Os 60 anos de existência do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) trazem consigo o desafio da reflexão e da avaliação da conjuntura deste organismo marcante na história do movimento ecumênico. Quem é o CMI e o que ele será a partir dos seus 60 anos de presença no cenário mundial?
A inegável contribuição do Conselho na construção da história do movimento ecumênico internacional no século XX, ao articular em um organismo as demandas de unidade do movimento missionário, do movimento do “Cristianismo Prático” e do movimento de fé e ordem/doutrina, mais as demandas dos movimentos de juventude cristã, dos educadores cristãos, das confissões mundiais, das associações cristãs regionais, merece ser relembrada e celebrada, sempre!
O reconhecimento dos desafios da revolução tecnológica do tempo presente; a participação das igrejas no desenvolvimento das nações; partilha de recursos; ações em torno dos direitos humanos, entre elas a luta contra o racismo; os projetos de educação popular; a causa ecológica; a solidariedade com as mulheres; a superação da violência; uma teologia ecumênica sobre o batismo, a eucaristia e o ministério; o estímulo ao diálogo inter-religioso; a afirmação ecumênica da missão e da evangelização; a busca de justiça econômica em tempos de globalização e mercado sem fronteiras; estas e outras dimensões que poderiam ser ainda listadas são partes de uma rica história de 60 anos de testemunho concreto de que a unidade cristã é possível no diálogo teológico somado às ações missionárias solidárias/em cooperação.
Estas marcantes e estimulantes expressões concretas de unidade que deram destaque e significância ao movimento ecumênico no cenário mundial, contudo, não escondem a existência de tensões e situações conflituosas que também são marca dessa história.
Crises e incertezas
Não é do contexto destes 60 anos o reconhecimento de um processo de crise e de incertezas quanto ao futuro deste organismo e suas conseqüências para o movimento ecumênico internacional. Há dez anos, quando o CMI celebrava uma data bastante significativa, o marcante “jubileu de ouro” marco que também coincidia com os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi realizada a 8ª Assembléia do CMI, em Harare, Zimbábue. Naquela ocasião, já se intensificavam as discussões sobre qual seria o ecumenismo para o novo milênio que se avizinhava e já eram identificadas muitas das armadilhas institucionais que aprisionavam o organismo, trabalhando sob pressões e ataques das próprias igrejas-membros.
Um forte exemplo dessa conjuntura de crise foi a pressão das igrejas ortodoxas membros do CMI, que se diziam incomodadas com a estrutura que tornava cada vez mais difícil ou até impossível uma participação ortodoxa significativa. Diferenças eclesiológicas; uma protestantização na abordagem de questões éticas e sociais da parte do CMI, que não levavam em conta distintas compreensões das igrejas ortodoxas sobre os mesmos temas; a questão do culto em reuniões ecumênicas; a forma de tomada de decisões por maioria nos espaços governança do CMI; formação da membresia e da representação de igrejas no CMI; foram as principais “queixas” das igrejas ortodoxas, que, reunidas num encontro pan-ortodoxo em Tessalônica, naquele mesmo 1998, ameaçavam deixar o organismo se não fossem ouvidas. A Assembléia de Harare precisou criar a histórica Comissão Especial sobre a Participação Ortodoxa no CMI, formada por 60 pessoas, que trabalhou de 1999 a 2002 e apresentou um relatório ao Comitê Central com indicações de transformações no modo de o organismo trabalhar para tornar possível a maior participação reivindicada pelas igrejas ortodoxas - o que teve desdobramentos na 9ª Assembléia realizada em Porto Alegre/Brasil, em 2006. Documentos sobre eclesiologia foram e devem ainda ser produzidos, a eucaristia deixou de ser celebrada em reuniões do CMI, que não são mais chamadas de “culto” , mas de encontros de “oração comum”; o processo decisório passou a adotar o método de consenso, fica aberta a discussão sobre novos critérios para a adesão de novas igrejas-membros...
Como sobreviver como um conselho de igrejas tendo que se equilibrar entre o apego de umas à tradição e os vôos de outras com suas novas expressões de eclesialidade? Grande tensão em meio a uma realidade complexa em que a lógica do mercado, da política de resultados e da produtividade lucrativa é assumida pelas igrejas e agências detentoras do capital que sustenta a estrutura e as ações do organismo. O que termina por relativizar o sentido da parceria e da solidariedade que alimentam as ações de unidade.
