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60º ANIVERSÁRIO DE ORGANIZAÇÃO DO CONSELHO MUNDIAL DE IGREJAS
Ano 3 - Nº 12
Setembro de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Entrevista com Júlio de Santa Ana
Por: Zwinglio Dias
Data: 23/06/2008

Os companheiros de “Tempo & Presença” me propuseram uma entrevista sobre o desenvolvimento do movimento ecumênico. Trata-se de uma conversa “virtual”, como tantas que ocorrem em nossos dias.  Submeto-me à mesma com sentimentos contraditórios.  Por um lado, porque me interesso, apaixonadamente, pelo movimento ecumênico. Desde que me converti ao Evangelho (quando tinha menos de 15 anos! Já se passaram mais de 60 desde então!...), sempre considerei que a maneira de ser evangélico era inseparável da busca pela unidade dos cristãos. Minha posição ao responder às perguntas que me foram enviadas por Zwinglio Dias, por meio do computador, não é neutra. É uma entrevista “partidária”, que vai defender a causa da unidade dos cristãos (que, diga-se de passagem, significa muito mais do que a “unidade das igrejas” ; sobretudo é a unidade dos crentes, das comunidades de crentes).

Mas, reconheço que se me considero um militante ecumênico, isto se dá num período no qual o empenho para alcançar a unidade dos que querem viver com fidelidade ao Evangelho é mais difícil de conceber em nosso tempo do que há vinte ou trinta anos. Não apenas porque hoje se fala de “crise do ecumenismo” e se entende o conceito de diversas maneiras. Já faz seis anos que sou um participante “aposentado”, “afastado” das posições oficiais.  Este fato impõe uma distância que se deve respeitar; não creio que possa dizer (como Jorge Manrique nas famosas Coplas a la Memória de su Padre) que “todo tempo passado foi melhor”,  coisa que requer um certo cuidado e uma certa sobriedade nos julgamentos. Espero poder responder às perguntas dos companheiros e amigos de KOINONIA com o discernimento adequado.

Tempo & Presença: Atualmente, muito se fala de uma crise do Movimento Ecumênico e do CMI em particular. A que você atribui esta falta de dinamismo e incidência do CMI na vida das igrejas e das sociedades em geral, nas últimas duas décadas?

Julio:  Desde as últimas duas ou três décadas do século passado há vários processos que contribuem para promover uma tomada de consciência de que há coisas que estão mudando muito em nossa história. Entre elas é preciso mencionar a queda da União Soviética (URSS), que levou ao desaparecimento do Pacto de Varsóvia e do COMECON  (a Comissão econômica formada pelos países comunistas e liderada pela URSS). Outra mudança muito importante está se realizando graças à introdução acelerada das inovações tecnológicas no campo da informática (que estão em constante evolução) que contribuem para a criação de uma nova consciência do lugar do ser humano em nossas sociedades, na economia do mundo, na política, dando forma a uma cultura que vai transformando a percepção de nossa realidade, inquietando-nos com suas realizações que, muitas vezes,  nos assombram e nos desorientam ao mesmo tempo.
Esta realidade, para muitos, se concentrou na “queda do muro de Berlin” e nas transformações que aconteceram em torno do desaparecimento da URSS. Então, foram muitos os habitantes do planeta que viveram momentos de euforia: a guerra fria tinha terminado! O liberalismo (em suas diversas formas: econômico, político, etc.) surgiu como triunfador, subjugando tudo o que encontrava pela frente. Nesses anos a expressão “globalização” se pôs de moda e com ela se indica uma nova consciência mundial: integração de mercados (seguindo o modelo dos mercados financeiros),  assim como, também, uma situação na qual os grandes países emergentes se fazem sentir com um novo ímpeto no concerto internacional (China, Índia, Brasil, África do Sul, etc.).
Muitos se surpreenderam (e ainda hoje se surpreendem) com o impacto dessas mudanças. Em grande parte porque a euforia do final do século passado não se confirmou. As perspectivas que pareciam abrirem-se ao otimismo deixaram de confirmá-lo.  Hoje se percebe o espectro da crise, financeira, econômica, política, ecológica. Uma realidade sombria ganha espaço.  Os conflitos internacionais tendem a se tornar mais agudos.  As diversas sociedades do planeta buscam motivos que lhes dêem segurança, que existiam ontem, mas que, hoje, parecem dissipar-se.  Nesta conjuntura, fortemente marcada por uma ameaçadora instabilidade, grandes contingentes humanos procuram encontrar refúgio nas diversas religiões do mundo. Entretanto, se estas conseguem dar abrigo aos povos, não chegam a garantir que as pessoas superem seus temores.

