Com esta edição Tempo & Presença procura oferecer aos seus leitores e leitoras algumas reflexões sobre a incidência pública, aberta e sem disfarces, de diferentes grupos religiosos no recente processo eleitoral brasileiro. Depois de oito anos de um governo decididamente comprometido com o combate à desigualdade social e à promoção do desenvolvimento econômico, ainda que dentro das coordenadas do paradigma capitalista globalizado, mas que lhe rendeu um índice de aprovação de mais de 80% por parte da população, a sociedade brasileira assistiu, entre surpresa e confusa, mas também indignada, a movimentação partidária de diferentes segmentos do universo eclesiástico, em sua maioria contrários à proposta de continuidade oferecida pela coalizão partidária no poder.
Setores do mundo pentecostal e neopentecostal e segmentos tradicionalistas e outros ligados às expressões carismáticas do universo católico-romano, uniram suas vozes, numa espécie de “ecumenismo à direita”, para acusar a candidata da situação de ser contra hipotéticos “valores tradicionais da sociedade brasileira” por, supostamente, defender a descriminalização do aborto e a união legal de casais homossexuais. Esta articulação, arquitetada em função de apoio ostensivo ao candidato da oposição, não conheceu limites de probidade e honradez. A manipulação pura e simples de valores, emoções e sentimentos religiosos, escamoteou o debate público das propostas políticas substantivas despolitizando e esvaziando a disputa eleitoral ao reduzi-la a um confronto entre imaginários defensores do bem e do mal.
Assim, pela primeira vez e de forma significativa e contundente, o eleitorado religiosamente orientado, tanto evangélico como católico, fez sua entrada ostensiva na disputa pelo poder político no cenário nacional, conduzido por lideranças de duvidosa idoneidade política e teológica, que não hesitaram em provocar a divisão de suas comunidades religiosas em nome de interesses particulares nem sempre confessáveis. No primeiro turno, em nome de uma mera lealdade confessional, cerraram fileiras em torno da candidata egressa do governo que levantou a bandeira da defesa do meio-ambiente, como forma de quebrar o caráter plebiscitário da disputa eleitoral. No segundo turno apoiaram abertamente o candidato da oposição, sem levar em conta, de forma responsável e consistente as incontestáveis realizações do governo anterior.
Em todo o processo que acabamos de vivenciar ficaram evidentes o despreparo político, a falta de percepção dos graves problemas que afetam a sociedade brasileira e a estreiteza teológica com relação à responsabilidade sociopolítica das comunidades religiosas no contexto da sociedade como um todo.
Os articulistas desta edição procuram elucidar, com suas percucientes análises, os diferentes aspectos de natureza social, cultural-religiosa, política e teológica que incidiram nesse processo e suas repercussões para o futuro imediato da sociedade brasileira e das comunidades religiosas, em particular.
Esta edição, pelo número elevado de colaborações que oferece, se apresenta como uma dupla edição, recebendo a numeração 22-23 com a pretensão de ser uma compensação, aos nossos leitores e leitoras, pelos reiterados atrasos na aparição de nossa revista este ano. Agradecemos a compreensão de todos.
É isso aí.