Um convite à reflexão sobre os entremeios das “periferias” para além das violências e violações de direitos, pode ser feito de duas cenas; vejamos:
Primeira cena
“Aqui queremos compartilhar as tradições de origem banto, queremos reunir os Terreiro filhos da nossa Casa aos sábados a cada 15 dias.”
Esta foi parte da fala de abertura de um processo de oficinas de toques de atabaques e de um curso de serigrafia promovidos por uma comunidade organizada há mais de 100 anos em Salvador, da qual nasceram dezenas de outras. Dali se podia ver do alto de um monte, em meio a ruelas de um arruamento de “periferia”, a avenida principal abaixo, de movimentos e engarrafamentos tal qual se avista das favelas do Rio de Janeiro, e outras.
Segunda cena
“Estamos aqui reunidos para dialogar sobre territórios negros, pois sentimos a necessidade do diálogo para sairmos de nossos lugares isolados”.
Fala de abertura de um debate na Favela da Maré no Rio, a fim de aumentar o contato da equipe e da comunidade com o tema das tradições que vieram da África, com as quais eles convivem, e começar uma reflexão para a superação da intolerância religiosa. Conversa que ocorria a uns 100 metros da Linha Amarela, via expressa de tráfego intenso, que liga importantes pontos da cidade.
Em comum encontramos um mundo invisível para quem não adentra as “periferias” e não vê pulsar seu coração de iniciativas. Na primeira cena um Terreiro de Candomblé, na segunda uma Associação Comunitária, ambas promovendo a sobrevivência de valores e culturas que impregnam a história da maioria negra e negro-mestiça dos habitantes. Em comum ainda sabemos que as duas experiências se processam nas bordas de um conflito armado e violento e no epicentro da convivência com pregações fundamentalistas pentecostais anti-religiosidade afro-brasileira. Ambos os grupos vivem e se relacionam a partir de uma agenda positiva aberta à promoção dos diretos humanos de todos e de todas.
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Vida que segue... Esse é o sentimento de quem pode testemunhar o caminho de chegada até lá, nesses dois lugares brasileiros, com crianças pelas ruas, conversas nas portas de casa, músicas que saem das janelas – umas mais altas outras menos, profanas e sagradas... Uma vontade de ser comum, de desfrutar das oportunidades e daquilo que se tem à mão, como o carinho da vizinhança e a conversa jogada fora. É gente sem medo de se encontrar e desencontrar, de se tocar... Mulheres, muitas, firmes e vigilantes dos cuidados com o seu lugar, desejosas de um meio ambiente tranqüilo, limpo e saudável para seus filhos, capazes de amar e de se entregar à lida diária de trabalho e de educação... Vida dura, vida amaciada pelos laços que se constrói para garantir que tudo funcione, como fazem na igreja local, como fazem no seu terreiro, como fazem na associação, como fazem com seus filhos, que mesmo soldados da guerra que a todas atormenta, ainda baixam a cabeça para as broncas da mãe, aos trancos e gritos corajosos das tias da “periferia”.
Mulheres sim, elas são o esteio da chamada “periferia”, como também são das relações cotidianas em que se tecem as redes e os movimentos de solidariedade, entre homens e mulheres, entre negros e brancos, entre moradores e os seus representantes para além da “periferia”.
KOINONIA sente-se aí, e atua em muitos casos nessas franjas, bordas do poder econômico, do mercado e dos preconceitos – de cor da pele e de religiosidades. E estar aí é um cotidiano exercício de solidariedade, essa que nasce da indignação ética e logo se traduz em companheirismo, em reconhecimento das diferenças, admiração e apoio às iniciativas de cada lugar e de cada grupo social.
Esse exercício é também de mudança de lugar.
Quem nasce na “periferia” e dali vê o mundo, sente-se no centro. O nome “periferia” veio de fora, de quem olha de outro centro – das avenidas, das cores pálidas de pele, das contas muito mais que mínimas nos bancos. A vida que borbulha nas ruas da “periferia”, das crianças, dos jovens, das mulheres e homens é o centro do mundo... Lugar de encontrar as amigas e amigos, lugar de festejar bodas e nascimentos, de beber, de conversar... E por quê? Porque isso é bom e é divinamente humano estar na comunidade, não estar só.
Pondo-se nesse outro centro do mundo é que sonhamos com o futuro para todas as pessoas em koinonia (comunhão, comunidade). Labutamos com certeza em KOINONIA para ver um dia as coisas sem “periferias”, a sociedade cheia de democracia e graça, as relações sem rótulos prévios e impregnadas de intolerância. Trabalhamos sim, por muitos meios e com todas as nossas forças, para ver a igualdade entre humanos prevalecer... Mas, desfrutamos sim, sem a menor falta de pudor, das alegrias, dos testemunhos de resistência, das tantas orações por um mundo melhor, dos abraços apertados e da beleza... Entre as tantas regalias que se oferecem de graça a quem se aproxima e fraternalmente se alia aos centros do mundo, as rotuladas “periferias”.