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EM DEFESA DA VIDA
Ano 3 - Nº 7
Março de 2008
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Editorial
 
Esta edição se inspira no lema da Campanha da Fraternidade 2008 lançada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil: “Fraternidade e Defesa da Vida”. Para além dos argumentos que compõem o discurso oficial da hierarquia romano-católica, em relação à situação de desvalorização e esvaziamento da dignidade da vida humana que caracteriza a condição presente do mundo, este número de Tempo & Presença pretende, modestamente, tratar a candente questão da Vida oferecendo aos seus leitores outros olhares e outras perspectivas, de modo a ampliar e aprofundar um debate que se torna, a cada dia que passa, mais urgente e necessário.

Esta necessidade se impõe pelo fato de que vivemos um momento histórico que se caracteriza muito mais por falências de toda ordem do que por verdadeiras realizações inovadoras e transformadoras da condição humana, naquilo que ela tem de mais criativo, digno e belo. O espantoso desenvolvimento tecno-científico dos últimos cinqüenta anos, que modificou profundamente os modos de produção e organização das sociedades humanas, para decepção dos amantes do progressismo, não fez avançarem de forma qualitativa as relações entre os humanos e destes com o meio-ambiente que os hospeda. Pelo contrário. O novo estágio alcançado pelo capitalismo mundial acentuou, de forma dramática, o quadro de desigualdade social e econômica em que se encontra a população do planeta, mantendo e aprofundando a miséria e a fome de mais de dois terços da população global, com o incremento de todas as nefastas conseqüências que impedem o exercício de uma vida plena e abundante para a imensa maioria dos humanos. Como assinala Zygmund Baumann: “A expansão global da forma de vida moderna liberou e pôs em movimento quantidades enormes e crescentes de seres humanos destituídos de formas e meios de sobrevivência – até então adequados, no sentido tanto biológico quanto social/cultural dessa noção. (... ) Os ‘problemas do refugo (humano) e da remoção do lixo (humano)’ pesam ainda mais fortemente sobre a moderna e consumista cultura da individualização. Eles saturam todos os setores mais importantes da vida social, tendem a dominar estratégias de vida e a revestir as atividades mais importantes da existência, estimulando-as a gerar seu próprio refugo sui generis: relacionamentos humanos natimortos, inadequados, inválidos ou inviáveis, nascidos com a marca do descarte iminente. ”.

A partir de três perspectivas distintas e por meio de tratamentos histórico-filosóficos e teológico-pastorais também diferenciados, os articulistas que apresentamos nesta edição, no entanto, confluem para uma mesma constatação: importa recuperar o verdadeiro significado e a suprema dignidade da vida humana que foram sendo conspurcados, barateados e esquecidos nos desvãos da história contemporânea. Chamam nossa atenção para o fato de que os meios criados para promover e sustentar a experiência vital dos humanos, pouco a pouco, tornaram-se fins, em si mesmos, em detrimento da real expressão do grande mistério de nossa plena existência. As leis, os dogmas, os modos e os estilos de existir e a proclamação da auto-afirmação individualista, que faz ‘desaparecer’ de nossa vista o outro que torna possível a emergência do ‘eu’ que somos, têm suplantado o mistério, a gratuidade, a beleza e a grandeza presente em cada ser humano. Somente ‘somos’, existimos ou temos nossa vida reconhecida, na medida em que exibimos alguma expressão de poder, seja esta qual for. Quem não se enquadra nesse paradigma ‘não é’, portanto, torna-se descartável, ‘desimportante’, até mesmo empecilho para os que se auto-afirmam a qualquer custo, tornando-se ídolos de si mesmos. A defesa da vida começa com o desmascaramento desta situação de solipsismo coletivo a que nos tem levado o individualismo gerado e promovido pela modernidade capitalista. Mais que nunca somos instados a dar ouvidos à voz de alerta da poesia:

“A vida, a vida, a vida

A vida só é possível reinventada. ” (Cecília Meireles)


É isso aí.
 
Publicado em: 06/03/2008