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CONTEXTO QUILOMBOLA
Ano 3 - Nº 11
Julho de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Página de KOINONIA
 
Um olhar sobre o futuro presente nas relações entre Sociedade e Estado

As pessoas que estudam ou puderam testemunhar o processo de constituição dos movimentos sociais, nos últimos 30 anos no Brasil, estão assistindo mudanças não vislumbradas, nos horizontes de décadas atrás, das relações entre a Sociedade e o Estado.

Em uma síntese breve e não muito rigorosa, pudemos acompanhar os períodos das trevas da ditadura e seu final de abertura gradual em que movimentos sociais foram gestados, esquematicamente falando, por dois meios: no cadinho dos embates da luta social pela recuperação das liberdades e pela implementação de diretos básicos; e na constituição de mobilizações de base apoiadas na institucionalidade das igrejas históricas, notadamente a Igreja Católica Apostólica Romana (Icar). Esta última era uma forma mesma de criação de alguns movimentos e até mesmo de proteção institucional oferecida aos embates da luta social. Uma quase receita social repetida pelo País afora: luta criando movimentos/igrejas apoiando a instituição-institucionalidade dos movimentos. Desses processos surgiam lideranças, que por sua vez eram capacitadas, e o inverso: da capacitação de lideranças renovavam-se quadros para os movimentos.

Ainda arriscando um resumo quase forçado. A receita aplicada tinha entre seus processos o papel de assessorias técnicas e políticas que, apoiando os movimentos sociais, articulavam metodologicamente uma aliança conceitual de defesa da autonomia (institucional) dos movimentos sociais. Essa autonomia era facilmente vislumbrada pelas lideranças em relação ao Estado e menos em relação às igrejas, especialmente a Icar. O processo de autonomia e institucionalização, lato senso, dos movimentos sociais aconteceu fortemente na década de 1980, década, por exemplo, de fundações partidárias, formalização de centrais sindicais e de constituição de movimentos autônomos pela reforma agrária.

Nessa esteira (resumida) nascem os movimentos sociais de constituição de Ongs, que emergem como conceito já dentro da institucionalização autônoma em processo de conquista, para afirmar-se como um campo social e político a partir do início da década de 1990. São herdeiras enfim, do mesmo caldo de cultura política da segunda metade da década de 1980, com o processo de fim da ditadura e de uma nova constituição, A Cidadã. O início do tempo em que cidadania tornou-se palavra-chave de uma nova cultura política em que cada vez mais a participação social e a reconstrução política do Brasil pós-ditadura, tanto na ordem social como na ordem do Estado estavam em jogo – batizado por muitos como arquitetura da democracia. Cidadania passou a ser a motivação para encontrar na sociedade o lugar de todos, indivíduos e instituições, aspecto que se tornou exigência estruturante das relações entre Sociedade e Estado. Vejamos.

A relação com o Estado ainda permeada por relações hegemonicamente de conflito se dava pelos atores sociais emergentes dos conflitos, mas também com aqueles da Sociedade que se solidarizavam com a causa. Assim, entre os movimentos sociais distinguem-se lugares ocupados pelos Movimentos Populares (nome atribuído aos representantes diretos das partes em conflito) e Ongs (organizações solidárias à causa em tela no conflito social), ficando cada vez mais as igrejas neste segundo lugar. Cabia ao Estado fazer as interlocuções, cabia à cidadania incluir todos os interessados. Mediram-se forças, alianças, novas lideranças foram formadas, um campo de negociações e disputas se forjava na década de 1990. Pode-se afirmar, em esquema, que a partir do Governo FHC, imprime-se uma ênfase na institucionalização das relações Sociedade e Estado, sob uma visão que privilegiava a representação da cidadania por parte das ONGs e organizações de solidariedade. Aos Movimentos Populares restava o papel de lugar conquistado, quase imposto pela luta, numa correlação de forças dura e adversa de conquista de representação, ainda que os espaços institucionais estivessem sendo criados pelo Estado, até mesmo por obrigação constitucional. Reduzia-se nesse período a ênfase no diálogo em torno dos conflitos diretos e seus contendores perante o Estado – que se restringia ao papel de negociador, polícia e normatizador de espaços constitucionalmente criados, das políticas públicas.

Um presente em processo e um futuro em retrocesso?

Se esta brevíssima e propositadamente tendenciosa história das relações serve para algo, é sem dúvida para situar algumas mudanças de comportamento na relação Sociedade e Estado, talvez mesmo na ordem inversa.

A cidadania não passava mais necessariamente pelo enfrentamento do Estado. Abriram-se diversos processos de interação, em que a realização das políticas governamentais exigia a participação da população objeto dessas. Longe de fazer uma avaliação da qualidade dessas relações, tornou-se notório que a histórica “autonomia dos movimentos sociais” não tinha mais o mesmo perfil. Em muitos casos se cooperava com o Estado, e esperava-se dele até mesmo o financiamento das ações do movimento social. Instauram-se já no final dos anos 1990 mecanismos novos de relacionamento entre Sociedade e Estado – tanto na base social das relações da pirâmide social, como nas câmaras de representação institucionais superiores – vide, por exemplo, o Programa Comunidade Solidária e os processos de Orçamentos Participativos. Cada vez mais por um lado a Sociedade de descobria diversa, multisocial e multicultural, e por outro lado, o Estado se via obrigado a reconhecer diferentes cidadãos, que não eram mais povo, nem só homens e mulheres, nem só negros e brancos, nem só católicos e evangélicos, nem só adultos e idosos, nem só rurais e urbanos, nem ricos e pobres... Uma multiplicidade de setores, origens, atores se apresentava, quanto mais se abriam as portas de participação, em um espectro aberto a novas inclusões se abria como reivindicação de cidadania.

