No artigo anterior identifiquei e analisei brevemente os procedimentos de definição de referenciais para o discernimento eleitoral no Brasil, a partir de três exemplos do momento atual. Gostaria de aqui discutir alguns daqueles achados e apontar uma alternativa para pensar e discutir. Para manter um mínimo controle de espaço, já que se trata de uma discussão amplíssima, sobre a qual há séculos de debate no campo cristão, atenho-me aos limites do que os documentos referidos revelam. Assim falarei sobre o lugar da Bíblia no discernimento político-eleitoral, a questão da relação com o pensamento de esquerda e o tema da biopolítica na pauta contemporânea das controvérsias públicas. Procurarei me ater exclusivamente ao que seriam as implicações e repercussões desses três temas para o campo evangélico brasileiro. Serei mais programático que expositivo neste momento, deixando os detalhamentos e nuanças para alguma interlocução que estes dois textos venham a gerar.
Sobre o lugar da Bíblia. Há um aspecto elementar a considerar na reflexão ética dos evangélicos: o mundo da Bíblia está literalmente a milênios de distância do nosso e não há concepção de natureza humana imutável que resista às profundas transformações da experiência e autopercepção dos seres humanos sobre o que constitui a vida, sua relação uns com os outros, sua relação com Deus (ou com forças espirituais assimiláveis à idéia de Deus), ao longo desse tempo. Com a política não é diferente. A própria Bíblia é testemunha de parte dessas transformações, no âmbito coberto pela história de sua redação: frequentes releituras de acontecimentos passados, da palavra divina revelada e desafios colocados por momentos novos na trajetória da fé de Israel e da Igreja neotestamentária são patentes a um olhar cuidadoso, erudito ou leigo, do relato bíblico. A fé bíblica é histórica, o que quer dizer pelo menos três coisas: identifica a ação de Deus na história como parte integrante dela e não como um acidente ou interrupção sobrenatural; percebe a identificação de Deus com a história humana no âmago de sua compreensão da divindade – o que no caso do judaísmo se expressa nas idéias do êxodo (egípcio e babilônico), no messianismo e nas concepções teocráticas da monarquia davídica e, no caso do cristianismo, na idéia da encarnação, da presença do Espírito Santo e da própria igreja. Sendo a história um lugar de resposta à palavra divina, desdobramentos presentes e futuros da mesma criam novas circunstâncias onde é de uma vez mais necessário discernir o sentido da ação divina, que realiza coisas novas e inauditas e revela novas facetas do divino apropriadas às novas questões e experiências vividas. Assim, uma fé histórica jamais poderá fornecer um código de princípios intemporais nem uma linguagem que escape aos movimentos da história.
Além disso, a fé bíblica é comunitária: seus princípios e valores, apesar de revelados, são definidos no contexto de uma comunidade de crentes que valida (ou não) o testemunho dos profetas e a prática dos fieis. Seu sentido nem é determinado pela autoridade única do iluminado, nem pela intuição carismática do crente individual. O discernimento da vontade divina se dá no contexto de uma comunhão de fé que não tem pátria nem língua, nem vive ao abrigo das circunstâncias históricas – entre elas as inevitáveis e irreprimíveis disputas pelos valores que regem a vida social em cada tempo e lugar. Embora cada cristão(ã) seja agente desse discernimento, e responsável pelas ações que realiza com base nele, o faz a partir da luz de sua cultura, sua posição social e sua tradição espiritual, bem como seu grau de (des)informação. Assim, uma fé comunitária e transnacional jamais entregará a indivíduos isoladamente as chaves do seu discernimento, nem terá como ignorar a pluralidade de contextos e compreensões em que exerce a aplicação de seus princípios. Mas jamais será una, monolítica. Será plural.