A crise do “Movimento Ecumênico” e do CMI “em particular”, em boa parte se explica pela inadequação das crenças religiosas frente a esses processos que estão em desenvolvimento, longe de culminar e ainda não cristalizados. As religiões não enfrentam as difíceis situações que nossos povos atravessam. Há conflitos que perduram e tendem a se tornar mais amplos, como é o caso dos israelenses com os palestinos e outros vizinhos árabes.  Em outra ordem de coisas, os mercados mundiais dão sinais de crescente desordem;  as diversas opiniões das religiões não conseguem se articular de modo a repercutir como vozes responsáveis.
Frente aos graves problemas mundiais as religiões discutem que posições devem adotar frente às questões de gênero. Por exemplo, se podem aceitar que as mulheres disponham livre e responsavelmente de seus corpos. Ou se tem que ordenar as mulheres para que exerçam o ministério. Ou, no caso do Islã, se devem responder ao chamado da djihad em nosso tempo.  Os budistas debatem se podem empregar a violência... Evidentemente que são questões que preocupam as comunidades de crentes, que estão presentes em suas consciências; entretanto, não são as mais prementes no mundo em que vivemos.  Dizendo a mesma coisa com outras palavras: não me parece que as religiões estejam à altura dos desafios mais graves do mundo atual.

Os dirigentes ecumênicos do século XX demonstraram uma grande capacidade para fazer frente a alguns problemas muito graves experimentados pela comunidade dos crentes.  Neste sentido, tinham uma consciência clara de que deviam atuar em seu contexto, que sua ação tinha que ser pertinente e responsável.  Pode-se não estar de acordo com suas decisões, mas demonstraram, através delas, serem homens e mulheres de seu tempo.  Hoje,  frente à situação que vivem as comunidades, manifestam, sobretudo que querem “salvar as instituições” (para dizer de forma mais direta: “salvar os móveis”). O excesso de cuidado que expressam é um indicador de que não é a missão, nem o testemunho social comprometido o que mais lhes preocupa, mas, sim, a preservação de suas instituições e suas tradições.

Os responsáveis pelo Movimento Ecumênico (que optaram por formar o Conselho Mundial de Igrejas) formaram uma comunidade de amigos (no sentido que Jesus deu a essa palavra no capítulo 15 do Evangelho de João, versículos 12 a 17).  Não se conheciam antes de se encontrarem no caminho que buscava a unidade do povo de fé, mas confiaram uns nos outros e decidiram fazer algumas coisas juntos: defender e promover os direitos humanos, lutar contra o racismo, dar um testemunho válido do Reino de Deus e sua justiça, opor-se aos totalitarismos. Compreenderam que esse testemunho de unidade os conduziu a uma teologia das realidades humanas; que a liturgia das comunidades não tinha que estar desvinculada da fé que as levou a agir neste mundo. Deste modo, reforçaram a unidade e a obediência de uma fé que as igrejas entenderam viver com suas diversidades peculiares, mas cada vez mais juntas.

Essa atitude não parece ser a que prevalece atualmente. Quando se pretende conseguir a afirmação das instituições religiosas e que suas crenças tradicionais sejam reafirmadas, talvez se consiga o apoio e a adesão de multidões.  Entretanto os espíritos mais dispostos e abertos a viver a fé no Evangelho não se sentem inclinados, entusiasmados a correr riscos por causa do Reino de Deus.  O que acontece hoje é algo que já se experimentou várias vezes na história espiritual dos povos. A existência das igrejas se alimentou de seu conteúdo. Quando esta situação prevalece o carisma perdura, mas tende a influir menos sobre a vida dos crentes....

Tempo & Presença: Há mais de 15 anos o Dr. Konrad Raiser, ex-Secretário Geral do CMI, publicou um livro com o interessante título de “Ecumenism in transition”, no qual chamava a atenção para o fato do “paradigma ecumênico” estar em processo de mudança. Isto de fato se efetivou? Para onde foi ou está indo o Movimento Ecumênico e, com ele, o CMI?

