A história humana é uma cabal evidência do pluralismo religioso. Uma leitura sincrônica da mundialização também indica uma realidade plural das religiões no mundo. Porém, a existência de muitas religiões têm sido um cenário de disputas religiosas, das mais diferentes famílias, das quais poderíamos citar como exemplos dissensões entre hindus e muçulmanos, cristãos e animistas autóctones, budistas e xintoístas. Geralmente as disputas religiosas são braços estendidos de disputas econômico-políticas. Como já dizia Xenofonte, o dinheiro é a mãe de todas as guerras. Também Xenofonte dizia que os deuses têm o tamanho de nosso imaginário, de forma que se fôssemos bois e vacas nossas divindades teriam essa bovinidade. De qualquer maneira, o que Xenofonte não indicou é que a existência de uma diversidade imensa de religiões implicaria em conflitos, guerras, divisões. Há que se admitir algo mais, a emergência do Capitalismo (capeta-lismo) com sua biodestruição e alienação do trabalho humano implica em um outro fato regulador das experiências religiosas – que passam a se inscrever nessa ordo economica. Onticamente toda religião é ambivalente, ela produz felicidade e infelicidade humanas. A existência dessa diversidade apenas permite identificar que nenhuma das religiões, do ponto de vista ético, no que tange à formação de seres humanos melhores, é superior à outra. Em resumo, a realidade plural das religiões nos permite ver que as religiões disputam espaços de crença, disputam valorizações econômicas, disputam entre si um lugar ao Sol. Também por isso, nenhuma religião pode se avocar alguma superioridade ética ou política em relação às demais.
Em relação à América Latina temos uma constatação de um universo plural que não escapa a esse diagnóstico maior. O que nos diferencia é a presença cultural destruidora que a implantação do Cristianismo teve no subcontinente. As religiões dos povos indígenas e as religiões de matriz africana ficaram reféns da supremacia político-militar que teve o projeto colonialista cristão. Esse mal de origem perverteu a presença do Cristianismo no Continente e marcou o modelo de convivência inter-religiosa de apartação. De uma certa forma isso se reproduziu na convivência intra-cristã, num processo mútuo de rejeição entre romano-catolicismo e protestantismo. Sendo que o protestantismo absorveu a rejeição às religiões indígenas e de matriz africana como um legado para a afirmação do valor do Cristianismo. A experiência latino-americana mostrou que essa ambivalência da religião produz muitos modos de ser religioso. Para falar do Cristianismo, gerou um processo de solidariedade com os pobres e oprimidos em busca de libertação, e também gerou afirmações de um individualismo acalentador, de uma busca por soluções mágicas – dentre outras modalidades. O que deixou de gerar foi um Cristianismo aberto ao diálogo inter-religioso, que procurasse superar as históricas aversões teológico-religiosas.
No Brasil e na América Latina, entretanto, ainda que do ponto de vista das relações entre comunidades religiosas tenhamos o clima de disputa, no cotidiano as famílias, também pelo fenômeno da urbanização, cada vez mais são um caleidoscópio religioso. Até mesmo as trajetórias religiosas individuais seguem o que os sociólogos chamam de trânsito religioso. Na vida privada as famílias têm o privilégio e a tranqüilidade da convivência entre diferentes. Há uma mescla, uma mistura, que poderia ser explicada, também, pela matriz religiosa brasileira. Nessa esfera privada a ordem dos conflitos é diluída na ordem das solidariedades efetivas do cotidiano. Todas as relações são mediadas pela solidariedade, e isso tem também aspectos religiosos. Tanto mais nos meios das classes populares que entre outras classes sociais.
Se isso é verdade, não é menos verdade que na construção e reconstrução das representações sociais as pessoas se enfrentam a partir das identidades religiosas. Para fazer valer uma determinada identidade religiosa isso pode chegar, no nível da esfera pública – nas relações exigidas a partir das legislações, nas relações que se estabelecem no cenário público, nas relações que se estabelecem na sociedade civil e política – em enfrentamentos. Tais enfrentamentos podem ser verdadeiros confrontos diretos, que vão desde ameaças verbais de atos violentos, até a consumação desses atos. Tanto maior entre agentes e praticantes do pentecostalismo autônomo e agentes e praticantes das religiões de matriz africana (inexistem registros atuais de violência material de caráter religioso contra povos indígenas, ainda persistem registros de violência simbólica contra povos indígenas por parte de movimentos missionários norte-americanos na Amazônia).
Existe nessas atitudes algum registro teológico que as autorize? Há alguma validade em termos da fé bíblica que conduza a essas atitudes? O registro bíblico-teológico fundamental, a partir do Cristianismo, é a noção de salvação. Uma determinada leitura da Palavra de Deus consagraria o caráter soteriológico do mistério Cristão, e por isso estariam indicadas à eleição de um povo santo, à unicidade soteriológica do Deus Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) e à salvação exclusiva a partir de Cristo Jesus. Estas são algumas das marcas básicas de uma teologia das religiões exclusivistas. Então, a partir dessa notação teológica exclusivista atitudes de rejeição da verdade nas demais experiências religiosas e, no extremo, a exigência da conversão à religião Cristã, podem implicar – como historicamente já implicaram – na eliminação do corpo para a salvação da alma.