Sendo histórica e comunitária, a fé bíblica não tem uma única nem permanente posição política, nem os princípios encontrados em certas partes dela se aplicam em toda e qualquer situação. Embora ela seja parte inseparável da história das instituições políticas que moldaram as sociedades ocidentais, mesmo quando o quis não conseguiu diluir-se simplesmente nelas. Grupos dissidentes surgiram sempre em seu interior para ressaltar o caráter “nômade” ou “peregrino” dessa comunidade que se move ao sabor do sopro do Espírito, em resposta ao chamado de um Deus irrequieto e que não cabe em qualquer desígnio, cultura ou instituição histórica, mas escolhe só nos encontrar nesses contextos. Embora nosso referencial seja esse testemunho do passado que nos chega como um livro sagrado, sua leitura não pode dispensar mediações contextuais, analíticas, comparativas e (re)interpretativas que são acessíveis a cada fiel, mas não necessariamente são ativadas por cada um(a) – daí a importância fundamental de perscrutar o passado, ouvir a experiência de irmãs e irmãos de outros contextos, valorizar a inteligência dos estudiosos da Bíblia. Daí a exigência de que, quem se arvora no direito de orientar, guiar, exortar, apontar caminhos para a igreja, seja sério na maneira como maneja sua leitura da Bíblia e expõe seu ensino à igreja. Pastores e líderes: estudem a Bíblia com profundidade e criatividade! Orientar politicamente com base na Bíblia exige muito mais do que manipular versículos e palavras!
No processo eleitoral o pior que pode acontecer é brandir versículos bíblicos como se, por analogia a situações puramente imaginadas do que teria acontecido no passado, suas palavras comunicassem diretamente um sentido intemporal aos ouvidos contemporâneos. Uma diferença absolutamente crucial se coloca entre a Bíblia e nosso tempo a esse respeito: o Brasil não é uma teocracia, não é o Israel da promessa, não é a Igreja, não é um país evangélico e a constituição do estado democrático não é o resultado de um ditado divino. O processo de escolha de suas lideranças não se rege pelos procedimentos carismáticos de unção divina dos governantes, nem estes têm a seu cargo a responsabilidade de aplicar os mandamentos divinos a uma sociedade homogeneamente fundada num pacto com Javé.
Não é curioso como o novo discurso evangélico sobre a política se aferra a citações de passagens do Antigo Testamento que ignoram essa diferença? Mas o que deve nos inspirar no Antigo Testamento não é a teocracia, nem a monarquia – ambas falharam estrondosamente em ser canais da vontade divina. É o profetismo e sua paulatina abertura à “pluralidade” do mundo, das culturas, legando mudanças à identidade religiosa de Israel que tornaram possíveis várias crenças cristãs posteriores. Além disso, o cristianismo, nos primeiros três séculos de sua existência defrontou-se com diferente realidade: sendo uma religião minoritária no império romano – uma ordem socio-política opressiva e étnica, cultural e religiosamente diversa –, hostilizada como herética pelo judaísmo e “ateia” pelos romanos, o controle sobre a legislação era inimaginável aos cristãos e qualquer sonho de recrutar o poder político para a “redenção nacional” estava simplesmente fora de cogitação. O cristianismo pós-Constantino é uma recaída teocrática.
Acelerarei o passo. Segundo tema: a questão da relação da identidade evangélica com o pensamento de esquerda. O discurso de recusa do socialismo como incompatível com a fé cristã foi a grande marca do pensamento hegemônico no cristianismo no século XX, tanto em sua versão liberal como fundamentalista. Intensa mobilização missionária norte-americana durante mais de 6 décadas, até fins dos anos de 1970 gerou uma dupla atitude de reacionarismo político: o apoio aberto à ditaduras militares e civis “anticomunistas” e o quietismo ou apoliticismo como única postura legítima diante de um mundo corrompido. Gerações de (poucos) militantes e pensadores evangélicos resistiram a esse sequestro da mensagem cristã pelo integrismo político-ideológico antisocialista. Mas ficou forte ranço na identidade política evangélica, reforçado pelo “igrejismo” que absorve grande parte do tempo e energia das pessoas e não as envia a servir no mundo, engajando-se com as necessidades e lutas populares, dialogando com a cultura e sendo desafiadas a dar sentido a sua fé em meio à realidade social e histórica em que vivem.