Julio: Foi muito sugestivo esse livro de Konrad Raiser.  Foi uma voz muito autorizada que expressou uma tomada de consciência de uma boa parte daqueles que formavam uma geração que, entre 1968 e 1992, deram um sentido claro à ação do Movimento Ecumênico. Philip Potter, José Miguez Bonino, M.M. Thomas, Pauline Webb, o General Simatupang, foram algumas das figuras mais importantes. Konrad Raiser foi quem melhor articulou as posições desses líderes que, agora, podemos considerar como a segunda geração ecumênica  (a primeira teve a J.H. Oldham, a John R. Mott, a John Mackay, W. A. Visser’t Hoof como dirigentes, entre outros.).

A tese principal (de Raiser) se baseou no trabalho de Thomas Kuhn sobre “A estrutura das revoluções científicas”, em que o historiador das ciências exatas praticadas no Ocidente diz que suas transformações acontecem quando um paradigma se esgota, dando espaço para que outro surja.  Kuhn fez valer sua concepção no campo das ciências duras.  Raiser se inspirou em suas argumentações.  Por enquanto  (e a publicação da obra de Raiser sobre o Movimento Ecumênico foi feita originalmente em alemão nos inícios dos anos noventa) se mantêm o caráter interessante e sugestivo do livro, mas sua proposta sobre uma mudança de paradigma ainda está por ver-se.

Não posso dizer que não se cumprirá. Há uma coisa que precisa ser dita: o livro de Kuhn trata da história das revoluções científicas. Há uma diferença, uma distância importante entre as “revoluções científicas” e as transformações das ciências humanas. Isto é, ainda, mais evidente se nos referimos a correntes culturais e espirituais como é o caso do ecumenismo moderno.  Não devemos esquecer que no campo das ciências das religiões estão se produzindo transformações importantes;  já nos referimos à tendência atual de muitas instituições religiosas ao conservadorismo e à preservação própria, numa situação na qual parece que se correm certos riscos.  Entendo que não é isto que Raiser tinha em mente ao escrever seu livro. Ele quis destacar, principalmente,  o caráter renovador do Movimento Ecumênico. Dadas as circunstâncias atuais, a pregação de uma mudança paradigmática no movimento tem que ser corroborada pelos fatos. A menos que a mudança de modelo, o novo paradigma, seja o que indica um predomínio mais forte das instituições tradicionais.

Tempo & Presença: As mudanças sofridas pelo mundo nos últimos 20 anos, a partir do fim da União Soviética e o triunfo do Capitalismo Neoliberal tiveram uma resposta adequada por parte das igrejas envolvidas com o Movimento Ecumênico e do CMI em particular?

Julio:  Em grande parte a resposta a esta pergunta foi dada ao responder a primeira questão desta entrevista. A força com que se fez notar o triunfo do capitalismo neoliberal, que na minha opinião deve ser considerado como formando um todo, junto com o fim da União Soviética,  e com a versão dominante da globalização  (para que tudo forma um só pacote, no qual os diversos agentes históricos que participaram do processo se entrelaçam e se amalgamam)  foi tão surpreendente, tão impactante, que a maioria das Igrejas (entre elas as que formam parte do CMI) aderiu à euforia produzida pelo colapso do chamado “socialismo real”.  Teve muito peso o que aconteceu na Polônia, onde a participação da Igreja Católica Romana e do Papa João Paulo II no processo que levou à queda do governo do Partido Comunista,  assim como o que aconteceu na Rússia, Estônia, Letônia, Lituânia, Bulgária, Ucrânia, Bielorússia, Geórgia, etc., onde as Igrejas foram agentes da resistência aos governos comunistas de seus respectivos países.  As Igrejas entenderam que, nesse contexto,  deviam jogar a carta da solidariedade entre as diferentes confissões e denominações.  Frente aos fatos que aconteceram, durante a última década do século passado, deram testemunho de uma consciência triunfante e de apoio.

