No século XVI, no início do processo da colonização
européia do Novo Mundo, quando a mundialização do sistema
mundo se iniciava (Braudel), se falava dos Marem Tenebrosum. Continuamos essa
navegação no Terceiro Milênio. Na verdade, ainda mais tenebrosa
é a Globalização neoliberal, com suas artimanhas perversas,
que a um só tempo aprofundam a desigualdade social no Planeta – com
todas as suas perversidades socioecológicas – e os seus mecanismos
de dominação militarizada de territórios e regiões,
por meio do poder militar unipolar. Mundo, mundo, vasto mundo... nos ensina Drummond.
É nesse cenário que os economistas informam: a cada dólar
investido do Norte nos países periféricos do Sul, os países
doadores recebem de volta quatro dólares em forma de lucros.
É este o cenário da cooperação internacional. No
campo ecumênico, nos anos de 1960, essa cooperação ecumênica
tinha um caráter dúbio, ambíguo. Por um lado, favoreciam
às alternativas nacionais para a superação das violações
dos direitos civis e políticos, rompendo com as lógicas das ditaduras
militares – os regimes de segurança nacional, sobretudo apoiados
pelos Estados Unidos da América do Norte. Por outro, eram um mecanismo
de contenção do avanço do comunismo. A lógica da
cooperação esteve sempre vinculada às amarras ideológicas
do campo político. Especialmente como formuladas pelo centro do poder,
emanado de Washington, e com ampla influência nos países da comunidade
européia.
Nos anos de 1970, a luta pelos direitos civis e políticos se aprofundou.
O arco ideológico foi modificado e a cooperação ecumênica
sentiu essas alterações. Juntamente às questões
de fortalecimento da sociedade civil, para a redemocratização
das sociedades, na América Latina, a reconstrução dos países
africanos e asiáticos, em suas lutas por descolonização,
e questões específicas como as lutas contra o apartheid na África
do Sul, redirecionaram totalmente a cooperação ecumênica
internacional. O arco da solidariedade das lutas em favor da Justiça
cresceu ainda mais. Além disso, crescia a consciência ecológica
planetária e isto fez com que as duas décadas seguintes tivessem
este apoio consagrado.
Os anos de 1980 e de 1990 foram o do fortalecimento da sociedade civil na América
Latina. Os regimes de segurança nacional foram substituídos pelo
fortalecimento das democracias insurgentes. Em vários países da
América Latina se configuraram revisões históricas e cobranças
de reparação. As afirmações da pluralidade da sociedade
se fizeram sentir. As identidades dos diferentes atores sociais cresceram. Feminismo,
meninas e meninos de rua, afrodescendentes, dentre outros, emergiram como sujeitos
de direitos. As agendas dos direitos redistributivos se uniram às dos
direitos de reconhecimento – ao mesmo tempo em que no cenário internacional
a temática do multiculturalismo se afirmava como uma agenda internacional
necessária (quer pela superação da suposição
do secularismo – que acreditava no fim do papel proeminente das religiões;
quer pelos massivos contingentes migratórios na direção
Sul-Norte).
A queda do muro de Berlim, em 1989, e a alteração do marco ideológico
com o fim do comunismo levaram a uma outra maneira de construir o espaço
e os modelos de cooperação internacional. Talvez, esse cenário
anteriormente descrito e este evento expliquem a tentativa do ciclo das Nações
Unidas de Conferências em favor dos Direitos Humanos ao longo dos anos
de 1990. O ano de 2001, com o 11 de setembro, agregou a essa agenda política
ideológica a questão do terrorismo. Estamos dentro de um cenário
no qual a cooperação internacional encontrou, por um lado, uma
agenda positiva, a disseminação e afirmação dos
direitos humanos, em especial dos direitos econômicos, sociais e culturais.
De outro lado, uma agenda negativa, a contenção do terrorismo
e a identificação do papel das religiões na superação
de conflitos.
