À memória de minha mãe, Velia Ortiz Cruz, mulher profundamente calvinista sem sabê-lo.
O Senhor me tinha dado um filho: privou-me dele [...] Em toda a Cristandade tenho dezenas de milhares de filhos.1
(João Calvino)
Calvino é uma catarata, um bosque primaveral, um poder demoníaco, algo que desceu diretamente do Himalaia, absolutamente chinês, estranho, mitológico; careço completamente dos meios, das ventosas para falar de ou para apresentá-lo adequadamente. [...] Poderia, alegre e com proveito submergir-me e dedicar o resto de minha vida a Calvino2.
(Karl Barth)
Introdução: “O mais católico dos Reformadores”
E, talvez, o mais humanista...Porque qualquer aproximação à figura do reformador franco-genebrino, que ainda muito jovem experimentou o fel da perseguição e do exílio, e que teve de ouvir a feroz admoestação de seu compatriota Guilherme Farel para sair da torre de marfim da erudição e enfrentar a enorme responsabilidade de conduzir os destinos da Reforma ante o risco de sua desintegração ou assimilação aos impulsos renovadores católico-romanos (“Farel me deteve em Genebra, nem tanto por seus conselhos e exortação, mas por uma conjuração espantosa, como se Deus tivesse estendido do lato sua mão sobre mim para me deter”, escreveria Calvino em l5573), deve levar muito a sério o fato de que integrou, em sua fé e em seu discurso teológico, uma ampla gama de elementos, como o mais profundo respeito pela Palavra de Deus, o zelo genuíno pela fé dos apóstolos, uma piedade profunda e provada, além de um amplo conhecimento da tradição teológica da Igreja e do pensamento clássico.
Somente assim devemos entender a reivindicação-rehabilitação-reintegração que o Vaticano acaba de fazer com Calvino ao reconhecer o peso específico de seu valor para o Cristianismo de todos os tempos. Humanismo, catolicidade (no sentido de institucionalidade e ordem) e impulso reformador, combinados numa única pessoa; pai espiritual dos “gramáticos da fé”, como se chegou a conhecer os reformados de todas as latitudes; Estes senhores – exclama Bossuet com razão – eram humanistas e gramáticos. Bossuet, polemista, Bossuet, crítico de Calvino, destacou melhor do que qualquer outro pensador do século XVII, o caráter retórico do movimento reformado. Frente ao mistério, Calvino se comporta em muitos sentidos como lógico ou gramático, preocupado em dar transparência à linguagem da fé e eliminar toda obscuridade inútil.”4
Apenas uma semana antes da comemoração da data exata do nascimento de Calvino, L’Osservatore Romano, periódico oficial do Vaticano, publicou um texto de Alain Besançon, membro da Academia Francesa, sobre a nova edição de Obras do Reformador publicada na prestigiosa coleção La Pléyade (Gallimard, 2009, 1520 p.). Sob o título “Il riformatore Che disincarnò l’Incarnazione” [O reformador que desencarnou a Encarnação], o artigo de Besançon vai além das fronteiras de uma mera resenha e se ocupa em ressaltar o impacto de Calvino nos países europeus, comparando-o com os alcances realizados por Lutero. As primeiras palavras do artigo colocam o reformador ao lado de Rousseau, como a dupla de figuras francesas que provocaram transformações profundas na civilização ocidental:
“Poucos franceses deixam uma marca duradoura, visível e reconhecida sobre a face da terra. Não me refiro àqueles que lançaram uma moda intelectual ou artística [...] Menos ainda daqueles que fazem parte já dos clássicos, como Montaigne, Pascal, Balzac, Cézanne e muitos outros. Penso somente nos que incitaram uma parte da humanidade européia e a desviaram de seu caminho histórico habitual, que não tiveram a força de imprimir-lhe outra direção. Não vejo mais do que dois: Rousseau, sem dúvida, quem remodelou o século XIX e até o século XX, e, ainda mais, Calvino.”5
A notícia do aparecimento deste texto na imprensa oficial vaticana deu volta ao mundo, sobretudo porque alguns meios de comunicação a interpretaram como uma espécie de “reivindicação” ou resgate do antigo herege do século XVI, o que não foi do gosto de muitos católicos conservadores. Antes de mais nada, Besançon reconhece a Calvino como um cristão, ortodoxo, que aceitou os principais credos antigos:
“Era um cristão que cria na Igreja uma, santa, católica, embora preferisse dizer universal e apostólica.[...] Cria na Trindade, no pecado original, a salvação através de Jesus Cristo e, embora não gostasse que se rezasse à Mãe de Deus, cria firmemente em sua virgindade perpétua. Ao contrário do que se diz, cria na presença real [de Cristo na Eucaristia], embora não admitisse a concepção católica da transubstanciação.”6
Muito tempo antes de Besançon, Alexandre Ganoczy y Jesus Larriba assinalaram as enormes coincidência de Calvino com o pensamento católico, especialmente em relação a realização do Concílio Vaticano II.7 Não se deve esquecer que, em seu exílio em Estrasburgo, Calvino participou de reuniões preparatórias do Concílio de Trento, que hoje seriam qualificadas de “ecumênicas”.8 . Para Ganoczy, especialmente, o reformador e jurista foi “o mais católico” dos dirigentes da chamada “reforma magisterial”, por sua ênfase institucional e sua imagem da Igreja como “mãe dos crentes”, frase que para muitos ouvidos protestantes era irremissivelmente romanista e que, entretanto, foi retomada recentemente por calvinólogos como o valdense italiano Emídio Campi9.
1. De quem falamos ao falar de Calvino?
Parece mentira, mas depois de 500 anos ainda não fica muito claro de quem falamos ao referir-nos a Calvino, principalmente por causa dos extremismos produzidos, por um lado, pela calvinolatria ou calvinomania presentes em muitos círculos ligados a sua tradição e, por outro, por causa das interpretações de sua vida e influência que o mostram somente como alguém que exercitou autoritariamente o escasso poder que obteve. Além das festividades, em vários países se continua analisando a figura de Calvino, o que, sem dúvida, produzirá mais elementos de juízo para se alcançar critérios mais equilibrados de julgamento. Na Espanha, por exemplo, e a propósito de um par de biografias de autores franceses (Bernard Cottret10 e Denis Crouzet11), Marta Garcia Alonso se pergunta pela pessoa de Calvino e responde de uma maneira muito simples: “Um pastor protestante que exerceu sua atividade na cidade de Genebra lá pelo século XVI.”12 . A reação é imediata:“ Por uma pessoa assim, por que então tanto barulho no aniversário de seu nascimento? Mas Garcia Alonso acrescenta:
Calvino, com efeito, soube multiplicar-se [...] Calvino inicia a partir de Genebra difusão de seu credo com um êxito que, retrospectivamente, só pode ser qualificado de extraordinário [...] Aqui começa a multiplicação do calvinismo, assim como a doutrina de Calvino evoluía à vista das circunstâncias que lhe tocou viver em Genebra, continuaria desenvolvendo-se depois de sua morte na medida em que proliferavam as igrejas que nela encontraram a sua inspiração [...] Mas aqui também começa o conflito dos exegetas: quem foi verdadeiramente Calvino multiplicado e qual a sua doutrina ?13
Assim, por causa de tantas interpretações contraditórias, ao se falar de Calvino, é preciso sempre se perguntar: De quem falamos? Do Calvino ”fundamentalista” das igrejas mais conservadoras ou do “modernista” das comunidades ligadas ao movimento ecumênico? Do liberal (se é que este existiu ), estandarte das mudanças sociais, ideológicas e culturais, ou do conservador, bandeira de alguns muitos grupos religiosos? Mas, ainda mais, para responder adequadamente à pergunta faz-se necessário focalizar suficientemente os diversos “filtros” pelos quais seus ensinamentos passaram, e responder a uma outra pergunta fundamental: a quem nos estamos referindo: a Calvino, como figura fundadora, ou aos calvinismos históricos? Porque sempre existiram os “filtros” para se aproximar a ele e à sua herança, isto é, intermediários de vários tipos que deixaram suas pegadas na transmissão da doutrina calviniana. É verdade que esta não pode definir-se como algo puro ou intocável, entretanto, algumas das mediações que se assumem a si mesmas como “calvinistas” se apresentam, à vezes, como as depositárias genuínas (e inclusive únicas) do verdadeiro legado de Calvino.
Uma conseqüência obrigada desta temática é o interessantíssimo tópico dos intérpretes de Calvino, de tal forma que, parafraseando a São Paulo, alguns quase que poderiam dizer: “meu Calvino é o de Spurgeon, o de Kuyper, o de Barth, o de Moltmann, o de Lukas Vischer, ou mesmo o de Gerardo Nyenhuis...”. Esta variedade hermenêutica deve, necessariamente, ser revisada para se descobrir (e se exibir, se for o caso) as marcas ideológicas que “embaçam”, por assim dizer, a compreensão e a aplicação do legado calviniano às diferentes circunstâncias. Um exemplo é a impossibilidade real de se basear em textos de Calvino para promover a ordenação das mulheres, passando por alto, obviamente, a tragicômica possibilidade de que se Calvino vivesse hoje entre nós, seria um pastor ou teólogo marcado pelo estigma da libertação e da reivindicação das minorias na Igreja; para dizer o mínimo, estaria lutando contra a intolerância em Chiapas ou em Oaxaca (como o fez em seu país) e, evidentemente, com a escassa simpatia de boa parte dos representantes de sua tradição. O certo é que, para dizê-lo com clareza, cada qual tem o Calvino que merece... ou o que lhe convém, na medida em que, como acontece com os nomes influentes em todos os campos, as diferentes zonas de influência se apropriam daquilo que melhor lhes servem ou se adapta às suas necessidades. O professor Andrew Pettegree se ocupou em descrever este processo normal de apropriação, adaptação e mesmo de saque nos seguintes termos:
“Como o movimento de Calvino se disseminou e enraizou nos anos posteriores a 1560, necessariamente se adaptou a uma enorme variedade de circunstâncias diversas em igrejas nacionais, cidades-Estado, onde o poder estatal cooperava com a Igreja como em Genebra, ou lhe era francamente hostil. Em diferentes partes da Europa, alguns aspectos do ensino calviniano pareciam mais ou menos aplicáveis ou apropriados. Houve igrejas que, não obstante seu apreço por Calvino, quando a ocasião lhe exigia, deixavam de lado seu pensamento em questões conflituosas.”14
2. Caricaturas e mitos calvinianos em jogo
Muita água passou por baixo da ponte. 500 anos depois do nascimento do reformador francês João Calvino, acumularam-se muitíssimas interpretações de sua vida e de seu legado. De forma unânime ele é reconhecido como o continuador e consolidador do impulso reformador iniciado por Lutero na Alemanha e Zwinglio na Suíça, e, também, como o mais notável integrante de uma nova geração de dirigentes religiosos que buscavam uma transformação profunda na vida da Igreja. Seu trabalho em Genebra, cidade que chegou a ser o eixo da Reforma, principalmente seu trabalho de interpretação bíblica, teológica e pastoral foi objeto dos mais inimagináveis estudos, dos mais exaltados até às qualificações mais azedas.
Tanto em círculos acadêmicos como nos eclesiásticos, o nome de Calvino está associado a uma série de mitos, preconceitos e caricaturas que vale a pena descrever e procurar desmontá-los com a perspectiva de superá-los para alcançar uma visão mais equilibrada que supere as ênfases apologéticas e hagiográficas. O Rev. Peter Wyatt descreveu alguns mitos cuja discussão pode servir para penetrar nos grandes temas com os quais se relaciona a figura de Calvino e que representam uma parte da enorme plataforma de incompreensão que se criou ao seu redor.15 Sem dúvida de que muitos outros poderiam ser incluídos mas, numa visão panorâmica, podem ajudar a vislumbrar um território que tem sido patrimônio de biógrafos, historiadores e teólogos.
O primeiro mito tem a ver com a suposta teocracia que Calvino estabeleceu em Genebra: depois de sua primeira estada de dois anos, permaneceu o resto de sua vida na cidade, mas não foi senão na avançada década de 1550 que obteve a sua cidadania. Sua função essencial foi a de pastor e professor de Bíblia. O controle político de Genebra quase sempre esteve na mão de seus opositores.
O segundo mito se refere à afirmação de que Calvino desacreditava radicalmente da bondade humana. Não obstante, filósofos como Wilhelm Dilthey assinalaram que, embora Calvino tenha falado duramente sobre o pecado humano, ele mesmo exaltou, como poucos, a dignidade e o destino da humanidade. Com respeito a isto é muito útil esta citação de Brian Gerrish: “A indignação de Calvino para com a ingratidão do ser humano e não sua indignação com a humanidade, é o que está por trás de sua retórica do pecado e da depravação.” O mito seguinte afirma que o reformador foi “um partidário implacável da disciplina”, algo que, evidentemente, poderia ser aplicado, sem dúvidas, a sua vida pessoal, mas nem tanto no âmbito de seu trabalho comunitário, especialmente pelo que adverte Wyatt sobre as reuniões semanais de Calvino e sua equipe pastoral, quando se mostravam muito mais interessados na compreensão e na restauração do que na aplicação de castigos. Entretanto, até mesmo Karl Barth, um dos comentaristas mais lúcidos da obra do reformador, chegou a dizer, não sem uma pitada de humor, que ele não teria gostado de viver na “santa cidade” de Calvino, por causa da disciplina de ferro que ali se aplicava.
Outro mito, muito ligado ao anterior, tem a ver com a afirmação de que Calvino era um obcecado pela moralidade pessoal, um assunto que, certamente, lhe causou grandes problemas, pois a filha de sua esposa e uma cunhada incorreram em adultério, situação que o envergonhou profundamente.16 Na verdade Calvino insistia nas exigências éticas do Reino de Deus, pois acreditava que estas respondem à maneira pela qual a sociedade se encaminha para uma transformação concreta em termos do bem comum. Poder-se-ia dizer, de maneira mais atual, que a Calvino lhe preocupavam muito mais os “pecados estruturais” que as simples faltas individuais. Neste sentido, o objetivo teológico fundamental é “prestar toda a glória a Deus” em todas as áreas da vida, assim como o reconhecimento da criação inteira como cenário natural para a manifestação da magnificência divina, inclusive na perspectiva de certos grupos hoje, envolvidos com a luta ecológica.
A imagem de Calvino como promotor e paladino da auto-negação é outro mito fortemente enraizado, pois expressões tais como “mortificar a carne” ou “levar a cruz” passam hoje pelo filtro da reivindicação da dignidade humana. Assim, é nesse rumo que iam as idéias calvinianas sobre a auto-negação, entendidas como capazes de gerar ajuda para os mais desfavorecidos. Como comenta Wyatt: “Ao promover uma ética da auto-negação Calvino chamava os que eram relativamente ricos a dar algo de seu sustento para o benefício de outros” A base desta proposta era uma consequência da Fé na imagem de Deus nos seres humanos, razão de ser da preocupação pelo próximo. Alguns analistas viram nestas ideias o germe de uma autêntica teologia libertadora.
“Calvino, pai do capitalismo”: talvez seja este o mito mais divulgado no campo das ciências sociais e o que gera mais antipatias, principalmente porque, nestes tempos hiper-globalizados este sistema econômico ficou quase órfão, porque ninguém deseja assumir sua paternidade. Calvino, já sem poder defender-se, seria uma espécie de “vilão favorito”. Ele acusado, principalmente, de permitir os empréstimos com juros, algo que certa crítica católica parece que nunca lhe perdoará. O certo é que as claras conexões da espiritualidade reformada com as bases mesmas da modernidade fizeram com que esta fé aparecesse como um dos fatores que permitiram o desenvolvimento do chamado “espírito capitalista”, particularmente em sua versão inglesa e estadunidense. O promotor mais notável desta interpretação da história econômica foi Max Weber, um dos fundadores da sociologia, graças a sua conhecidíssima obra A ética protestante e o espírito do capitalismo. O que se deveria saber melhor é que Weber não analisou diretamente o pensamento calviniano, mas que trabalhou, sobretudo, as derivações inglesa (a Confissão de Fé de Westminster) e estadunidense (as idéias de Benjamin Franklin, entre outros). Afortunadamente o professor mexicano Francisco Gil Villegas produziu uma edição crítica do livro de Weber, no qual apresenta as necessárias distinções e explica, cuidadosamente, a relação entre fé puritana na predestinação e a “tradução econômica” dessa variante teológica calvinista. Villegas pergunta: “Como interpretava o mundo o tipo ideal do calvinista puritano do século VII?” Responde, então, com uma profundidade pouco comum entre os estudiosos alheios à teologia:
“ Deus é um ser onipotente e onisciente que já sabe, de antemão, quais neste mundo se salvarão e quais estão condenados a ser réus do fogo eterno; não podemos saber com certeza se estamos dentro dos predestinados à salvação, mas sim que podemos minimizar os sinais externos que nos identificariam como predestinados à condenação. Devemos trabalhar neste mundo tanto para aliviar a angustia de nossa possível condenação, como para que os frutos de nosso trabalho sirvam de oferta para glorificar ao Senhor. Não podemos ter nenhum tipo de contato místico com Deus porque ele é só pureza e nós somos imundos; tampouco podemos buscar a salvação por meio de rituais mágicos como o da eucaristia, nem fazer arranjos de contador entre nossos pecados e sua absolvição por meio de sacramentos, da maneira como isso é feito no catolicismo.