Porém, insisto:  este apoio incluiu muito mais do que respaldo à queda do comunismo. Houve uma adesão clara ao capitalismo neoliberal, ao triunfo do “mercado”  (na época se repetia: “menos Estado, mais mercado” ),  que alimentou o clima de euforia desse período.  Durante um lapso muito curto se chegou a pensar que os grandes conflitos que tinham sacudido o mundo durante o século XX tinham ficado, definitivamente, para trás.  Mas não aconteceu como (ilusoriamente) se pensava.  Produziram-se uma série de crises financeiras que desembocam no momento,  numa crise econômica mundial que os analistas entendem que durará de dois a três anos, pelo menos  (alguns chegam a pensar que esta série de situações críticas começou no final de 1994 com a crise mexicana, que continuou com a primeira crise asiática, com a russa, depois com a segunda crise asiática, com a argentina e que explodiu, ultimamente, nos Estados Unidos, podem ser consideradas etapas de um mesmo processo.).

Como responderam as Igrejas e o Movimento Ecumênico a este processo que levou de uma postura de otimismo até à insegurança que reina em nossos dias? Por um lado apontando, de forma geral, os males produzidos pelo capitalismo neoliberal dominante. Entendo, entretanto, que não houve profundidade na análise ecumênica da realidade econômica vigente.  No século XX o discernimento dos problemas econômicos, por parte do CMI, calava mais fundo. É certo quer no lapso dos últimos 15 anos têm-se denunciado as injustiças do sistema, seus desequilíbrios e suas contradições, mas com um discurso que tem mais adjetivos que substância.  Muitos têm a impressão de que os responsáveis ecumênicos repetem um discurso “politicamente correto”. Não se contribui para que as igrejas entendam, vejam com clareza como estão implicadas no sistema.  Este é atacado como se as igrejas não tivessem nada que ver com o próprio;  não se procura ver como as igrejas e as comunidades estão diretamente implicadas no que está acontecendo.
Quero dar um exemplo que me parece muito importante e que exige uma disposição maior das igrejas para que dêem um testemunho do Evangelho em nosso tempo.  Refiro-me às correntes migratórias (de migrações internas ou internacionais), que exigem respostas múltiplas, portadoras de atenção e de cuidados responsáveis para aqueles que migram.  As migrações dão lugar às situações que influem diretamente sobre a vida das comunidades religiosas. O fenômeno, tal como se desenvolve em nosso tempo,  está dando lugar ao surgimento de uma nova consciência social de que é necessário agir solidariamente em muitos planos da vida em uníssono: social, econômico, legal, cultural, etc.  Trata-se de um problema ante o qual as palavras de nossos discursos não são suficientes.  O Conselho Mundial de Igrejas foi pioneiro em despertar a consciência das igrejas para prestarem um serviço significativo para aqueles que tiveram de migrar. Tomar consciência de uma dimensão cabal do problema e dispor-se a agir em conseqüência me parece uma prioridade.

Há uma questão com a qual encerro minha resposta à pergunta. Tem relação com os meios financeiros disponíveis para dar uma resposta significativa a um problema como o das migrações em nosso tempo. As agências ecumênicas de cooperação financeira estão dispostas a apoiar o Movimento Ecumênico (não apenas ao Conselho Mundial de Igrejas) para que possa atuar à altura da situação? Um dos problemas do ecumenismo atual é que se encontra, em grande medida, prisioneiro das decisões e acordos políticos das agências de financiamento. Estas dão apoio ao que lhe parece mais adequado; por exemplo,  (o que menciono aqui é um caso que tomo de passagem, entre vários),  há mais de três anos que existe a “Rede Ecumênica da Água”.  Ninguém pode por em dúvida de que a água se tornou uma riqueza vital.  Mas não é um assunto de absoluta prioridade.  Se existe esta “REA” se deve a organismos financeiros de cooperação que estão dispostos a apoiar financeiramente este programa.  Entendo que há outros problemas da realidade mundial que as comunidades ecumênicas, as comunidades religiosas, as igrejas têm que enfrentar e agir. Nestas condições parece que o que resta é a possibilidade de fazer uso de uma retórica declamatória. Esta, no entanto, quando não é sustentada por uma ação mais eloqüente que as palavras, tende a ser deixada de lado.

Tempo & Presença: Podemos afirmar que no passado o CMI foi um Conselho de Igrejas preocupado com a transformação da sociedade humana e oferecendo subsídios teológicos e pautas de ações possíveis para suas igrejas-membro e que,  já de algum tempo para cá isso deixou de acontecer, tendo o CMI se transformado num Conselho das Igrejas? Ou seja, tornou-se refém de seus interesses institucionais?

