidental, lhe desse o SIM aos 411 artigos da nova Constituição.

Também conseguiu que, por ampla maioria, fosse aprovada uma Reforma Agrária que impedirá a propriedade individual de terras de mais de 5.000 hectares.
Feita a Reforma Agrária e nacionalizados os recursos minerais e energéticos, Bolívia, este país que os analistas internacionais, até há pouco, qualificavam de “inviável”, está dando ao mundo um exemplo de dignidade e valentia incontestável.

Não podemos predizer o futuro. Como o Céu vai votar nas próximas eleições. Ou, que decisões a Crise vai tomar, a temível Crise, em relação à Bolívia e a outros países da área.

Sim, podemos, no entanto, saber que o ocorrido até aqui foi muito. E que ter declarado a Bolívia como território livre do analfabetismo, em apenas dois anos de esforço estatal e comunitário, é admirável.

Sim, podemos saber que as etnias originárias do Altiplano e do Chaco, do Ande e da Selva conquistaram uma oportunidade histórica – que ultrapassa este ou aquele governo – de se afirmarem, de falarem com sua própria voz e de tomarem em suas mãos, como já dissemos, o seu destino.
Curiosamente, Morales era o primeiro nome que o cacique Manuel Namuncurá tinha posto em um de seus filhos, nascido em Chimpay. Ao batizar a criança, em 1887, um padre salesiano decidiu mudar o nome  nativo por outro que tirou do santoral: Zeferino.

Quem sabe se esta reaparição de “Morales” em nossa história  não seria uma reivindicação secreta. Talvez uma brincadeira de Deus, que vota nas eleições bolivianas e que – ainda que Einstein reclame – gosta de jogar dados!

(Extraído de Agencia de Notícias Prensa Ecumênica, 09/01/2009)
(Tradução de Zwinglio Dias)

Oscar Tafetáni, jornalista e escritor.