O grande problema é o que o cristianismo ainda espera ser dentro do modelo hegemônico ocidental. O impasse que revela nossa covardia é o medo das hierarquias eclesiásticas de enfrentarem o mercado e sua religião... dedicando-se aos desvios e perturbações dos corpos dos fiéis: homens e mulheres e o que mais.
É que as igrejas já perderam demais, já recuaram demais e tentam se equilibrar no difícil jogo dos poderes contemporâneos. O cristianismo, como parte do projeto civilizatório ocidental, depois de ter motivado e justificado os movimentos e estratégias de universalidade, superioridade, prioridade e finalidade se vê desbancado de sua situação de poder, fragilizado em sua influência real nos destinos da humanidade e roubado no controle de seu imaginário religioso e teológico. O cristianismo hegemônico perdeu parte efetiva do poder, e agora negocia fatias de influência criando um conjunto de condições que justificam uma surdez sistemática e crônica.
Sem autocrítica e superação dos modelos sacrificiais cristológicos e eclesiológicos a ação das igrejas acaba reforçando a inevitabilidade do mercado e sua exigência de exclusão que gera pobreza, alienação e violência, principalmente de mulheres e crianças.
É tão difícil identificar um ídolo quando ele tem a nossa cara! É tão difícil enfrentar uma sombra quando ela me fascina! É tão impossível fazer teologia e sentir a vertigem dos desejos! É tão complicado desistir do Um e do Primeiro, desistir de ser clássico e universal para tentar a sorte entre as religiões minoritárias das maiorias! É tão difícil desmascarar o jogo de produzir divindades sem antecipar a nudez do rei, do pai, do senhor.
Do corpo alienado: moral e religião
Silenciosas e cuidadosas no enfrentamento do mercado e sua religião, as igrejas exercitam sua fatia de poder no campo da moral, como prêmio de consolação pela perda da hegemonia do sagrado no âmbito econômico e político. O empenho das igrejas na defesa da vida em questões de direitos reprodutivos e populacionais explicita o papel que o mercado e o capital globalizado reservam às igrejas. Respondem à necessidade de manter sobre controle os processos reprodutivos insistindo num discurso pesado e culposo investindo recursos, tráfego de influência com governos nacionais e lobby agressivo nos espaços internacionais de discussão. Tal agressividade e zelo das igrejas não é o mesmo no enfrentamento das questões econômicas e políticas.
Faz-se necessário avaliar a antiga e atual discussão sobre direitos reprodutivos, em especial no terceiro mundo. Aqui as igrejas não têm tido nenhum desejo de escutar e de dialogar: insistem em se repetir, em dizer o mesmo sempre de novo. Não há movimento real de conversa com as lutas e movimentos organizados de mulheres nas igrejas e nas sociedades. As igrejas reivindicam para si uma estabilidade supra-histórica que não se deixa influenciar ou motivar por sofrimentos extremos e sacrifícios sem medida.
Muitas mulheres morrem no Brasil a cada dia em abortos clandestinos. Muitas é muito... enquanto os/as hipócritas discutem números tentando mascarar o fenômeno social! Morrem de abandono e medo. Morrem porque ousam decidir. Morrem pela redução de argumentos éticos. Morrem pelas trocas de poder e influência entre Estado e Igrejas. Como se já não bastasse a fome, o desemprego, a doença e o desespero de sobreviver.
Morrem deste discurso moral estreito e repressivo incapaz do diálogo com as vivências concretas das mulheres. Morrem desse discurso disfarçado em políticas públicas do Estado. A igreja diz que é pecado. O Estado diz que é crime.
São milhões de abortos clandestinos por ano no Brasil. Pelo menos! Milhões de mulheres que se arriscam a tomar decisão: por elas e pela comunidade onde vivem. Mulheres que se arriscam a viver uma ética pessoal e comunitária que ultrapassa a autoridade da hierarquia masculina das igrejas. Instauram uma ética que surge das vivências e opções das mulheres.
Elas dizem: não! afirmando o direito de decidir. Elas dizem: sim! afirmando o direito de decidir. As igrejas? Já perderam os anéis... e vão perdendo os dedos, o tato, a conversa inteligente e difícil com as mulheres que não têm medo de decidir.
Necessitamos de uma teologia e de movimentos de mulheres que se ocupem das questões econômicas e éticas como contribuição fundamental para a re-significação dos processos de produção e reprodução da vida material e simbólica. As relações entre população, meio ambiente, recursos naturais e economia precisam ser investigadas e articuladas a partir das realidades, motivações e compromissos das organizações de mulheres – numa perspectiva classista! - para que se superem as hesitações e antipatias que continuam mantendo estas urgências e políticas públicas sob controle de políticos e teólogos comprometidos com a sustentação do capital e do patriarcalismo.
Políticos de direita e de esquerda, burocratas que pensam políticas públicas reprodutivas como controle populacional feito pelos governos argumentam que não se pode confiar nas mulheres no que diz respeito a sua capacidade de tomar decisões racionais no âmbito da sexualidade e da fecundidade. É o velho discurso maltyhusiano sobre a fertilidade que pressupõe como premissa a irresponsabilidade reprodutiva das mulheres, o que teria efeitos negativos sobre a vida social por seus impactos econômicos ou ambientais - na verdade uma estratégia de classe contra os pobres.
Mas... para as feministas os direitos sexuais e reprodutivos implicam em um terreno político e social mais complexo que envolve a liberdade negativa que possibilita às pessoas garantias contra os abusos e imposições, mas também a posse positiva de condições políticas e sociais que permitem escolhas pessoais. Na mesma agenda as feministas incluem a luta contra as políticas econômicas de instituições capitalistas globais como é o caso do Banco Mundial e do FMI, atualmente conhecidos por suas políticas de ajuste estrutural, que têm dizimado os serviços sociais e os recursos ambientais nos países do Sul.
Enquanto burocratas políticos e eclesiásticos requentam velhos conceitos, a luta e a consciência por direitos reprodutivos avançam e consolidam práticas autônomas de mulheres contra os velhos poderes patriarcais!
Me ensinaram a sentar
sempre de perna fechada
etiqueta, selo, lacre
vão das pernas que nunca foi meu.
Me ensinaram a abri-las pra um homem
Aliança, cartório, meu bem!
Arrendada pra procriação.
Me ensinaram a ficar
sempre de boca fechada
Falar baixo, com jeito, graciosa
Virgindade nas cordas vocais.
Estupro, abuso, abandono
Balbucio monólogo aflito
Grávida de não saber dizer: não!
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Kairós! Abro as pernas
A grande boca de pequenos lábios
E aborto por decisão.
Reassumo o vão entre as pernas
Reforma agrária do meu próprio chão.
Gravidez?
Só em estado de graça
Nunca mais filhos de aflição
Mais que as pernas...
quero abrir minha boca
Estrear minhas cordas vocais:
Eis o tempo da salvação. |
Nancy Cardoso, pastora metodista, coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra.