Em 1945, prefaciando uma obra de Lins e Silva, Gilberto Freyre lembrava o projeto de controle psiquiátrico dos terreiros, coisa que, em suas palavras, o “espírito humanitário” de Nina Rodrigues concebeu como alternativa à brutalidade das intervenções policiais, da repressão direta a esses centros de culto de religiões afro-brasileiras. Nina não o conseguiu implantar, mas — lembra ainda Freyre —, este projeto de monitoramento das religiões negras por psiquiatras e etnólogos mais tarde veio a ser realizado com um êxito que o ilustre prefaciador acentua: Ulysses Pernambucano o pôs em prática em Recife; em Salvador, relata o antropólogo, executaram-no “técnicos capazes”, arregimentados pelo major Juracy Magalhães (que então governava a Bahia como interventor).
Segundo o autor de Casa Grande e Senzala, essa iniciativa de Ulysses Pernambucano e dos peritos baianos veio a ser “uma das intervenções mais felizes da ciência e da técnica antropológica, orientada por uma psiquiatria social, na vida de uma comunidade brasileira”.
Em nosso meio, Nina Rodrigues marcou de forma vigorosa a Medicina Legal, a Psiquiatria que se lhe associava (como ancila da Criminologia) e também a Etnologia, em que deixou importante legado, com seus estudos pioneiros sobre a religião dos negros baianos. A herança de Nina foi capitalizada por médicos, juristas, psiquiatras e etnólogos. O patrimônio de sua memória é ainda disputado. Mas entre seus “descendentes” intelectuais deram-se rupturas e clivagens profundas. Desde Edson Carneiro, a vertente que acabou dominando a pesquisa etnológica sobre o candomblé e ritos congêneres, muito embora seus próceres invocassem sempre o precursor, desligou-se do campo da Medicina Legal, da perspectiva da “Hygiene Mental”: os etnólogos que se viam como continuadores de Nina deram a esses estudos um novo rumo, uma direção que os inscreveu em definitivo nos domínios da antropologia. Bem o mostrou Marisa Correia (1998). Mas Nina também teve continuadores no campo da Medicina Legal, discípulos que se esforçaram por manter restrito a este domínio a abordagem do candomblé. Entre eles estariam os estudiosos louvados por Gilberto Freyre no prefácio acima citado: Estácio de Lima, seus companheiros e discípulos, epígonos à direita da escola. Estes seguiram falando em “antropologia”, mas ignoraram totalmente o desenvolvimento da disciplina. E mantiveram-se fiéis à ótica lombrosiana.
Já outros médicos que cultuam a memória do mestre emérito preferem manter distância do assunto candomblé, que tanto o interessou. Assim é que, anos atrás, discutiu-se muito sobre a conveniência de se conservar um Museu Afro-Brasileiro na antiga sede da Faculdade de Medicina da Bahia onde Nina foi catedrático (um belo prédio situado na Praça XV de Novembro, 17, Terreiro de Jesus). Refiro-me ao MAFRO, cuja fundação resultou de convênio firmado entre o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Educação e Cultura, o Governo do Estado da Bahia, a Prefeitura Muicipal do Salvador e a Universidade Federal da Bahia. Inaugurado em 7 de janeiro de 1982, este museu, subordinado ao Centro de Estudos Afro-Orientais (órgão suplementar da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA) passou por um amplo processo de reestruturação em 1997. Ocupa grandes salas do nobre edifício, que vem a ser uma construção erigida no século XIX, incorporando espaço outrora ocupado pelo vetusto Colégio dos Jesuítas fundado pelo Padre Manoel da Nóbrega. Depois da transferência da FAMEB/UFBA para o Campus Universitário do Canela, o edifício em questão abrigou também (embora por curto período) a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas desta Universidade. Hoje a FAMEB voltou a instalar-se (parcialmente) na sede antiga; está avançado o processo de restauração do edifício e acha-se consolidado o Memorial de Medicina Baiana, que reúne todo o acervo histórico da dita Faculdade e ocupa nove salões do velho prédio. Este Memorial envolve o mais importante documentário do ensino médico do Brasil, com um grande volume de teses e ensaios, relatórios, memórias, registros de pesquisas de gerações de cientistas, além de livros raros dos séculos XVI ao XIX . Nas dependências do mesmo prédio encontram-se hoje instalados também o MAFRO e o Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (MAE/UFBA). Mas ilustres doutores consideraram impertinente a permanência de ambos os museus — e em particular do MAFRO — em salas do nobre edifício, por inconciliável, a seus olhos, com a verdadeira vocação do santuário das artes médicas da Bahia, cuja restauração está praticamente concluída, depois de décadas de abandono e degradação.