Julio:  Perece-me muito boa a distinção entre um Conselho de Igrejas e um Conselho das Igrejas. Na breve história do CMI sempre houve uma tensão entre ambos, desde a sua fundação.  Tenho a clara impressão que o peso da balança se inclina, em nosso tempo,  para um Conselho das Igrejas. A evolução seguida pela Igreja Católica romana é um elemento que gravita nesse sentido.  O Concílio Vaticano II abriu as portas da Igreja de Roma para o aggiornamento, a modernização. Era um caminho que as Igrejas-membro do Conselho Mundial de Igrejas haviam empreendido. A década de sessenta foi um tempo no qual predominou uma maior abertura do Movimento Ecumênico. Quando o Concílio Vaticano II terminou (em 1965) muitos creram que era questão de pouco tempo para a Igreja Católica Romana tornar-se membro do CMI.

Entretanto, a partir dos primeiros anos do decênio seguinte se pode observar como se aplicavam, sutilmente, freios a esse processo de modernização eclesiástica (não apenas na Igreja de Roma, mas entre algumas Igrejas Ortodoxas, a Igreja da Inglaterra, etc.). Quando Paulo VI visitou Genebra (em 1969) disse: “Eu sou Pedro” com a clara intenção de marcar diferenças entre uma Igreja que podia entrar em concílio e um conselho de igrejas. Entendo que é um fato que o aumento de contactos com Roma contribuiu para acentuar esta tendência; é preciso observar que a Igreja Católica Romana é a que tem mais fiéis, mais história e um maior peso institucional.  As outras Igrejas,  embora mantenham suas distâncias em relação ao Vaticano,  sentem certo respeito e admiração pelo peso institucional da Igreja de Roma.  Lamentavelmente,  quando a atitude responsavelmente crítica tende a tornar-se docilidade o diálogo ecumênico perde intensidade.

Esta orientação foi tornando-se mais clara entre as Igrejas que formam o CMI na medida em que o tempo foi passando depois do término do Concílio Vaticano II. A partir daí foram criados vários organismos que oferecem às Igrejas do Conselho Mundial de Igrejas  (e a outras) a oportunidade de se reunirem com freqüência com representantes do Vaticano. Assim torna-se mais forte a linha que, consciente ou inconscientemente, é favorável a um Conselho das Igrejas.

Tempo & PresençaA que você atribui a pouca incidência do Movimento Ecumênico na América Latina apesar do trabalho do CLAI e de tantos organismos ecumênicos?

Julio: Creio que uma perspectiva história é necessária para tentar responder esta pergunta.  A evolução do Cristianismo na América Latina esteve dominada pela Igreja Católica Romana. Algumas denominações irromperam nas sociedades latino-americanas durante o século XIX. Durante as primeiras décadas as relações foram polêmicas: por um lado o Catolicismo-romano reafirmava um pretendido monopólio que não dava oportunidade para que outras crenças e outras confissões/denominações pudessem expressar-se.  E, por outro lado, os crentes evangélicos adotaram posições contrárias ao Catolicismo; muitas vezes somaram suas vozes às daqueles que se opunham aos católicos reivindicando uma maior liberdade religiosa.

Esta situação mudou quando surgiram algumas iniciativas que tentaram pôr em movimento um “ecumenismo” protestante. A Conferência Missionária Mundial de Edimburgo (1910) não aceitou que representantes evangélicos latino-americanos pudessem participar.  Poucos anos depois (1916), os excluídos de Edimburgo se reuniram no Panamá com o objetivo a dar impulso a um Cristianismo Evangélico Latino-americano. Talvez, os resultados mais positivos desse esforço tenham sido a fundação e o desenvolvimento de movimentos evangélicos de jovens, entre os quais se deve citar a União Latino-americana de Juventudes Evangélicas (ULAJE) e os Movimentos Estudantis Cristãos (os grupos que, na América Latina, se relacionaram com a Federação Universal de Movimentos de Estudantes Cristãos). Uma das reuniões convocadas por essa federação em nível latino-americano se realizou na cidade de Cochabamba, Bolívia. Foi em princípios de 1955 e ali se fez uma declaração muito importante:  que as relações ecumênicas na América Latina tinham que incluir a representantes da Igreja Católica.  Reconheceu-se a importância da Igreja Católica Romana como igreja. Nesses anos se começou a superar o tempo da polêmica.

