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“RELIGIÃO E POLÍTICA: CON(VIVÊNCIA)? CON(FUSÃO)?”
Ano 5 - Nº 22-23a
Novembro de 2010
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Página de KOINONIA
 
“Religião e Política: con(vivência)? con(fusão)?”

Quando no chamado Encontro das Águas, a pouca distância de Manaus, as do Rio Negro e as do Solimões se juntam para formar o Amazonas, elas são bem distintas. As primeiras são escuras e por isso dão nome ao rio de onde fluem. As segundas são barrentas, cor quase marrom. Quando do avião você vê as duas correntes formando o Rio-Mar, é capaz de distinguir uma da outra por quase 10 quilômetros, durante os quais correm paralelas. Então, misturando-se pouco a pouco, vão se mesclando gradativamente até se tornarem uma cor só. Não se consegue distinguir mais os seus limites.

Os dois rios podem simbolizar duas grandes correntes a comporem o caudal da vida em sociedade, a religião e a política. Jamais existiu uma sociedade ou uma cultura, quer das mais antigas e singelas até as mais recentes e sofisticadas, que se desenvolvesse e se estruturasse sem a presença destas correntes. Qualquer consideração que se faça a respeito de uma delas – ou de ambas – na vida de uma nação adquire só por isso uma grande importância. Afinal, elas consolidam a possibilidade da existência e continuidade de um povo. Fazem parte de sua história e de seu presente e condicionam seu futuro. Aliás, trabalham para que este venha a realizar-se de acordo com suas perspectivas, para que lhes permita manterem o status quo no qual se baseiam para sua própria sobrevivência.

Não importa o modo como nasceu a religião ou como veio a se organizar em termos das crenças que acalenta, da estrutura ou carisma de sua liderança, das expressões litúrgicas que adota, dos mistérios que enfatiza ou das determinações éticas ou morais que pontifica. Em todas estas e em outras dimensões, a religião não admite discussões ou dissensos. Através dos tempos ela insistiu em que, quem está fora deste edifício simbólico e não acompanha tais doutrinas e mandamentos está condenado. Este anátema se expressará no além – extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação) – ou aqui mesmo, até inquisitorialmente se preciso for. Há um ciúme exclusivista da parte da religião. Por que? Porque admitir a convivência com a descrença ou a heresia é implicitamente confessar que a religião – qualquer que seja ela – de fato não conhece ou não defende a verdade em todas as suas dimensões.

Acaso não repete ela uma situação similar à pretendida pela política? Desde que se formaram os primeiros agrupamentos sociais, ainda ao tempo em que a diferenciação dos humanos apenas se começava a dar, já o estabelecimento de uma estrutura governadora se impunha a partir do mais forte ou do mais capaz de dominar, qualquer que fosse a origem deste seu poder. É complicado falar em política quando se trata de animais, de vez que a polis é construção dos humanos, mas o fato é que em inúmeras espécies se estabelece um ou uma líder, que adquire o mando, e a quem os demais seguem e obedecem. Desenvolve-se em todas as sociedades humanas alguma forma de governança social, desde os clãs às tribos e às nações, em suas diversas estratificações, em que se estabelecem as sanções tradicionais, as leis e os poderes. Tal como ocorre no universo religioso, aqui também se desenvolve um ciúme exclusivista. O Estado não admite o comportamento desviante.

Tal como as águas do Rio Negro e as do Solimões, as duas correntes correm paralelas na sociedade. Correm fortes, poderosas, cada uma tentando manter sua dominação sobre o rio que vão formando. Ambas reivindicam o direito de determinar os comportamentos dos indivíduos e grupos presentes no caudal social. Enquanto existe uma coincidência nestas exigências, não há entrechoque. A lei e a ordem são ditadas e mantidas pelas duas forças e vai tudo bem. No momento em que, no entanto, o que a religião exige é diferente ou oposto ao que a política requer, está posto o dilema. Como resolvê-lo?

Ao longo da história houve tempos em que uma corrente ou outra era a mais forte. Houve épocas em que o sumo pontífice era quem determinava quem seria o rei e até o coroava. Outras houve em que o imperador depunha o chefe da religião e o substituía. A sociedade era joguete destes poderes em choque e ficava perplexa sobre a quem obedecer ou, não tendo escolha, era subjugada definitivamente. Isto não era privilégio do Ocidente, mas se manifestou de uma forma ou outra em todas as sociedades e culturas.

Desde que a modernidade se impôs a questão ficou diferente. Primeiro, porque outras forças – especialmente o comércio e a ciência – adquiriram status próprio e entraram na arena. Segundo, porque não era mais possível decidirem-se os entrechoques entre a religião e a política na base do mais forte. Novas armas tiveram que ser descobertas e passaram a ser desembainhadas. Com a instauração das democracias estas armas se aperfeiçoaram. A negociação se tornou fundamental. A decisão pelo sufrágio universal superou a força armada. Se o cacique e o pajé estão presentes desde tempos imemoriais na sociedade sempre foi necessário que negociassem eles entre si o poder sobre os indivíduos e a decisão sobre o pode-não-pode no cotidiano do grupo em meio ao qual se afirmam e se confrontam.

Os termos e as condições da negociação, no entanto, agora são definidos pela legislação. Quando não chegam a bom termo, é preciso apelar para outros modos de conseguir que as coisas se definam. A fim de que a tribo se decida pela orientação do cacique ou pela determinação do pajé, ela precisa ser convencida de que um está correto e o outro não. A política precisa aproveitar-se de afirmações da religião. A religião necessita jogar com as crenças da política. O processo agora é o da manipulação.

Os dicionários definem isto como uma manobra oculta ou suspeita que visa à falsificação da realidade a fim de influenciar uma pessoa ou comunidade. Falsificação da realidade é um eufemismo para mentira. Com isto é possível fazer com que os eleitores decidam numa direção, pensando que estão escolhendo o que é correto. Políticos manipulam para que o eleitorado seja guiado na escolha de seu voto e lhes dê o poder. Religiosos fazem a mesma coisa, manipulando o povo para que aceite suas ideias – que asseveram serem as da divindade – e engrossem as fileiras de seus fiéis. Caminham assim a política e a religião lado a lado, usando as mesmas artimanhas e ferramentas. Ou manobras de manipulação, se se prefere.

Não foi o que se viu nos meses que antecederam a última eleição? Ambas as correntes, a da religião e a da política, sussurrando boatos, falsificando a realidade, ameaçando com excomunhão e expulsão, para que o povo as obedecesse? Finalmente eram uma coisa só. Formavam um só caudal, a ponto de não mais se poder distinguir quem era uma e quem era a outra.

É triste, mas o Encontro das Águas, um maravilhoso fenômeno da natureza – hoje até estranhamente tombado pelo IPHAN – parece que passa a simbolizar o que acontece no encontro e na aliança entre a política e a religião. Quando se colocam a serviço de seus interesses menores, ambas manipulam o povo em cujo seio medram e a quem deveriam servir. Não se consegue perceber mais os seus limites.

Sérgio Marcus Pinto Lopes