Ano passado estando em Belo Horizonte, por ocasião de um congresso acadêmico, fugi três noites seguidas das sessões. Na quarta-feira, fui à Igreja Caverna do Adulão, constituída por um grupo de heavy metal; na quinta-feira, visitei a Igreja Batista da Lagoinha, participando do Culto dos Motociclistas; finalmente, na sexta-feira, estive na Igreja Batista da Floresta, por ocasião da realização da Vigília do Rancho dos Profetas. Em todos cultos houve louvor, mensagem, ofertório, apelo, ou seja, uma liturgia básica e padrão de qualquer outra igreja com culto normal. O que diferenciava, então, estes grupos nesses cultos? O público. A freguesia em suas peculiaridades de vestimentas, estilos, interesses e ênfases. Enfim, o tribalismo urbano. Essa é, provavelmente, a nova dimensão eclesiológica mais original: igrejas segmentadas de tribos urbanas.
O que são tribos urbanas? Michael Maffesoli, em seu livro O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades pós-modernas (1985,) conceitua, genericamente, as tribos urbanas assim: são abertas, exclusivas e instáveis; contestatórias e passivas. Marcadas por uma contracultura underground, constituem-se numa forma de cultura alternativa ou marginal: contra a cultura familiar e religiosa padrão (no mundo ocidental, principalmente); movimentos típicos de contestação social dos jovens, com consumo de drogas, sexo livre (pós pílula); cultura anárquica (na acepção política) contra o sistema capitalista burguês consumista. Em busca de (alguma) utopia. A objetivação é a construção da (nova) identidade: vestuário, música, ideologia, esportes, dialetos, espaços urbanos. Dentre outros, temos os seguintes grupos: emos, clubbers, drag queens, cults, góticos, grafiteiros, grunges, hyppes, metaleiros, pagodeiros, patricinhas e mauricinhos, rappers, roqueiros, skinkeads, surfistas, baladeiros, nerds, regueiros, playboys, punks, rastafáris.
Com esta compreensão do ambiente social urbano como contexto, nos reportaremos, especificamente, a nossa questão central: a relação entre templos e igrejas. Ou seja, constatamos agora a prevalência, de forma inexorável, de uma nova forma de ser igreja. Esta nova delimitação eclesiástica apresenta as seguintes características:
Primeiro, anteriormente, a delimitação dos templos era absolutamente geográfica. Daí, a designação de paróquia e diocese como elemento fundante de nossas igrejas: estas eram formadas por gente que morava próximo ao templo, por isso, então, a paróquia. A nova delimitação eclesiológica, atualmente, não mais diz respeito a sua localização geográfica, mas a sua estrutura, ou seja, o templo hoje é avaliado se tem sanitário, berçário, bebedouro, acústica, bom visual e, nas grandes cidades, principalmente, estacionamento!
Segundo, a identidade de uma igreja era percebida pela Bíblia usada e pelo louvor. Antigamente sabíamos quem era quem pelo tipo de versão da Bíblia que usava: a Bíblia Trinitariana, a versão de Scofield, a versão traduzida por João Ferreira de Almeida ou Revista e Corrigida ou Revista e Atualizada. A identificação também se dava pelos hinários usados: se Cantor Cristão, era da Igreja Batista; se Harpa Cristã, era da Assembléia de Deus; se Salmos e Hinos, era da família Presbiteriana e, assim por diante. Agora a “nova identidade bíblica” é, convenhamos, customizada: Bíblia do Homem, Bíblia da Mulher, Bíblia do/as Menino/as, Bíblia Teen, Bíblia de Vitória Financeira (e, como digo em sala de aula, de vitória financeira para quem vende...), e mais um subproduto, a mais nova Bíblia da Mulher Vitoriosa. Também tivemos uma grande mudança no louvor. Saíram os hinários tradicionais e, agora, como evangélicos globalizados, em todas as igrejas se cantam o que todos cantam em todos os lugares, ou seja, as mesmas músicas. Ademais, para fazer sucesso o hit parade gospel, obrigatoriamente, precisa ter algumas palavras-chave comuns a todos os grupos: chuva, paixão, adoração, restituição, etc. Afinal, parece que o maior critério de validação de um “louvor” é o caixa.
Terceiro, uma nova delimitação social dos grupos. Mas, antes de falarmos nas novas “tribos gospel”, lembremos que, mesmo nos ambientes tradicionais, ocorrem combinações esdrúxulas e inimagináveis. Existem atualmente batistas presbiterianos, presbiterianos congregacionais, pentecostais episcopais (no modismo “apostólico”), assembleianos renovados pentecostais, luteranos pentecostais e até os inusitados evangélicos esotéricos[2]. Mas também temos as chamadas “Igrejas Alternativas”. Vou apenas citar, admitindo que alguns dos nomes e grupos que aparecem merecem uma analise muito mais acurada do que a simples citação. Existe hoje um grupo anárquico chamado de Espiritualidade Libertária (sem templo, mas com reuniões na calçada do centro cultural de São Paulo). O movimento Tribal Generation, presente hoje em diversos países. Ajuntamento das Tribos (um movimento underground de missões urbanas). Há até uma inusitada denominação evangélica que nega ser denominação. Não é uma igreja é apenas um Caminho da Graça. Ironicamente, é a negação institucionalizada da instituição.
Enfim, nossas igrejas podem até mudar muito e serem cada dia mais “liquidas”, já os templos continuam bem sólidos. Aliás, mais do que templos, agora estamos na fase do “catedrismo”. Ricos, temos, cada vez mais, grandes e fabulosos templos! Afinal, é a imagem e a eficiência de um shopping, com estacionamento, grife, bebedouro que traz o cliente para consumir. Perdão, louvar! Já as doutrinas, fatalmente estão gasosas. Daí, para acompanhar o processo químico, chegamos às “Igrejas líquidas”.
Usando a teorização de Zygmunt Bauman (2007), em Vida Líquida, e também em Modernidade Líquida, a realidade social em sua forma macro e as relações pessoais em uma relação micro, têm, dentre outras, as seguintes características: estrutura difusa, produção e produtos com validade datada, obsolescência de dados, falta de regulamentação e perenização das relações, morte das utopias, relações fluídas, que correm e escorrem sem obstáculos, ausência de peso e densidade, etc. Na sociedade líquida, como na realidade virtual tudo é fácil, simples, rápido, mas sobretudo descartável. Fluído, enfim, líquido. A “liquefação dos laços sociais” é a marca fundamental.
Não estamos, portanto, nesta realidade social, também produzindo uma “igreja líquida”? Nem pior nem melhor que nossa própria época, apenas um reflexo da realidade? Além do exposto, vejamos algumas considerações finais um tanto aleatórias:
- O tribalismo fluído. A realidade eclesiológica para além da transcendentalidade espacial e temporal, no seu novo modelo tribalizado, também é afetada pela mistura das tribos. Ou seja, as tribos são também intercambiáveis. Como no comercial do Mcdonalds, os clientes são diferenciados, mas estão misturados. Algo típico de uma praça de alimentação de um shopping. Juntos, mas visceralmente distintos. Os membros de diferentes tribos se encontram e se misturam nos espaços de diversão, escolar, familiar, esportivo, etc., por que não, também, nos espaços religiosos?
- Mais uma peculiaridade de nosso tempo: hoje temos templo ANTES da igreja. Isso valoriza mais o espaço que as relações comunitárias; é o estilo das pessoas quem conta de fato, muito mais do que as próprias. “A proximidade não exige mais a proximidade física; e a contiguidade física não determina mais a proximidade” (Bauman, 2007:14)
- “Igreja franquia”: uma denominação/estilo que alcançou o país em poucos anos. Modelo administrativo, estilo de louvor, esquema de arrecadação, etc. É um modelo de racionalização econômica para dar (mais) lucro ao seu(s) idealizador(es).
- Quanto o carro interfere em nossa eclesiologia? Por razões óbvias, nossas igrejas nas grandes cidades, ou mais pessoalmente, os membros de nossas igrejas, só se reúnem - quando conseguem - uma vez por semana. O conceito de igreja, povo convocado, já teria, a partir da questão do tempo, de ser refeito. Ademais, o povo que se reúne localmente, não mais vive localmente, na região da paróquia. Por que as pessoas – de carro. – vêm a esta igreja/templo e não aos mais próximos de suas residências? As pessoas modernas não sabem fazer nada se não for de carro. Alguém precisa aprofundar esta questão: a profunda alteração que o automobilismo produziu na eclesiologia.
- O interesse do grupo/tribo, ou mais particularmente o interesse imediato de cada individuo, é o elemento principal de definição da escolha da religião. Em síntese, é isso o que o sociólogo Rodney Stark (2008:207) diz em seu livro, Uma teoria da religião. Escolhe-se uma religião a partir de um cálculo entre custos e benefícios. “Os seres humanos buscam o que percebem ser recompensas e evitam o que percebem ser custos”.
Gedeon Freire de Alencar - Doutorando em Ciências da Religião, PUC-SP. Diretor Pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos – ICEC de S. Paulo. www.betesda.com.br
[2]Elementos pagãos, fechamentos de chacras, processo de cura interior, unção de lugares e objetos, etc.