O MAFRO tem um acervo formado, em parte, por peças de cultura material de origem ou inspiração africana: utensílios empregados na vida cotidiana, artefatos que ilustram processos tecnológicos ou se reportam ao universo religioso de populações tradicionais do continente negro e peças que correspondem a manifestações artísticas de sociedades dessa parte do mundo — esculturas, máscaras, tecidos, cerâmica, adornos, instrumentos musicais, jogos e tapeçarias, bens adquiridos, na década de 1970, pelo Ministério das Relações Exteriores, ou doados ao Brasil por embaixadas de países da África. Mas o acervo compreende também produtos afro-brasileiros. Quanto a estes, trata-se, na maioria, de objetos relacionados com o candomblé: são insígnias e adornos dos principais orixás, assim como vestes litúrgicas de sacerdotes famosos, líderes de grandes terreiros de Salvador (objetos ofertados pelo povo-de-santo).
Além desses elementos, merece destaque especial no acervo do MAFRO o conjunto de talhas em cedro do grande artista plástico Carybé (o argentino-brasileiro Hector Bernabó Carybé, que era Ogan do Ilê Axé Opô Afonjá.) Trata-se de uma obra com dimensões monumentais (os painéis têm de dois a três metros de altura) retratando vinte e sete orixás. Nada comprometedor para a beleza e a dignidade do velho edifício, evidentemente... Porém até pela imprensa houve reclamações de luminares da FAMEB incomodados com a presença dessas coisas no seu interior, por considerá-las não condizentes com o lugar.
A discussão arrefeceu, mas deixou seqüelas. O MAFRO continua instalado em dependências do solene prédio; contudo, houve quem o lamentasse entre os saudosos ex-alunos da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia.
A congregação da FAMEB também insiste em tirar daí o Museu de Arqueologia e Etnologia.
Isso não deixa de ser curioso. Nos tempos áureos em que este prédio ainda estava bem conservado, funcionou nele um outro museu que invocava o patronato de Nina Rodrigues e tinha no seu acervo objetos de culto do candomblé... entre outras coisas, que o faziam muito diferente do MAFRO: cabeças de cangaceiros degolados, por exemplo.
Era tríplice a mostra que se exibia no tal museu. Uma parte se compunha de armas e instrumentos diversos empregados em homicídios, roubos e furtos, além de baralhos viciados, dinheiro falso, artifícios usados por narcotraficantes para o transporte e a venda de seus produtos etc. Outra parte encerrava exemplares teratológicos da colheita dos legistas baianos: aberrações anatômicas diversas, fetos hidrocéfalos, essas coisas. A terceira parcela do seu acervo é que era formada pelos objetos de culto do candomblé.
No dito Museu, a princípio batizado com o nome de Nina Rodrigues, depois com o de Estácio de Lima, nunca houve qualquer indicação do motivo que levaria a compor mostra tão heteróclita. Mas o recado silencioso das peças era claro: o conjunto de itens colocado ao lado de aberrações da natureza e de documentos da delinqüência só podia ler-se no modo negativo, como testemunhos de um desvio, de taras, de uma patologia.
Enquanto aí esteve, o então Museu Nina Rodrigues jamais suscitou qualquer protesto da comunidade científica. Foi por considerações de ordem prática que ele se transferiu para a Secretaria de Segurança Pública, à qual ficou subordinado: funciona hoje em prédio anexo ao Instituto Médico Legal, no Complexo de Delegacias dos Barris, com o nome de Museu Estácio de Lima.
Atendendo a uma reivindicação de terreiros baianos, o Ministério Público Estadual, ao termo do Processo n. 27007049-5, determinou a retirada dos objetos de culto do candomblé daquele estranho conjunto. As peças de arte sacra foram levadas para uma sala do Museu da Cidade, subordinado, este, à Fundação Gregório de Matos, da Prefeitura Municipal do Salvador; essa dependência, que era chamada, a princípio, Sala do Museu Estácio de Lima, veio a ser depois apresentada como Núcleo II do Museu Estácio de Lima.
