As divisões e desigualdades permanecem firmes e fortes em nosso planisfério. Por mais que nos esforcemos em compreender a origem do Universo, não conseguimos eliminar a fonte que produz desigualdades socioeconômicas. Já está claro que o discurso conservador das responsabilidades individuais é insuficiente. Os condicionantes socioeconômicos permanecem atuantes no século XXI, como tem sido experimentado, de muitas maneiras, desde o alvorecer do modo de produção capitalista no século XIII. Desde aquela época a construção do sistema mundo permitiu a divisão em Estados nações, a consolidação das desigualdades classistas, a afirmação do modelo patriarcal machista: enfim, a gaiola de ferro que produz a alienação e a destruição socioambiental.
Seria desastroso se nossa vivência cotidiana dependesse apenas, e exclusivamente, dessas condicionantes, que ao fim e ao cabo, no processo de Mundialização da economia, com a acumulação de Capital em alguns países centrais, geram a exclusão social de pessoas, grupos e Continente inteiro – como é o caso da África. Há nos subterrâneos do sistema, nos seus porões, a resiliência dos povos, a resistência dos pobres e a indignação dos oprimidos. Soa quase démodé afirmar que é possível sonhar a libertação e experimentar no cotidiano os seus sinais. Nas relações fraternas e comunitárias, na recusa a toda forma de exclusão, na afirmação da tolerância e da inclusão de todas e todos no Eterno Folguedo, no Banquete, na Casa – nisso vivenciamos o ecumenismo.
É dessa natureza que é o movimento ecumênico. Nascido no horizonte da experiência missionária protestante, há um pouco mais que 150 anos, se afirmou nos últimos 60 anos com a criação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). As práticas libertárias do Ecumenismo nascem com a afirmação da necessidade de termos uma Casa Comum (Oikoumene) de todas e todos na contramão do Imperialismo. Na verdade, o movimento ecumênico brota como uma recusa ao Imperialismo britânico. Ele nasce para afirmar que toda a terra tem que ser habitável para todas e todos. De uma certa maneira isso explica porque o movimento ecumênico compreende a migração como um direito humano, que por mais que precise de alguma regulamentação, não pode compactuar com a xenofobia ou com a perseguição daquelas e daqueles que buscam um lugar para viver bem.
Na busca da boa vida para todas e todos é que está a marca fundamental do movimento ecumênico. Por isso, ele tem oferecido testemunho nas lutas por unidade de todas as pessoas que lutam por justiça, paz e integridade da criação. A luta por justiça socioambiental é uma luta que implica na construção de modelos de convivência capazes de superar a alienação, a exploração do ser humano pelo ser humano, e a destruição do ecossistema. Isso explica as ações educativas, daquela educação libertadora, da qual falava Paulo Freire – que também trabalhou no CMI – promovidas por meio de organizações ecumênicas. Pessoas e grupos animados pelos ideais ecumênicos têm o interesse em participar nessa construção de uma sociedade mundial da promoção, defesa, garantia e reparação dos direitos humanos, também como meio de superação de todas as formas de violência. Isso permite a solidariedade com outras e outros defensores dos direitos humanos que não participam do movimento ecumênico.
Por isso, o movimento ecumênico se expressa na busca da unidade de todas as pessoas que são animadas por alguma fé, seja religiosa ou não. Muitas das vivências ecumênicas se dão nesse diapasão da superação da intolerância religiosa. Na verdade, para as instituições eclesiásticas e ecumênicas a teologia do pluralismo religioso alguma vez se esbarra nos limites do conservadorismo cristão. Por isso, a teologia do pluralismo religioso é um desafio para elas e para o movimento ecumênico como um todo. Identificar que todas as religiões são verdadeiras é um desafio. É fato que aqui se coloca o condicionante ético, para o qual vale, pelo menos, a regra de ouro, da promoção do respeito à liberdade e do direito mútuo – nisto se mede a verdade das religiões. Por isso, se coloca o desafio de superar a intolerância sem ceder a qualquer injustiça, valorizando aquilo que Paulo Freire chama de ética do ser humano, que Boff e Küng chamam de ética mundial. Se não pode haver paz no mundo sem paz entre as religiões, não pode haver paz entre as religiões se isso implicar em alguma diminuição do valor da vida das pessoas. Isso permite ações ecumênicas na dimensão inter-religiosa na luta pela superação do estigma aos soropositivos, bem como ações ecumênicas de defesa do direito ao culto e ao respeito social das religiões não cristãs.
É também por meio da busca de unidade daquelas pessoas que partilham a fé cristã que caminha o ecumenismo. Cada passo que o movimento ecumênico dá é cercado de muitos desafios da construção da unidade das igrejas cristãs. Unidade na diversidade, há mais que une do que aquilo que divide, e outras expressões como essas, ainda precisam ser traduzidas em práticas concretas. No campo eclesiástico, dada as novas conformações e conscientizações sobre o campo religioso, no interior dos países e no mundo, está claro que o Cristianismo não é a religião da maioria da população mundial. No entanto, historicamente tem se arrogado o direito de supremacia entre as diferentes maneiras de viver a experiência religiosa. Talvez, numa concepção humilde e modesta do Cristianismo, possam as instituições eclesiásticas afirmar que há mais porque servir do que para deter alguma hegemonia.
Por isso, quando se pensa na reconfiguração do movimento ecumênico no século XXI fica cada vez mais claro que um papel é das igrejas e dos conselhos de igrejas. O papel de contribuir para a construção de pontes que favoreçam o serviço ao mundo. Junto aos conselhos cumprem importante papel os fóruns e redes, nos quais se encontram igrejas, conselhos e organizações ecumênicas. Nesses espaços a experiência da partilha de recursos para a afirmação da vida boa para todas e todos, da vida abundante, é ainda mais necessária. São espaços nos quais se aprofunda mais a solidariedade com todas as pessoas que têm a vida ameaçada, com o meio ambiente que clama por cuidado. Enfim, as vivências ecumênicas podem, também nesses espaços, ganhar densidade e ampliar sua coerência. Conselhos, fóruns e redes são também espaços nos quais a missio Dei, para a qual as pessoas que professam a fé cristã estão vocacionadas, pode ser proclamada.
Todas essas experiências tornam ainda mais significativas as vivências ecumênicas que se vão forjando no cotidiano dos Continentes. A América Latina é ainda um celeiro de tais vivências. Alguma coisa se passa a partir do Fórum Ecumênico do Brasil e da América do Sul, em especial com a Rede Ecumênica de Jovens em Favor dos Direitos Juvenis. Também organizações ecumênicas, nas suas ações educativas e formativas, vão disseminando experiências ecumênicas no Continente, tais como Cebi, Ceca, Cese, Cesep e KOINONIA, dentre outras. Muitas e diferentes Conexões Ecumênicas se vão construindo. Em todas essas experiências algo da natureza libertadora da experiência ecumênica, também afirmada pelo Espírito, no seguimento a Jesus, se dá.
É por isso que, para KOINONIA, no marco das comemorações dos 60 anos do CMI está claro que há muito ainda por fazer. Além disso, fica patente que o movimento ecumênico mantém acesa e viva a tensão dialética entre instituição e movimento. Todos os processos ecumênicos, no entanto, estão vinculados a essa corrente de promoção da vida boa, da felicidade, da interrupção da cadeia geradora das desigualdades sociais e da destruição socioambiental. E é por isso que KOINONIA se irmana ao CMI e se afirma parte da família ecumênica mundial nesta luta para a superação de todas as formas de intolerância, em favor dos direitos, da socialização da riqueza, da construção da justiça socioambiental.