A atual agenda da cooperação ecumênica internacional sofre
pressões de muitos lados. Internamente, nos países do Norte, as
sociedades e os governos fazem um check and list dos sucessos da cooperação
e do papel específico que lhes cabe por sua identidade. Isso numa situação
interna aos países na qual cresceu o mercado da caridade, e para a qual
os apelos emotivos falam muitas vezes mais forte que as necessidades sociopolíticas
dos países e grupos sociais apoiados pelas organizações
ecumênicas do Norte. Além disso, como parte dos fundos de muitas
das organizações é de origem governamental – como
por meio do imposto religioso de alguns dos países – surgem dois
constrangimentos. Primeiro, devido ao afastamento das pessoas das igrejas há
uma diminuição deste ingresso, e em segundo lugar, em vários
países se questiona os percentuais a serem repassados para as organizações
– seguindo se discussões até de eliminação
dos impostos.
Externamente, na América Latina, as organizações ecumênicas
do Norte redirecionaram seus apoios para outros atores sociais. Os atuais estudos
sobre os montantes circulantes da cooperação ecumênica internacional
para a América Latina indicam que não houve uma redução
deste. Porém, várias das antigas contra partes daquelas organizações
deixaram de ser apoiadas por elas. Como conseqüência, muitas organizações
ecumênicas, do movimento social, do campo das ongs se viram debilitadas
estruturalmente. O problema que resulta disto é a contradição
entre a necessária reconfiguração do campo político
democrático popular vis a vis o fortalecimento dos mecanismos do Mercado
Total. Nesta conturbada demanda interna e externa é que se configura
o atual cenário da cooperação ecumênica.
Recentemente, realizou se o Seminário Internacional (novembro 2006)
do Processo de Articulação e Diálogo (PAD) que reúne
no Brasil organizações ecumênicas, movimentos sociais e
ongs, e na Europa um conjunto de agências ecumênicas. Noto que as
agências chamaram atenção para sua identidade sociopolítica
e eclesial e chamaram a atenção para o equívoco do termo
agência, pois elas se autodenominam missão, ação
das igrejas e termos ou expressões semelhantes. Nesse seminário,
no qual se discutiu a cooperação internacional ecumênica
e o seu papel na luta em favor dos direitos humanos (econômicos, sociais,
culturais e ambientais, bem como, os civis e políticos), foram retomadas
algumas questões fundamentais. Primeiro, a agenda ecumênica da
cooperação parte do pressuposto da autonomia dos atores e da sua
capacidade interativa. Ou seja, a cooperação ecumênica responde
a desafios concretos que nascem das inserções dos distintos atores.
Por isso, há um pacto de respeito mútuo. Em segundo lugar, a agenda
da cooperação ecumênica mantém o compromisso com
uma perspectiva teológica da opção preferencial pelos pobres
– parte daquelas e daqueles que são as populações
vulneráveis que são sujeitos de direitos em vista da superação
das injustiças que sustentam o sistema de violações de
direitos. Finalmente, mas não menos importante, a cooperação
ecumênica afirma a necessidade de superação do atual modelo
socioeconômico como caminho para a afirmação de uma sociedade
na qual os direitos de todas e todos sejam respeitados.
Concluo essas reflexões sobre esse papel desconstrutor da Globalização
neoliberal que tem a cooperação ecumênica com uma feliz
reflexão do encantado Milton Santos:
Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença
no planeta, pode se dizer que uma história universal, verdadeiramente
humana está, finalmente, começando. A mesma materialidade, atualmente
utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição
da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem
as duas grandes mutações: a mutação tecnológica
e a mutação filosófica da espécie humana.
A grande mutação tecnológica é dada com a emergência
das técnicas da informação, as quais – ao contrário
das técnicas das máquinas – são constitucionalmente
divisíveis, flexíveis e dóceis, adaptáveis a tosos
os meios e culturas, ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos interesses
dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada,
essas técnicas doces estarão ao serviço do homem.
Muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética,
que conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo
que ainda é do domínio da história da ciência e da
técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições também
hoje presentes, que podem assegurar uma mutação filosófica
do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada
pessoa, e, também, do planeta.
(Milton Santos, Por uma outra globalização
- do pensamento único à consciência universal).