Há duas ordens de problemas com esta identificação forçada do cristianismo com antisocialismo: a) há uma longuíssima história de socialismo cristão que remonta ao próprio cristianismo neotestamentário (caso célebre da comunidade de Jerusalém, em Atos 2-5) e chega ao socialismo moderno; b) a diversificação interna do movimento socialista e a legalidade dos partidos de esquerda a partir de fins do século 19 são parte integrante da história da democracia no ocidente e, portanto, somente vistos como incompatíveis com a fé cristã para um grupo cada vez mais restrito de cristãos conservadores. O fenômeno do socialismo ateu, além de ser muito recente na história dessa ideologia, precisa ser compreendido nas condições históricas concretas da Europa dos séculos 18 e 19, nas quais as igrejas cristãs, particularmente a Católica, opuseram-se virulentamente às reivindicações de liberdade da burguesia e do operariado industrial urbano.
O papel de grupos de cristãos socialistas, católicos e evangélicos, na formação e difusão de movimentos e partidos de esquerda no Brasil é um fenômeno que remonta no mínimo aos anos de 1940, e, no passado recente, o PT foi um dos partidos onde esta influência foi mais nitidamente marcante. Assim, as dificuldades de acerto de contas da ética política evangélica brasileira com as posturas de defesa de políticas igualitárias no campo socio-econômico (social-democratas, socialistas, comunistas e anarquistas) é resultado de uma história particular e não o efeito de uma incompatibilidade intrínseca dessas posições com a fé cristã. A recusa a apoiar partidos de esquerda nesse processo, por outro lado, esmaeceu nos últimos anos, aumentando o fosso entre o discurso das lideranças e o comportamento de crescente número de eleitores evangélicos. A escolha de candidatos de esquerda identificados com bandeiras igualitárias apelou cada vez mais a uma população evangélica pobre, sujeita à profundas crises econômicas e piora de suas condições de vida e socializada por mais de duas décadas de democracia política e pelo exemplo de administrações de esquerda bem sucedidas e cumpridoras de compromissos.
Uma marca do conservadorismo político evangélico é a dupla dificuldade em perceber como as transformações capitalistas das últimas décadas afetam não somente as condições de vida, mas a consciência das pessoas, e como as bandeiras socialistas se transformaram no conteúdo e na forma. Continua assim lutando contra um socialismo pré-queda do muro de Berlim e sancionando um capitalismo que se globalizou e invade cada vez mais áreas da vida social e individual, acirrando a exclusão de milhões ao mesmo tempo em que consagra a ideologia do mercado como padrão de toda relação humana, de toda aspiração individual. Não é preciso tornar-se socialista, ou suspender qualquer crítica à posições de esquerda para aprender com essas transformações. O que se recomenda aqui é que enquanto esse acerto de contas com o tema da igualdade como legítima inspiração cristã não se der, os evangélicos continuarão engrossando o coro de um discurso antipopular e indiferente à exclusão, miséria e violência a que milhões continuam condenados.
Por fim, o tema da biopolítica na pauta contemporânea das controvérsias públicas. Aqui há dois aspectos a considerar. De um lado, há mais de um século o estado vem crescentemente regulando, intervindo e legislando sobre questões relativas à vida e ao corpo. Por motivos de controle ou em resposta a reivindicações sociais por tratamento justo e não-discriminatório, há uma zona cada vez maior da vida privada que é abarcada pela regulação estatal. Mas isso também tem se traduzido na linguagem dos direitos, que combina inseparavelmente os princípios da liberdade e da igualdade. Uma nova esquerda emergiu, desde os anos de 1960, a partir dessa politização da vida (da sexualidade, do gênero, da geração, da cultura, da etnia, da cor da pele). Há uma esquerda socio-cultural que se afirma a cada momento. Governar a vida – sonho do Estado – e libertar o desejo e a “diversidade” humana – sonho dos pluralistas, são faces de um mesmo processo, com desdobramentos complexos e sensíveis. Um outro tema neste campo é o dos dilemas éticos relativos ao uso da biotecnologia. É óbvio que os cristãos e outras tradições religiosas sentem-se particularmente afetados por esta tendência. O corpo há muito era o lugar da religião, desde que esta perdera o controle do Estado (ou da esfera pública). Assim, novas éticas do corpo suscitam imediata resposta dos cristãos, particularmente dos mais conservadores.