Poucos anos depois, com o pontificado de João XXIII se manifestou um espírito mais disposto ao diálogo com os “irmãos separados”.  Pouco a pouco se desenvolveram experiências de diálogo ecumênico entre nós.  Eram expressões de grupos minoritários. Foi na década de sessenta e durante os primeiros anos da década seguinte que teve lugar uma experiência como a de “Igreja e Sociedade na América Latina” (ISAL) Três coisas tem de ser ditas a este respeito:  primeiro, foi uma expressão minoritária. Segundo, ISAL foi um movimento que reuniu grupos que sentiam a necessidade de impulsionar a renovação das Igrejas. ISAL foi o pilar ecumênico par excellence da teologia latino-americana da libertação. Terceiro, a grande maioria das Igrejas evangélicas tiveram um atitude crítica e de rechaço com respeito à ISAL.

Durante o período entre 1960 e 1978 o impulso ecumênico também motivou a criação do Movimento Provisório pela Unidade Evangélica Latino-americana (UNELAM) que frutificou até 1980 com a criação do CLAI.  Este aparece com o favor de Igrejas evangélicas que já se distinguiam por uma opção favorável ao ecumenismo. Não corresponde à maioria evangélica e pentecostal que existe na América Latina.  Esta maioria entende ainda que o movimento ecumênico constitui um perigo para o testemunho evangélico das igrejas. É evidente que não existe uma informação adequada sobre o ecumenismo, que a maioria das igrejas mantém certos preconceitos contrários frente a este.  Concomitantemente, os que aderiram ao movimento ecumênico, sejam pessoas, comunidades ou igrejas,  têm que fazer um esforço para comunicar melhor o ecumenismo.

O crescimento das igrejas pentecostais se produziu mantendo-se este esquema.  As sociedades latino-americanas experimentam um certo processo de modernização ao mesmo tempo em que mantêm características tradicionais. Uma destas é o caudilhismo  (se diz que “tem muito cacique e poucos índios”). Outra tem que ver com a renovação da cultura e das atitudes políticas dos setores populares que persistem em manter posturas tradicionais de desconfiança e suspeita frente a muitos impulsos que procuram promover mudanças na vida dos povos latino-americanos.  O ecumenismo se apresentou na América Latina como fermento favorável à mudança, inclusive, às vezes,  como agente radical que buscava transformações sociais e a renovação das igrejas.

Entretanto, entendo que, inclusive em nosso tempo, não são muitos os que desejam transformar a idoneidade de nossa gente, nossa maneira de ser. Além disso, o fato de que a história do Movimento Ecumênico nos diga que se trata de algo que conta, sobretudo com financiamento exterior, não é algo favorável para promova sua aceitação por parte de muitos latino-americanos  (deve-se levar em consideração que uma das coisas que leva à adesão ao pentecostalismo é que conta com recursos que, em grande parte,  vem do próprio povo).

Não obstante estas notas, não sou pessimista nem negativo com respeito à evolução do movimento ecumênico em nosso contexto. Para mim é importante recalcar que valem mais as opções que o apoio das maiorias. Por exemplo, tem sido quase sempre as minorias as que têm feito valer e têm defendido os direitos humanos em nossos países. As ideologias que tem promovido o progresso social não têm, nem nos dias atuais, o apoio das grandes massas. Para indicar um exemplo  (sem que com isto queira encerrar a discussão), Jesus terminou seu ministério sendo abandonado pelo povo e até um de seus discípulos o traiu, enquanto que outro o negou.  Com isto quero dizer que, pelo menos do ponto de vista teológico, o argumento que dá às maiorias um papel de legitimação, não é válido.  O testemunho do Evangelho não se valida porque sejam muitos os crentes.  Creio que o movimento ecumênico tem dado um testemunho evangélico válido em certas oportunidades. Equivocou-se em outras. Pode melhorar sempre. Sua preocupação deve ser:  O que é que Deus quer de nós? Creio que é possível afirmar que Deus não é demagogo...

Tempo & PresençaO recuo ecumênico da Igreja Católica Romana e das Igrejas Protestantes históricas e o agressivo crescimento do movimento neopentecostal não ensejam um outro modelo de ação ecumênica que parta das necessidades materiais e espirituais concretas do povo?

Julio:  Entendo que o Movimento Ecumênico é chamado para ser um sinal de serviço aos pobres (“o povo”). Dito isto me parece que o pensamento, a doutrina e a ação social do “movimento neo-pentecostal” possam ser considerados como uma fonte de aprendizagem.  Basta pensar como procura difundir a chamada “teologia da prosperidade”, claramente contrária ao Evangelho de Jesus, ao Evangelho do Reino Deus, para substanciar o que estou dizendo.

O Movimento Ecumênico procura a unidade dos que ouvem o chamado à missão de Deus, que procura em primeiro lugar o “Reino de Deus e sua justiça”. Não me parece que no mundo atual esta seja a finalidade das igrejas neo-pentecostais. Insisto: pode ser que querendo fazer a vontade de Deus através das expressões do movimento ecumênico moderno não tenhamos feito o que Deus esperava de nossas comunidades ecumênicas. Se foi isto que aconteceu é próprio e necessário que nos arrependamos e busquemos a renovação de nossa vida na graça de Deus. É ele quem nos guia sempre para o Reino. Mas, sempre, pelos caminhos de nosso mundo.

Tempo & PresençaNão seria uma ação pela Afirmação de Direitos e contra a Intolerância religiosa uma nova oportunidade para uma reconfiguração do Movimento Ecumênico com ênfase no diálogo inter-religioso?

Julio:  Sim. Estou plenamente de acordo. Entretanto, não seria “uma nova oportunidade”. A história espiritual dos povos, não só os cristãos,  mas todos, indica a importância que tiveram esses momentos nos quais se optou por uma nova maneira de ser, oferecendo um novo começo para a história.   Penso em Abraão e o começo de sua peregrinação pelo mundo, e assim como aconteceu com ele se me impõe o exemplo de Jesus de Nazaré, do Apóstolo Paulo, de Francisco de Assis, de Mahatma-Gandhi, do Pastor Niemöller, de Desmond Tutu, de Martin Luther King e de muitos mais. O Movimento Ecumênico tem que estar alerta e discernir os sinais dos tempos que lhe indicam novos caminhos a seguir.

O mundo atual, no qual não podemos limitar a história a uma única linha (a globalização liberal nos está dizendo que não é a preservação das instituições religiosas o que têm de mover os crentes.  São outros os caminhos a seguir.  Neles não conta o valor de nossas ações, mas dar um testemunho humilde desse mistério que chamamos “graça divina”.

Esta maneira de “viver na espera da graça” é o que permitiu ao Movimento Ecumênico poder ser significativo.  Isto, em algumas oportunidades, deu certa vigência ao Conselho Mundial de Igrejas. Quero terminar recordando uma boutade de Alfred Loisy. Ele a disse há cerca de um século:  “Jesus veio pregando o Reino de Deus e o que apareceu foi a Igreja.” Queremos que todos possam participar na Igreja, e, por isso,  muitas vezes tratamos de empurrá-los à força no marco de nossas instituições religiosas.  Quando isto acontece, somos intolerantes. Desejamos que “o outro” ou “a outra” seja como nós. É um sinal de intolerância, de desconhecimento do ser do outro ou da outra.  O Movimento Ecumênico vive na esperança de ter a experiência do Deus santo no encontro com aqueles que nos surpreendem com seu ser diferente. Estou convencido de que o CMI tem dado a oportunidade para que seja possível esta experiência da graça. E que pode continuar oferecendo-a (mas não procurando a sobrevivência das instituições religiosas).

23 de julho de 2008.

Dr. Julio de Santa Ana, teólogo uruguaio, doutor em Ciências da Religião, ex-Secretário Geral do Movimento Igreja e Sociedade na A. Latina, ex-Diretor da Comissão de Participação das Igrejas no Desenvolvimento, do Conselho Mundial de Igrejas; ex-Diretor do CESEP-SP e ex- Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP-SP. Atualmente reside em Genebra.Autor de vários livros, entre eles Ecumenismo e Libertação, a Igreja e o Desafio dos Pobres, ambos publicados pela Ed. Vozes. Colaborador permanente de  Tempo & Presença

Entrevista e tradução: Zwinglio Dias