É possível uma outra atitude? A crítica desta notação teológica está em curso. Ela tem, ao menos, duas outras notações, a do inclusivismo e a do pluralismo – cada uma delas com suas subnotações. Nosso interesse recai aqui sobre uma das notações do pluralismo religioso como uma resposta possível para a superação da intolerância religiosa. Primeiramente, cabe notar que estamos argumentando a partir da experiência religiosa do Cristianismo (se quisermos ainda, do Cristianismo Libertador Latino-Americano). Nossa maneira de ver identifica que a revelação de Deus se dá antes que por meio de algum Texto Sagrado na vida das pessoas. Por isso, é parte da revelação de Deus a pluralidade religiosa.
Assumindo a tradição bíblica notamos que, no Antigo Testamento, há a disseminação de uma teologia que evolui do politeísmo ao monoteísmo. Ainda assim, majoritariamente o Antigo Testamento é exclusivista, ainda que tenha textos favoráveis à experiência da tolerância religiosa (p.ex. Mq 4.5). O Novo Testamento não oferece, também, uma teologia da tolerância religiosa e do pluralismo religioso, antes oferece uma teopráxis da tolerância e do pluralismo por meio da mentalidade e do comportamento de Jesus. Jesus é um camponês, galileu, que nunca saiu de seu meio. Não conheceu o mundo. Certamente não estava preocupado com o problema da convivência entre diferentes religiões no processo de mundialização que vivemos hoje. Jesus não se apresenta como um caminho exclusivo para a salvação, mas o caminho por meio do qual é possível encontrar a salvação – não fecha a porta a outros caminhos. Ademais, é por meio da busca do Reino de Deus que se pode aceder à Salvação, e não pela afirmação de alguma doutrina religiosa ou por meio de alguma vivência religiosa. Jesus não fecha as portas para os não-judeus, a mulher cananéia, o centurião, dentre outros eram privilegiados entre as pessoas que poderiam se salvar, desde que amassem. O seguimento de Jesus é o seguimento no amor. E o amor tem a explícita dimensão da solidariedade com as pessoas oprimidas. É o amor e a prática da justiça que são critérios para a salvação. Não é a afirmação do Nome, não é a proclamação da Igreja...
O diálogo inter-religioso é ainda um tremendo desafio para a comunidade ecumênica. Como diz dom Pedro Casaldáliga, Deus tem direito a dialogar com Deus. É preciso Libertar o Cristianismo. A Libertação pode ser um fecundo estímulo a uma atitude de superação da intolerância religiosa. O discurso da tolerância religiosa iniciou na era moderna para fazer valer o direito à convivência em paz da diferença e divergência de crenças e opiniões políticas, religiosas, ideológicas. Essa matriz histórica tem sido questionada pelo uso comum do termo tolerância que denota suportar, aturar, tratar a outra pessoa como alguém que não se tem como incorporar ao próprio grupo ou eliminar. É evidente que com isso se perde a noção de reconhecimento e respeito à diferença que o conceito político-filosófico de tolerância supõe. Necessitamos retomar essa dimensão da busca da unidade entre todas as pessoas que têm alguma fé, religiosa ou não, em favor de um mundo justo, fraterno, solidário, socioambientalmente sustentável – um mundo no qual, na linguagem e concepção cristã, realizemos os sinais do Reino e caminhemos rumo ao Reino, na dinâmica do já e ainda não. Como dizem alguns, precisamos caminhar rumo à eutopia, o mundo do Bem, o melhor dos mundos possíveis – um outro mundo possível.
Concluímos essas já longas reflexões com o texto da declaração da Assembléia do Povo de Deus, assinada em Quito, em 1992, dentre outros pelo bispo metodista argentino Pagura:
O povo de Deus são muitos povos. Todas as pessoas, comunidades e povos que assumimos este sonho-projeto de Deus somos o povo de Deus. Nenhuma religião, nenhuma igreja, pode arrogar-se a exclusividade de ser esse povo. Excluem-se, isso sim, do povo de Deus todos aqueles e aquelas que se negam a assumir esse sonho de Deus e de seu povo, servindo aos deuses do capital, do imperialismo, da corrupção e da violência institucionalizada.(...) As cristãs e os cristãos presentes neste encontro nos sentimos profundamente chamados à conversão. Publicamente, em nome de milhões de irmãos e irmãs que sentem o mesmo, e para suprir quiçá a omissão oficial de nossas igrejas, pedimos perdão aos povos indígenas e aos povos negros de nossa própria casa, tantas vezes condenados como idólatras e secularmente submetidos ao genocídio e à dominação.