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GÊNERO: DA DESIGUALDADE À EMANCIPAÇÃO?
Ano 3 - Nº 8
Abril de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Gênero - uma experiência vivida e um caminho a percorrer
Por: Marilia Schüller

Introdução
Quando este artigo sobre gênero me foi pedido, com o pedido me foi dada a liberdade de escolher o conteúdo. Não pude deixar de ponderar sobre o quanto é bom ter a liberdade de escolher o caminho que aprouver no cumprimento deste exercício. Entretanto, logo me dei conta que liberdade é um desafio! Isso porque a liberdade não vem com um pequeno manual de instruções indicando como usá-la! Experimentar a liberdade é também deparar-se com as dúvidas sobre o caminho, deparar-se com a questão da escolha entre tantos caminhos... Assim foi que escolhi o caminho de elaborar uma reflexão sobre duas experiências distintas, que abordam o mesmo tema. Uma das experiências, é a passada, vivida no Conselho Mundial de Igrejas quando da elaboração do documento entitulado “Diretrizes sobre Gênero para o Secretariado do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra”. A outra, é a experiência presente, esta de ser parte de KOINONIA e de participar do processo interno que, esperamos firmemente, conduzirá à elaboração de uma política institucional de gênero.

Em relação à primeira, o que faço aqui é muito mais ressaltar elementos que considero de particular importância no próprio texto das Diretrizes. Quanto à segunda, é muito mais um “pensar em voz alta”, inspirada pelas reflexões da experiência anterior. Porém, sem nenhuma intenção de continuidade. Ambas as experiências são distintas.

É importante dizer logo de início que, senso comum, gênero tem sido entendido como sinônimo de “a questão da mulher”. Não é totalmente incorreta esta compreensão, pois de fato as mulheres estão nela implicadas. Entretanto, é uma compreensão parcial e simplista. A questão de gênero diz respeito sim à inclusão das mulheres, mas vai mais além. É relacional e complexa. Diz respeito a homens e mulheres pelos diferentes pápeis que desempenham devido à sua diferente natureza biológica e ao valor desigual que é atribuído a estes papéis na sociedade e nas instituições, dando a supremacia ao homem e a tudo que representa o masculino. Diz respeito às relações entre homens e mulheres em todas as esferas da vida, sejam estas vividas na família, no trabalho, na religião, na cultura, na comunidade... Diz respeito às relações assimétricas de poder entre ambos em consequência direta de seus diferentes papéis. Diz respeito à falta de igualdade no acesso a postos de chefia, de tomada de decisões ou postos aonde se exerce o privilégio de se definir políticas e culturas institucionais. Diz respeito à construção de caminhos de eqüidade entre homens e mulheres, na promoção da vida e de qualidade de vida.

À complexidade das relações descrita acima, somam-se outras diferenças. Homens e mulheres são também de diferentes contextos culturais, de diferente ascêndencia etnica, de diferentes idades. Uma análise aprofundada de gênero tem de analisar estas relações também, pois tais vivências são essenciais na compreensão das relações entre as pessoas, posto que não podemos separar o ser homem de ser homen-negro, o ser branca de ser mulher-branca ou de ser homen-negro-jovem e de ser mulher-negra-na-terceira idade. Nas palavras de Ivone Gebara, “ a diferença de gênero é uma diferença entre uma multiplicidade de diferenças: diferenças entre homens e mulheres, entre homens e homens e entre mulheres e mulheres. E essas diferenças se cruzam com as diferenças de idade, de cultura, de religião e muitas outras.” 1

As Diretrizes sobre Gênero para o Secretariado do Conselho Mundial de Igrejas em Genebra
O secretariado do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) na Suiça é um espaço aonde esta diversidade toma corpo e expressão como em poucos lugares do mundo. Ali a diversidade faz parte do ethos mesmo da organização. Afinal, a organização é uma pequena expressão da Oikoumene de Deus. O Secretariado do CMI acolheu a proposta do grupo consultivo sobre gênero, que já existia na estrutura da organização, e empreendeu entre os anos 1995 e 1998 um processo de ação e reflexão sobre o tema, cujo resultado é as Diretrizes.

A necessidade de diretrizes sobre gênero surgiu do próprio reconhecimento de que a desigualdade e a falta de eqüidade entre homens e mulheres estava presente tanto na sociedade como nas igrejas. O Secretariado em Genebra não era nenhuma exceção. O CMI como entidade cristã, afirma que homens e mulheres são criados igualmente à imagem de Deus e são participantes iguais no corpo de Cristo. Portanto, o imperativo de enfrentar o desafio da questão de gênero tem uma significação especial nesta organização, onde está presente uma teologia subjacente e uma compreensão de espiritualidade que afirmam a inclusão e a justiça. 2

O documento foi elaborado em um momento em que o CMI estava revendo cuidadosamente a sua estrutura de programas. Compreendia-se que o trabalhar por relações justas e fraternas dentro das suas próprias estruturas, era imperativo. O momento também pedia novos estilos de trabalho, de flexibilidade e de metodologias cooperativas.

As diretrizes responderam particularmente a duas áreas: 1) O ethos: a visão, os princípios e valores da organização, baseados no Evangelho e sua mensagem de dignidade humana e respeito mutuo, e 2) a preocupação de construir, apoiar e alimentar uma comunidade que vive o seu chamado como parte do povo de Deus. Neste espírito,  as diretrizes apresentavam métodos para monitoramento e avaliação do trabalho feito como parte do apoio e sustentação de uma comunidade justa.

Ethos
Pelo próprio ethos do CMI e a crença fundamental na dignidade das pessoas humanas, valores como amor mútuo, respeito mútuo, compreensão e confiança mútuas são explicitamente mencionados.
(...) - Valorizamos nossa riqueza confessional, cultural e diversidade de gênero afirmando e     encorajando a maneira como trabalhamos como realizamos reuniões, e exercemos a liderança.
(...) - Providenciamos condições de trabalho e benefícios que geram um sentido da segurança e de auto-estima para todos.
                - Valorizamos um ambiente no qual os homens e as mulheres aprendem em conjunto.
                - As nossas ações e decisões têm em mente as questões complexas de racismo, sexismo e                dircriminação por idade que é tão presente na sociedade.
                - As nossas ações e decisões são atentas às questões de poder, conscientes dos seus usos              positivos e negativos. Não esquecemos a mensagem do Evangelho de que o poder é dado para    o             serviço à comunidade. 3

Pela importância da integração da questão de gênero, as diretrizes explicitavam vários aspectos ligados ao pessoal. Algumas dessas são as seguintes:

  • A contratação de pessoal deveria incluir uma avaliação da sensibilidade da pessoa quanto à questão de gênero. Isto poderia se dar através de cartas de referência ou de situações no processo de entrevista;
  • Quanto a necessidade de orientação do pessoal e treinamento, propôs-se o desenvolvimento de oficinas de sensibilização de gênero para as pessoas recém contratadas;
  • Uma cláusula chamando atenção sobre a sensibilidade quanto à questão de gênero foi incluída nas descrições de deveres e responsabilidades de cada função;
  • Propôs-se oficinas de formação para a superação de conflitos;
  • Quanto ao exercício do poder propôs-se uma diretriz indicando a preferência por uma tomada de decisão baseada na consulta  a colegas, na participação e transparência na prestação de contas;
  • O equilíbrio entre o número de mulheres e de homens no quadro de pessoal também foi abordado, sendo que uma das diretrizes atribuia à Equipe de Liderança do CMI a responsabilidade de monitorar todas as nomeções de pessoal e de colocar em prática uma estratégia para alcançar o equilíbrio de gênero esperado em todos os cargos e em todos os níveis.