A esta dimensão política das tensões e conflitos, soma-se a dimensão financeira com a redução da contribuição das próprias igrejas-membros. A palavra de ordem de Porto Alegre 2006 foi “do less to do it well” [fazer menos para fazer bem], o que representou enxugamento da estrutura, com reflexos no quadro de pessoal, e redução de atividades.
Equações por desativar
O desafio de avaliar a conjuntura do CMI e a do próprio movimento ecumênico exige uma atitude significativa que é a de desativar algumas equações que, muitas vezes, enquadram e amarram a reflexão ecumênica. Uma delas é a equação “movimento ecumênico = igrejas/Conselho Mundial de Igrejas (CMI)”. Se trabalharmos com a ênfase de que o movimento ecumênico, como diz o termo, é um movimento, portanto, formado por uma diversidade de expressões e vocações em nome da unidade; e que foram grupos de leigos, de missionários, de pastores/as, de teólogos/as, de pessoas vocacionadas para a promoção da unidade, aqueles/as que, somados/as a grupos de famílias confessionais que se uniam entre si e umas com as outras, plantaram as sementes desse movimento, superamos então essa equação. O movimento ecumênico tem as igrejas como um dos seus fortes eixos e o CMI como sua expressão mais significativa e importante, mas tem sua dinâmica consolidada independente do apoio ou da oposição, da adesão ou distanciamento das igrejas. A história tem afirmado isto.
No Brasil, por exemplo, o movimento ecumênico já viveu momentos áureos, com a atuação da Confederação Evangélica do Brasil e dos movimentos de juventude, suas parcerias e extensões, muito especialmente nos anos 50. Com o golpe militar e o resultante período de repressão, alimentado pelo alinhamento de algumas igrejas à ditadura, de forma explícita com apoio direto, ou implícita, com o silêncio e a omissão, o movimento ecumênico viveu dias difíceis. Esse tempo foi superado e o movimento sobreviveu graças ao esforço de gente vocacionada que se juntou, ainda que de forma subversiva, e manteve o princípio e os ideais, levados adiante por organizações que foram se formando e desafiando as igrejas, o que foi aceito por algumas, que depois se rearticularam a partir dos anos 70 na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) e no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic).
Essas idéias me ocorrem toda vez que reflito sobre a conjuntura do CMI e do movimento ecumênico. Se nos ativermos às igrejas e suas posições/posturas/decisões, vamos identificar muita crise e frustração. No plano nacional, a recente retirada da Igreja Metodista do Conic e da Cese e de outros órgãos em que esteja presente a Igreja Católica Romana ressalta também a realidade restritíssima da adesão das instituições eclesiásticas brasileiras a essas e outras organizações ecumênicas; situação compartilhada por outros países da nossa América Latina. Ainda há o caso da Igreja Presbiteriana do Brasil que, mesmo sempre fechada a qualquer articulação nacional, ainda respirava o sopro da unidade via participação na Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, mas retirou-se dela em 2006, decretando isolamento absoluto.
No plano mundial temos a recente Declaração do Vaticano Dominus Iesus e a reafirmação de compreensões, uma vez superadas, que evocam a supremacia da Igreja Católica Romana sobre as demais igrejas cristãs. Isto ao lado de outras posições romanas que indicam retrocesso, como a compreensão da liturgia e sua forma de comunicação, privilegiando o latim, o que certamente fecha muitos canais de diálogo e interação.
No caso do CMI, como já referido acima, sua crise se pauta pelo fato de suas origens no movimento terem sido relativizadas pela força da institucionalização que o faz ter que se equilibrar entre ser um conselho de igrejas e ser um conselho das igrejas-membros. Com isso, o CMI tem que gerenciar a permanente tensão entre protestantes e ortodoxos, e ainda buscar formas de aproximação com os hegemônicos pentecostais e os expressivos evangelicais se quer continuar a sobreviver como um conselho de igrejas do mundo.
Atrelar o movimento ecumênico às igrejas é amarrá-lo a essas e a outras tantas posturas que quando não negam o princípio de unidade contida no projeto de Deus para a sua Criação, o relativizam e modificam para dar lugar aos seus próprios projetos institucionais eclesiásticos, em torno do qual está sempre uma questão chave: o poder e suas disputas.