Não se trata simplesmente de reconhecer que nem todos os brasileiros são evangélicos, ou cristãos, ou que todos devem ser tratados como iguais diante da lei, independentemente de sua fé. O avanço da biopolítica traz para o debate político temas e formas de atuação que de fato incomodam os evangélicos. Afetam preconceitos profundamente arraigados contra mulheres, gays, negros, culturas minoritárias. Exigem mais do que tolerância, o reconhecimento de direitos à diferença. Mobilizam paixões, tanto quanto argumentos, pois lidam com sentimentos e desejos: afetividade, amor, aceitação, dignidade, auto-estima. Estendem a bandeira da igualdade a um conjunto de áreas da vida social muito mais amplo do que as carências materiais, socio-econômicas. Embora isso possa criar novas oportunidades para um testemunho público cristão, também é motivo de muita controvérsia. Igualmente, aqui se expressa, por vezes, no afã de assegurar o reconhecimento dos direitos e demandas desse contingente muito mais amplo de excluídos (que em muitos casos, mas nem sempre, envolve os já excluídos materialmente), o autoritarismo da cultura política brasileira: há sim, laivos preocupantes de violação de direitos inegociáveis – como a liberdade de consciência e expressão, nos termos constitucionalmente reconhecidos hoje – como contrapartida aceitável para a “imposição” dos direitos biopolíticos.
Nesta área, o discernimento eleitoral precisa ir muito além do moralismo evangélico, que em larga medida é apenas a continuidade de uma ética conservadora resultante do encontro do protestantismo pró-escravismo norte-americano do século XIX com a cultura do Brasil católico, patriarcal e oligárquico do mesmo período e das primeiras décadas do século XX. As mudanças neste campo tem sido muito lentas, mas hoje exibem sinais de uma virada pluralista. Os evangélicos que souberem reler suas fontes bíblicas e históricas com sensibilidade, criatividade e amor ao próximo como a si mesmos saberão separar o joio do trigo e fazer escolhas eleitorais que afirmem os direitos biopolíticos, sem ter que abrir mão de nada que seja essencial a sua fé.
Em suma, seja no uso da Bíblia, seja no encontro com as demandas da esquerda socio-econômica ou da esquerda biopolítica, os referenciais para o discernimento político-eleitoral baseiam-se na prioridade da realidade sobre o passado e do amor sobre a lei. Não porque precisamos deixar para trás velhos princípios e valores que eram essenciais à fé cristã, mas porque é assim que seremos mais rigorosamente fieis herdeiros da tradição judaico-cristã: povo peregrino, à escuta do sopro do Espírito Santo, atentos aos sinais do Cristo encarnado e ressurreto, e capazes de transitar com conhecimento de causa e generosidade entre o mundo da fé e o mundo da vida – necessidades, desejos, conflitos, política. A integralidade da vida passa pelo trabalho, a política e a cultura. Mesmo sem termos que sempre usar a linguagem da religião, temos muito a dizer e a fazer nesses campos. Elejamos com discernimento, não por medo ou obrigação. Nunca pela mera opinião dos outros. E quando a ouvirmos, sejamos mais exigentes de consistência, coerência, profundidade. A igreja merece de seus líderes mais do que água com açúcar. E mais do que seus preconceitos e valores não confessados.