Novamente, por ilação, podemos ver os anos da década de 2000 como um desdobramento dos sinais presentes na década anterior.

Ascende ao poder uma direção do Executivo que é resultado dos movimentos pela cidadania. A noção de participação ganha continuidade em diversos modos dos agentes do executivo – ao modo dos orçamentos participativos, das câmaras de negociação, dos planos plurianuais... De tal sorte que a democracia vista pelo Estado é o somatório do máximo de representação possível de toda a cidadania. Invertem-se desde o ponto de vista do Estado as prioridades em relação às escolhas dos interlocutores e de seus lugares. Um olhar do Estado, dos anos 2000, sobre os movimentos sociais, tende a privilegiar os Movimentos Populares (MP) às organizações solidárias, como as Ongs. Menos porque os MP tenham força para tanto, mais porque está em jogo o paradigma construído anteriormente de que a cidadania deve estar maximamente representada, e sendo assim, os interlocutores dos MP poderiam conter rótulos mais apropriados e claros de cidadãos – negros, comunidades tradicionais, mulheres, moradores, jovens, nordestinos, etc. Situação que recrudesce com o sucesso da política econômica com intervenção do Estado, que se torna um agente econômico e implementador de políticas públicas muito forte – políticas que não podem mais ser desenvolvidas sem os cidadãos; devem ser portanto multi-setoriais, hiper-representadas pela Sociedade.

Todo esse sistema recente traria problemas para o futuro se não contivesse dois processos. Um é do próprio Estado. Este, marcado pelo ideal de máxima participação, simbolicamente assimilada à noção de máxima representação de todos os cidadãos possíveis em qualquer caso e a qualquer custo, inicia um processo de contínuo reconhecimento da cidadania, e seu correlato, a representação da sociedade. Em setores e lugares em que a sociedade não produziu historicamente nenhum tipo de representação o próprio Estado passa a produzir. Assim, do ponto de vista do Estado, a Sociedade é multisocial não como resultado da participação e da expressão pública das diversas identidades que se articulam em movimentos de reivindicação. Para o Estado, notoriamente este Executivo, a diversidade existe abstratamente, por definições que ele é capaz de fazer tecnicamente – e em conseqüência, cada política deve ser subdividida nas múltiplas caras identificadas pela burocracia do Estado – até mesmo quando a própria Sociedade não foi capaz de reconhecer-se como portadora de tais identidades/representações. É a instituição da imagem da representação a qualquer custo. Tentando um exemplo lógico: “carecas brasileiros existem, mas não estão representados, o Estado vai implementar uma política de chapéus para todos, então o executivo nomeia um representante dos carecas para opinar, participar de processos e até mesmo constituir com recursos do estado um sistema de organização/associação dos carecas brasileiros... Fora a brincadeira com a calvície, este processo gerenciado pelo Estado sobre a Sociedade embota outro, que se manteve minoritário e em certo modo embotado.

O outro processo é o que definiu o surgimento da reconstrução (pós-Ditadura) da cidadania pelo viés da autonomia dos movimentos sociais, que contém em seu ideal a autonomia, entre outras, da Sociedade em relação ao Estado. Estamos falando de um conceito de cidadania que conviveu com o outro da emergência da participação e da multiplicação da representação, cujos portadores materiais dessa ideologia tornaram-se quantitativamente minoritários. Veja-se que falamos de processos em quase vinte anos, o que permite a formação de uma nova geração de agentes, atores, líderes, representantes enfim, na Sociedade, que não entraram em contato com a outra vertente da cidadania qualificada como autônoma, ou pelo status de minoria dos portadores daquele conteúdo, ou porque foram gestados em íntima relação com o desenvolvimento das políticas do Estado.

Hoje se misturam as perspectivas de cidadania. Por um lado a hiper-representação, que podemos chamar de cidadania das quantidades de identidades levou a uma multiplicidade de setores e políticas setoriais, por outro, a morosidade de implementação de muitas dessas políticas, a aglutinação de interesses em torno da representação (ainda que criada pelo Estado) tem levado ao reencontro entre Sociedade e a necessidade de reiterar a autonomia, ou seja, com o que está presente em minoria e que podemos chamar de cidadania das identidades por direitos. É um contexto em que começa a ficar claro que em relação ao Estado não basta representar um setor da Sociedade, é preciso ter força social para que este setor seja de fato atendido.
Que tendência majoritária se expressa em relação ao futuro?

Seria ótimo poder responder a essa questão com segurança, mas não é possível, pois de um lado há um grande agente social, o Estado, diante de um País de território e população continentais, de outro há contradições que o mesmo Estado cria ao multiplicar sem limites a representação social. Pode-se apontar aspectos de tendências em jogo:

  • De que novos atores busquem maior autonomia e institucionalização perante o Estado e outras instituições;
  • De redução progressiva do espaço político de representação para os setores de solidariedade social – ONGs e instituições intermediárias – perante o Estado.
  • De reconfiguração da compreensão dos lugares na arquitetura da democracia, onde os espaços de hiper-representação tendem a estabilizar-se e os agentes antes ali situados recomponham-se sob novas atribuições e identidades.

Dito de outro modo, em corolário aos dois itens acima, pode ocorrer uma nova consolidação da compreensão da cidadania. Esta seria a representação autônoma dos diversos portadores de identidades, que se constituem a partir de reivindicações de direitos. A cidadania  portanto, seria definida por identidades sócio-politicamente constituídas, auxiliadas pelos setores solidários. O auxílio desses setores se daria  por meio de alianças cujas pautas seriam: saberes técnicos, comunicação e educação em geral (popular e de capacitação).