É possível ter esperança?Um elemento positivo em todo este quadro de crise foi concretizado na 9a Assembléia do CMI, Porto Alegre/2006, que desafiou as igrejas e demais participantes em dois momentos: (1) quando se dispôs, na programação denominada “Conversações Ecumênicas” e nos comitês, a abrir um caminho determinante para o futuro do CMI e do movimento ecumênico: a reflexão e a busca de práticas em torno das mudanças no contexto eclesial e ecumênico; (2) a experiência do Mutirão.
A Conversação Ecumênica “Mudanças no contexto eclesial e ecumênico” trouxe para a mesa os temas das novas formas emergentes de ecumenismo e dos desafios no caminho para a unidade – a busca de uma resposta ecumênica para hoje. Estes dois temas se unem no que o secretário-geral do CMI, Samuel Kobia, denominou no seu relatório: a reconfiguração do movimento ecumênico. Não é possível mais compreender o movimento ecumênico como uma unidade de estruturas, mas sim um mosaico com muitos corpos e muitos membros, muitos interlocutores e ministérios especializados. As igrejas, protagonistas no passado, dividem agora o cenário com muitos outros atores. Chegou-se, na assembléia, a compreender este processo com a metáfora de uma coreografia ecumênica, em que muitos participam cada um com um passo, uma expressão diferente, mas todos “dançando” a mesma música (o projeto de Deus), em harmonia. O CMI é hoje, na verdade, um dos tantos elementos neste quadro complexo, mas que se vê vocacionado a garantir coerência no movimento como um todo, dada a herança que carrega de articulador dos movimentos que originaram as principais ênfases ecumênicas em curso.
O segundo momento, destacado aqui, o Mutirão, confirma esta reflexão. Foram centenas de projetos, organismos, grupos eclesiásticos e não eclesiásticos que ali estavam para partilhar suas ações, dando visibilidade ao mosaico de muitos corpos e muitos membros. Educação, gênero, teologia, meio-ambiente, superação da violência, juventude, saúde, direitos humanos... difícil elencar aqui em poucas linhas todos os temas e motivações para ação e reflexão ali partilhadas por gente de mais de uma centena de países, de diferentes sexos, idades, etnias, culturas, confissões de fé. Estimulante e contagiante experimentar tanta vitalidade. Sim: o movimento ecumênico é muito maior do que as igrejas.
Com isso não quero dizer que não devamos continuar desafiando as igrejas à conversão. Como metodista, espero continuar trabalhando para que as lideranças da minha comunidade de fé refaçam o caminho de muros e obstáculos que construíram no último ano. Isto é, que abram mão dos projetos de poder institucional em nome do projeto maior de Deus, em que diálogo e partilha são palavras-chave, e não disputa e rancor. Isto é conversão, metanóia, sempre em pauta na caminhada cristã. Creio que o mesmo devem estar fazendo presbiterianos do Brasil, católico-romanos, pentecostais. E como o tem feito gente por todo o mundo, há motivos de esperança. Um deles é a articulação do Fórum Cristão Global, uma tentativa de articular os protagonistas das diferentes expressões de unidade que formam o movimento ecumênico contemporâneo, que vão muito além do CMI e das igrejas.
O CMI tem caminhado para reconhecer, a duras penas, é verdade, em meio muitas tramas políticas e financeiras, que seu futuro só será promissor se atrelado à sua vocação de articulador de movimentos, construída a partir de suas raízes. A Assembléia de Porto Alegre já sinalizou nas “conversações ecumênicas” que se se render definitivamente às armadilhas da institucionalização, o organismo estará fadado à extinção, quando menos, a um estado vegetativo.
Fato é que a história está reafirmando o que sempre nos mostrou: movimento é movimento e o barco ecumênico, por mais que sofra com alguns que queiram lhe tomar o leme ou agitar a água para pô-lo a pique, continua navegando nas correntes cada vez mais vigorosas, pois, como diz o poeta Paulinho da Viola: Não sou eu quem me navega/ quem me navega é o mar/ O leme da minha vida/Deus é quem faz governar/E quando alguém me pergunta/Como se faz pra nadar/Explico que eu não navego - Quem me navega é o mar.
Magali do Nascimento Cunha, leiga metodista, jornalista, professora da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo, membro do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas, representando a Igreja Metodista no Brasil e as igrejas-membro da América Latina.