O tema dos Direitos Humanos entrou na pauta dos movimentos sociais e de muitos governos há pelo menos três décadas e, provavelmente, nunca se falou tanto sobre eles quanto nos últimos vinte anos. Entretanto, pode-se dizer que esses mesmos direitos, reconhecidos internacionalmente como um avanço na construção de um mundo mais justo e mais humano, nunca foram tão violados quanto nos anos recentes.
Pensemos na seguinte situação em algum país ou região do mundo: uma legislação que permite a detenção de uma pessoa por ela não possuir um documento importante exigido pela autoridade policial de plantão e mantê-la presa em um campo de detenção (ou de concentração, para ser mais preciso) por até dezoito meses, sem mandado judicial e sem acesso a advogados. Menores de idade, desacompanhados de seus pais, correm o mesmo risco. O instituto do hábeas corpus não é acessível a essas pessoas, que não praticaram nenhum crime nem são acusadas de crime algum. São pessoas trabalhadoras que só cometeram uma transgressão, que, do ponto de vista do Direito, não passa de uma infração administrativa: não portam o maldito documento! Entretanto, não gozam de nenhum dos direitos concedidos ou estendidos aos criminosos de qualquer natureza.
Ao mesmo tempo, uma corte suprema absolve um policial que usou de torturas para extrair a confissão de um acusado de assassinato. Essa Corte Suprema baseou sua decisão no fato de que as provas obtidas sob tortura não foram usadas no tribunal que condenou o réu. De acordo com essa visão, torturar pode, desde que o réu confesse e as “provas” obtidas nessas condições não sejam apresentadas no tribunal.
Se você pensou nos países latino-americanos durante o período dos regimes militares de segurança nacional, enganou-se. Se pensou no Zimbábue, que acaba de entrar na lista do “eixo do mal” de George Bush, e cujo presidente, Robert Mugabe, depois de vinte e oito anos no poder, acaba de ser reeleito para um novo mandato conquistado em uma eleição acusada de fraudulenta por observadores independentes, como a Anistia Internacional e o Conselho Pan-Africano de Igrejas, também se enganou. Se pensou na Alemanha Nazista ou nos regimes fascistas europeus que levaram a Europa à maior guerra que a humanidade já experimentou, você quase acertou. Estamos falando da mesma Europa, só que da Europa do início do Século XXI e não da Europa da terceira década do Século XX, palco principal da II Guerra Mundial.
Os fatos narrados acima são parte do novo arcabouço legal chamado de Diretiva de Retorno, um malabarismo eufemístico para se referir à nova legislação que dá às autoridades dos países da Comunidade Européia o poder de prender e deportar, da forma mais arbitrária possível, os imigrantes do Terceiro Mundo que não têm sua situação legal totalmente regularizada. Essa nova lei foi aprovada no dia 18 de junho por grande maioria dos membros do Parlamento Europeu, sob o impulso dos governos direitistas da França e da Itália e do governo socialista da Espanha, com os apoios dos outros 24 membros da Comunidade Européia.
As principais personagens desse movimento são emblemáticas da “nova” Europa. O conservador Sarkozy, para ser eleito presidente da França, não hesitou em se apropriar do discurso e da agenda da extrema direita liderada pelo fascista Le Pen. Silvio Berlusconi, por sua vez, governa a Itália apoiado por partidos de direita, principalmente os neofascistas da Liga Norte, que participam do seu Gabinete. Berlusconi, o bilionário dono monopolista dos principais meios de comunicação da Itália, responde a diversos processos criminais, inclusive por ligações com a Máfia. Em um encontro com empresários, em junho, gabou-se de ter 789 promotores em seu calcanhar, recebido 587 visitas da policia, respondido a 2.500 intimações e de ter gastado 174 milhões de euros com advogados. Já o socialista espanhol Zapatero lidera uma coligação de centro-esquerda, mas, para garantir o poder de seu partido, não hesita em cooptar as teses da direita.
Muitos se perguntam sobre as causas dessa “nova” Europa. Na verdade, o que emerge desses fatos não é uma nova Europa, mas a face européia que sempre existiu e que por muito tempo e em tempos diferentes e contraditórios ficou submersa na maquiagem do iluminismo, do positivismo, do discurso dos direitos humanos, do Estado de Bem Estar Social e do discurso conservador ilustrado e democrático. Essa Europa que deu ao mundo uma grande contribuição nas diversas áreas da arte, da ciência, da literatura, da política e das lutas libertárias, é a mesma que financiou o seu desenvolvimento por meio do saque das riquezas da África e da América Latina e inventou a escravidão moderna - sem contar sua contribuição para o genocídio de povos indígenas.
Portanto, o que ocorre hoje na Europa não é algo inusitado nem surgiu do nada. É o ressurgimento de medidas auto-centradas que sempre estiveram presentes naquele continente e que vêm à tona toda vez que seus interesses exigem. É o fruto, em parte, da incapacidade de reconhecer a sua própria diversidade, caracterizada por uma grande variedade de identidades lingüísticas, nacionais, étnicas e religiosas. É também resultado da recusa de seus países em aceitar conviver em uma sociedade distinta, mesclada e pluricultural.
Em momentos de crise econômica e de civilização, como a atual, intenta-se para a identificação do culpado a ser sacrificado. Na primeira metade do Século XX, foram os judeus, ciganos, homossexuais, principalmente na Alemanha, mas não só. Depois foram os comunistas. Hoje, são os imigrantes de todas as partes, mas especialmente os ciganos na Itália, latino-americanos na Península Ibérica, norte-africanos na França, e muçulmanos em todos os países.
Ao mesmo tempo em que a União Européia constrói essa muralha vergonhosa ao redor de suas fronteiras, os países europeus fazem pressão sobre os países periféricos para que abram seus mercados de bens e serviços. Se há algo de positivo nisso é o fato de a Europa finalmente tirar a sua máscara de continente “civilizador”, como até aqui ela se apresentou.
Essas manifestações de xenofobia e de fortalecimento da exclusão, da marginalização e do racismo, na Europa, infelizmente ocorrem em um momento de vazio ideológico e de refluxo das esquerdas européias, e também de fragilidade das instituições internacionais que, no passado, tiveram papel importante na defesa dos Direitos Humanos. É que, no passado, essas violações ocorriam majoritariamente em paises pobres ou periféricos. Hoje, fazem parte integral do sistema de defesa e de proteção dos países centrais e poderosos, como os Estados Unidos e os da Europa, a demonstrar que a barbárie, assim como o Capital, não tem pátria.