As peças fora transferidas em agosto de 1997, segundo decisão tomada em junho do mesmo ano em uma reunião entre promotores e representantes do órgão estadual questionado. Foi “convocada pelo Ministério Público, por meio do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça e Cidadania, a que chegou representação conjunta de “sociedades [associações] de Proteção e Defesa dos Cultos Afro-Brasileiros, terreiros de Candomblé e de organizações do Movimento Negro”, conforme registra o Diário do Poder Judiciário - Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – terça-feira 01/07/1997.
Assim como acontecia no espaço de onde provieram, neste que veio a abrigá-los o visitante não acharia qualquer indicação da origem dos objetos em apreço, nem do motivo pelo qual eles se encontravam aí guardados; ou seja, por mais que procurasse, não acharia, nem no Núcleo I nem no Núcleo II do Museu Estácio de Lima, informação alguma sobre o modo como foi composto seu acervo. Em particular, nada constava sobre a forma como os objetos de culto do candomblé foram parar aí. Não há documentos indicativos da procedência das peças, não há referência à sua origem.
Mas este silêncio mal esconde o que todos sabem. Encobre um segredo de Polichinelo, muitas vezes divulgado com clareza pela imprensa baiana. Em 2004, uma colunista do jornal Correio da Bahia informava a seus leitores que se encontravam “no Museu da Cidade” (Largo do Pelourinho, n. 3, Centro Histórico de Salvador) esculturas e instrumentos sagrados expostos “... no Núcleo 2 do Museu Estáciode Lima” e acrescentava: “As peças foram recolhidas pela polícia durante o período de repressão ao culto afro-brasileiro na Bahia [período este] que durou até início da década de 1960 do século XX”.
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A mostra heteróclita descrita acima corresponde ao formato do Museu Estácio de Lima até o ano de 1997. Ela se acha registrada no vídeo-documentário Museu Estácio de Lima, produzido por Koinonia, Presença Ecumênica e Serviço, através do seu Projeto Egbé.
Terá razão quem a estranhar... Mas a lógica da exposição que até essa altura se fazia no famoso Museu é a mesma que rege a produção teórica dos pioneiros na abordagem dos ritos do candomblé, em estudos que os remeteram ao campo psiquiátrico. Ela se prende a teses racialistas abraçadas por Nina Rodrigues, adepto da Escola Italiana de Penologia, em que pontificaram Lombroso, Garofalo e Ferri.
Costuma-se dizer que o racismo dessa abordagem foi superado, limitou-se aos estreitos lindes de um passado remoto, ora devidamente sepultado. Mas não é verdade. Só quase no fim do século XX o Museu Estácio de Lima — por imposição da Justiça — fez cessar a exposição que ilustra essas teses de maneira brutal, tendo resistido por mais de uma década a pressões da sociedade civil para fazê-lo.
Até essa data, escolas públicas de Salvador levavam seus alunos, do ensino fundamental e do curso secundário, para visitar a exposição onde objetos de culto do candomblé eram apresentados junto a armas de crime e ao que a medicina chama de monstros. Assim a Faculdade de Medicina da Bahia e, depois, a Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia ministraram, durante meio século, espantosas aulas de racismo, sistemáticas, regulares, a um público formado, em grande medida, por crianças e jovens. Quantos preconceitos essa estranha pedagogia da discriminação há de ter plantado? Lembremos que ela invocava a autoridade da Ciência: da Psiquiatria, do Direito, da Medicina Legal...
De qualquer modo, não parece que tenha sido muito edificante para as crianças levadas ao famoso museu ver, por exemplo, cabeças de degolados, ou os testículos de um homem castrado por bandidos. Tampouco se pode dizer que a ciência psiquiátrica tenha lucrado alguma coisa com a exposição de objetos de culto do candomblé roubados aos terreiros baianos e colecionados por estudiosos para quem os ritos afro-brasileiros, assunto de sua consideração psiquiátrica, jurídica, higiênica etc. representavam indício de inclinação patológica de uma raça considerada inferior.
Uma coisa não se pode negar: a leitura “científica”, “racional”, “higiênica” dos ritos afro-brasileiros expressa no Museu Estácio de Lima é muito mórbida. E isso não decorre dos ritos contemplados. Decorre do olhar “científico” que assim os divisou.
Preconceitos que deitaram raízes no campo da ciência no século XIX e em parte do século XX fizeram dos ritos afro-brasileiros um “problema psiquiátrico” diretamente ligado a um suposto “drama originário” do Brasil: o imaginado handicap de sua formação racial. A propósito, recorde-se uma famosa sentença de Nina Rodrigues (1977:7):
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido seus incontestes serviços a nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros de seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo.
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