O brocardo latino – “A corrupção das coisas ótimas é péssima” –é o resultado de uma admirável percepção popular de um fenômeno comum à experiência da humanidade ao longo do tempo. Recursos da mente e engenhosidade de potencial positivamente fantásticos para a criação do bem, degeneram-se com grande facilidade e revelam que a tendência à entropia não se limita aos sistemas físicos sujeitos às leis da termodinâmica. É o caso da mídia, que aqui nos interessa.
Constituída a partir da acumulação e aperfeiçoamento dos processos de comunicação entre os humanos, a mídia veio a se tornar nos dias de hoje um novo Cronos, um deus devorador de seus jovens filhos. De fato, ela adquiriu uma aura conferida apenas aos elementos do sagrado e parece que só lhe faltam as auréolas coroadoras das imagens de santos e anjos.
Por que?
Primeiro, porque surge e se renova cotidianamente de modo misterioso, sempre a mesma e sempre diferente, nas mãos dos leitores (jornais, revistas etc.) ou perante seus ouvidos (rádio...) ou olhos (televisão...). Tal como os antigos deuses, que tinham uma continuidade ao longo das gerações, mas se mostravam a cada dia com sinais notáveis, a mídia mantém constante e surpreendente a tensão passado/presente na vida do adorador. De onde vem, para onde vai, são interrogações nunca reveladas de modo absoluto. Há aí sempre um misterium mágico e fascinante.
Além disso, ela possui um tom de autoridade absoluta. Deu no rádio, apareceu na TV, é a verdade! Algo semelhante acontece com as religiões do livro. Scriptum est, não se discute! No espaço da televisão isto é ainda mais poderoso e indiscutível, pois seu sacerdote ou sua sacerdotisa mira diretamente nos olhos do telespectador... Nos tempos da comunicação planetária eles têm o dom de falar da realidade e do que acontece na comunidade local e a todos os homens e mulheres do mundo sequencialmente, com uma rápida mudança dos cenários. O Deus-TV é capaz de falar de todos os assuntos, com conhecimento e autoridade, não apenas descrevendo as coisas, mas expressando uma posição quase dogmática de que a audiência não tem o direito de duvidar.
Evidentemente ela consegue fazê-lo de modo espetacular. Da nave que sobe à Estação Espacial Internacional ou a outros planetas, ao espetáculo inaugural de quaisquer jogos olímpicos, ou à corrida da Fórmula 1 que acontece do outro lado da Terra, nada lhe escapa ao olhar onisciente, que tudo vê e revela no mesmo instante em que estas coisas se realizam. Há uma nova divindade que se manifesta/revela na sala de estar ou no quarto da gente, seja no palacete, seja na favela. A Igreja/Mídia inaugura um novo templo no próprio ambiente das pessoas. A dimensão da espetacularização é necessária para encobrir a realidade em que vive o telespectador. Se o apodo de “ópio do povo” cabia bem à religião antigamente (e ainda cabe...) é inegável que cabe também à mídia, pelo menos neste sentido. O que são as novelas, senão um mundo paralelo onde se reproduzem diluidamente as coisas do dia a dia, onde o povo pode escapar das dores do cotidiano, onde vicariamente as pessoas podem realizar o que não está em seu poder alcançar concretamente? Nesta história em desdobramento, tal como nos mitos religiosos, as pessoas se vêem, podem amar, podem odiar, podem fazer – por meio dos personagens com quem se identificam – o bem ou o mal, sem medo de quaisquer consequências concretas, sob as bênçãos divinas...
É verdade que se trata de uma “religião” pós-moderna, bem ao modo do Século 21. Mais ao modo de magia que de religião, claro. As mensagens, ainda que pretensamente revestidas de autoridade, apresentam-se frequentemente contraditórias. As “cores” se apresentam ora de um jeito, ora de outro, conforme o patrão de plantão... Por isso as notícias podem aparecer de um jeito em um canal ou recortadas em outro, ilustradas de uma forma ou distorcidas em outra. Não tem importância. Os fiéis, pouco capazes de filtrar estes detalhes, vão dizendo “amém” a uns e a outros, porque no final das contas quem está falando é a mídia. Sua espiritualidade é mesmo amorfa. Trata-se de uma experiência mista, ao mesmo tempo de fidelidade e de autonomia. O telespectador é fiel, mas até certo ponto. Tudo é relativo. Se um determinado “deus” (com minúscula mesmo...) já não está agradando, um clique no controle remoto o retira do ar e o troca por outro mais atraente ou não tão exigente. No panteão da TV – como no altar de Atenas – há deuses para todos os gostos.
E a mídia, que poderia ser um instrumento extraordinário para o construir de um projeto de pessoas e de sociedades psiquicamente sadias, equilibradas, comprometidas com comunidades onde reinasse a equidade, capazes de criticar a realidade em profundidade e assim transformá-la, vai – como o mítico Cronos – devorando os humanos ao pasteurizá-los. No fim de cada dia todo mundo diz: Boa noite, Bonner.
Não há dúvida: “a corrupção das coisas ótimas é péssima”.