Contra o “carro das mulheres”
Por: Helena Costa
Desde 2006 há aqui no Rio uma lei estadual que dedica vagões do metrô e dos trens para as mulheres, no horário de pico (sem trocadilho). Embora possa soar positiva num primeiro momento, a medida é, no mínimo, conservadora, porque não combate a prática de homens que molestam mulheres em transportes públicos. Apenas separa e segrega, e não se fala mais nisso.
Interessante esta maneira de “proteger” as mulheres: mesmo representando 49% do total de passageiros, segundo a própria empresa, as mulheres devem ser confinadas em dois vagões para que sejam resguardadas dos tarados - que permanecem com 80% dos carros à disposição. Guardam as mulheres como se fossem elas as ameaças, e não as ameaçadas; as vítimas são punidas pelo mau comportamento dos agressores.
O mais grave, em minha opinião, é que a lei e a forma de sua execução não rompem com o que lhe deu origem, que é o comportamento abusivo, intimidador e agressivo de certos homens. A voz asséptica do Metrô informa que “o carro das mulheres é uma questão de cidadania”, do mesmo modo e tom que lembra da importância de dar lugar aos idosos, mas não se trata da mesma coisa! Cede-se lugar aos mais velhos por gentileza, mas reserva-se vagões exclusivos para mulheres porque elas sofrem abusos, porque alguns homens sentem-se no direito de assediar uma mulher independente da aceitação dela ou não. E porque às mulheres não é dado apoio ou incentivo para denunciar esses atos. Ao contrário: muitas de nós, eu entre essas, somos educadas para evitar confusão, simplesmente “sair de perto”, “não criar caso”.
O escritor Alex Castro desmonta muito bem esta inversão na qual quem denuncia a falta confunde-se com o faltoso. Então eu estou bem no meu canto, o cara vem, passa a mão em mim, eu chamo a polícia e sou eu quem cria caso? Por isso me irrita sempre e muito esse slogan “carro das mulheres: uma questão de cidadania”. Cidadania passa por educação e observância de direitos. Temos que educar nossos filhos e filhas para entenderem o absurdo que é invadir o espaço de outra pessoa, e incentivá-los denunciar quando os limites forem ultrapassados. Mas quero também que o Metrô faça cartazes, dê panfletos e diga nos alto-falantes a seguinte orientação: “Se você, mulher, se sentir incomodada ou ameaçada pelo comportamento de outro passageiro, procure a segurança do Metrô, estamos aqui para servi-la”.
Pois eu não entro no carro das mulheres. Porque o meu direito de ir e vir tem que ser respeitado em qualquer lugar que eu ocupe. Porque me recuso a ser confinada. Porque o que é preciso é ter respaldo e apoio para poder apontar o dedo na cara do cretino que alguma maneira abusar de mim, porque nada dá a ele esse direito. E esse tipo de abuso só vai parar quando não houver mais silêncio, mas grito e justiça. E cada mulher que denuncia um abuso, de qualquer grau ou espécie, está minando essa cultura sórdida que acha isso “normal" e que "é melhor não criar caso, pega mal". Cada mulher que fala está recusando o lugar de vítima passiva para ocupar o de sujeito de sua própria história. E cada uma que tem essa coragem fortalece a todas nós.
Helena Costa, mestre em Comunicação e Cultura, assistente de Comunicação de KOINONIA.
Notas:
- Em abril de 2006, quando a lei 4.733/0 entrou em vigor, o Metro afirmava, através diretor de relações institucionais que as mulheres somavam 49% dos usuários e que em cada um dos 34 trens em circulação haveria 1 vagão exclusivo. http://www.alerj.rj.gov.br/jornalalerj/jornalalerj123a.pdf
- A idéia parecer ter se espalhado: o site da BBC informa que na cidade do México há um ônibus exclusivo para mulheres. http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/01/080129_onibusparamulheres_ba.shtml
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