Esses são, de maneira resumida, alguns dos elementos explicitados pelas Diretrizes.

Essa experiência anterior é fundadora para mim, posto que foi a primeira experiência que tive de participar de um processo institucional de elaboração de uma política de gênero. Ora, esta experiência fundadora deixou registrada em minha memória as tantas questões às quais tínhamos de responder. Essas questões relacionavam-se diretamente ao ethos da organização que era, e ainda é, marcada pela complexa teia de relações de gênero, assim como denominacionais, étnico-racial, culturais e geográficas (Norte e Sul) 4.

Essa experiência também suscita em mim a esperança concreta de que a experiência presente - de ser parte de KOINONIA, de também poder participar de um processo interno que conduza à elaboração de uma política institucional de gênero - será de enraízamento e aprendizado a partir da realidade e experiências brasileiras. Portanto, será boa! Tão boa quanto são prazerosos e desafiantes os caminhos trilhados em parceria com outros e outras que compartilham o mesmo horizonte.

Assim, como recém chegada e como quem em mais um mês completa nove meses de presença e trabalho em KOINONIA, queria tecer aqui algumas considerações. Algumas dessas considerações estão embasadas em documentos de KOINONIA, outras são fruto de minha própria observação.

  • Uma das coisas que determina uma caminhada institucional quanto à questão de gênero é fazer disso um objetivo e por ele mobilizar a vontade política e pôr-se a caminho com determinação, buscando superar os eventuais obstáculos. Esse objetivo já é proposta há alguns anos na organização. A vontade política continua firme.

 

  • Políticas institucionais de gênero têm o potencial de agregar valores à qualidade de trabalho de uma organização, desde que tratadas como algo vivo. Ou seja, como instrumento para ser continuamente usado, implementado de modo prático, acompanhado de mecanismos de monitoramento e avaliação periódicas. Deste modo, uma política de gênero tem o potencial de agregar ainda mais valor à missão de KOINONIA, posto que seus programas, de caráter nacional com incidências locais, realizam atividades de produção do conhecimento, informação e educação. 5 Pela atuação da entidade em redes na busca de espaços democráticos, que garantem a justiça, os direitos humanos - econômicos, sociais, culturais e ambientais 6, uma política de gênero contribuíria para uma ação que iria mais além dos próprios programas específicos desenvolvidos por ela.
  • Igualmente beneficiado seria o campo das relações ecumênicas, no qual a instituição não só presta serviços, mas também é um agente político de mobilização e disseminação de valores. 7 Como fruto do processo participativo e democrático já iniciado, a política de gênero e sua implementação, agregaria paulatinamente novos elementos em termos de metodologias e análises, ampliando assim o alcance e a qualidade da própria ação e reflexão.

 

  • A presente realidade de inclusão de mulheres - e de homens - no quadro de funcionários da entidade, tanto na sede do Rio de Janeiro como nos seus escritórios em outras cidades (São Paulo, São José dos Campos e Salvador) num quadro diferenciado de funções, é um ganho já adquirido.
  • A construção de caminhos de eqüidade entre homens e mulheres expresso pelo equilibrio de gênero na composição do Núcleo de Articulação Institucional de KOINONIA também é de suma importância. Como dito anteriormente, o acesso a postos de tomada de decisões ou postos aonde se exerce o privilegio de se definir políticas e culturas institucionais, é vital para uma abordagem de gênero e para a vida da entidade também.

 

  • O respeito concreto à diversidade etno-racial, de idades, de culturas, de religiões, expresso na composição de seu pessoal, de seu público beneficiado e de seus programas específicos, condiz com a própria identidade e realidade brasileiras e é uma fonte de riquezas à ação e reflexão da organização.
  • A busca de estilos de trabalho flexíveis, de metodologias cooperativas, de respeito às individualidades, reconhecendo que os espaços de trabalho e privado não se delimitam com risca de giz, facilitam a integração dessas diferentes esferas de vida, beneficiando tanto homens e quanto mulheres.   

 

  • Em relação à vida em comunidade no dia-a-dia do trabalho, a entidade reconhece a necessidade de vigilância e reflexão atenta ao fato de que é no cotidiano que as relações de eqüidade e de tratamento igualitário entre homens e mulheres se estabelecem. 8
  • Avaliações conjuntas dos processos vividos já são uma prática, todavia há necessidade de fortalecimento. Essas avaliações possibilitam melhores relações entre as pessoas,  trocas de experiência, amadurecimento das reflexões e mudança. 9

 

  • Os recursos bibliográficos disponíveis sobre o tema de gênero na documentação institucional estão sendo ampliados. Neste exercício, seria relevante buscar recursos que trabalhem gênero em relação a segmentos específicos das comunidades às quais KOINONIA serve, como por exemplo, gênero e juventude rural, gênero e comunidades de terreiros de Candomblé, gênero e pessoas portadoras do HIV/AIDS.
  • O conhecimento sobre a vivência de gênero das comunidades às quais a entidade está ligada e às quais presta serviço de assessoria, pode contribuir ao aprendizado de como essas comunidades lidam com as questões de gênero e com a integração de suas  contribuições ao processo de elaboração da política de gênero.

 

  • A elaboração de reflexões sobre as práticas de cada programa, buscando responder à questão de como as realidades encontradas impactam diferentemente sobre mulheres e homens, está sendo abordada no planejamento. Algumas das seguintes perguntas e suas variações poderiam ajudar na reflexão:

     -- Como a discussão de relações de gênero seria aplicada em um programa específico?
-- Como o olhar de gênero se apresenta nas análises e levantamentos de dados do programa?
-- Como trabalhar as desigualdades de gênero em todas as ações de cada programa?

  • Quando e onde fosse pertinente, a promoção de oficinas inter-programáticas sobre a questão de gênero, possibilitaria que os diferentes públicos – comunidades negras urbanas e rurais, comunidades de terreiros de Candomblé, agentes de saúde na prevenção do HIV/AIDS, trabalhadores rurais, lideranças das igrejas, interagissem, promovendo assim um compartilhar mais amplo do aprendido e ampliação do conhecimento.

 

Essas duas experiências brevemente compartilhadas aqui, respondem a realidades institucionais diferentes, a diferentes momentos históricos e a contextos diferentes. Entretanto, ambas buscam construir caminhos de igualdade entre homens e mulheres e, deste modo, integram em suas ações específicas uma prática transformadora.  Neste sentido, é importante sublinhar que a construção de uma política de gênero numa instituição tem o potencial de gerar uma transformação organizacional. Tal transformação poderá ser refletida no modo como a visão e a contribuição de homens e mulheres são integradas à maneira de ser da própria organização. Mais além da própria instituição, essa transformação se vincula a outra mais ampla e também fundamental: a afirmação da vida e da construção de um mundo mais justo e igualitário.

 

Marilia Schüller, Missionária da Igreja Metodista Unida e Assessora do Programa Redes Ecumênicas e da Sociedade Civil (RESC) de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. 

GEBARA, Ivone. Rompendo o silêncio : uma fenomenologia feminista do mal.Petrópolis, Editora Vozes, 2000., p. 105.

Gender Guidelines for the Secretariat of the World Council of Churches in Geneva, Geneva, Switzerland, Executive Committee document 1.3, February 1998, p. 1

Idem.

Leia-se Norte-global e  Sul-global.

KOINONIA, Presença Ecumênica e Serviço. Folder oficial da entidade. Parágrafos sobre a Missão.

Idem.

Idem.

Notas sobre a atividade da Oficina de Gênero, Dezembro de 2007, p. 2.

Idem.

Notas. Comissão de Trabalho de Gênero do Núcleo de Articulação Institucional de Koinonia, 2007.