[...] Nossa conduta deve ser a de trabalhar muito, economizar nossos ganhos e não gastá-los em bens suntuosos ou em luxos, porque isto poderia ser um sinal inequívoco de estarmos predestinados à perdição. Em todo caso nossas economias devem ser investidas em obras que sirvam para honrar e enaltecer a glória do Senhor.17
Nesta linha de pensamento muitos crentes da tradição anglo-saxônica passaram a considerar o bem-estar econômico como uma maneira de comprovar que tinham sido eleitos por Deus para a salvação, o que constitui o sétimo mito, isto é, uma compreensão do trabalho que também foi vista como um efeito pernicioso das idéias calvinianas. A prosperidade econômica deve ser vista, melhor, como resultado do esforço que uma pessoa realiza em sua busca livre e prazerosa para servir da melhor forma a extensão do Reino de Deus. Sua ação, afirma Wyatt, acontece como “uma resposta agradecida à graça inquebrantável de Deus”.
Simpático ou não, pois como disse numa entrevista, com muito humor, a pastora e teóloga francesa Isabelle Graesslé, diretora do Museu Internacional da Reforma, às vezes nem sequer para os próprios calvinistas é uma figura muito atraente18, Calvino continua causando controvérsias meio milênio depois de seu nascimento. A tradição teológica que segue os seus passos insiste, em plena celebração, que o impacto do reformador supera, em muito, o mero aspecto eclesiástico e que suas pegadas podem ser percebidas em muitos âmbitos da existência social, política e cultural. Ainda há muita coisa para ser analisada.
3. Imagens de hoje por todas as partes
Com base no exposto até aqui, entre as muitas opções, possibilidades de desenvolvimento e mutações da herança calviniana, cinco séculos depois proliferam enfoques de todos os tipos e aplicações. Exemplificaremos algumas das mais chamativas. A revista Time, numa pesquisa sobre as 10 forças que movem o mundo, encontrou que o chamado “neo-calvinismo” é uma das primeiras. Entretanto, para alguns observadores, esta corrente não é mais que um retorno ao conservadorismo disfarçado de suposta renovação.19 Richard J. Mouw, presidente do Seminário Fuller, em seu livro Calvinism in the Las Vegas Airport. Making connections in the modern world, [Calvinismo no Aeroporto de Las Vegas. Fazendo conexões no mundo moderno, Grand Rapids, Zondervan, 2004] sugere que esta corrente, bem entendida como uma religião dúctil, serve muito bem para viajar e “fazer conexões” (como reza o subtítulo) no melhor espírito pós-moderno.20 Em espanhol, continuam as abordagens acerca das influências de Calvino sobre o surgimento do Estado moderno, algo que em outras latitudes não é nenhuma novidade, mas que nessa cultura continua sendo quase uma descoberta. Exemplo disso é o livro de José Antonio Álvarez Caperochipi, que revisa o impacto jurídico do movimento religioso e, no capítulo dedicado a Calvino, parte dos aspectos eclesiásticos e da predestinação para aterrissar nos princípios de organização das comunidades reformadas e daí, levantar a origem e o desenvolvimento da teoria do Estado segundo o Reformador, abordando dois aspectos fundamentais: o direito á resistência e os inícios da sociedade democrática. No capítulo seguinte se ocupa de como se secularizou o calvinismo na Inglaterra.21
Na Suíça, a pastora Isabelle Graesslé, na já anteriormente citada entrevista afirma de forma categórica: “O Calvinismo crê que todos somos iguais” e argumenta, entre outras coisas; “Não merecemos a salvação, mas isto não justifica que fiquemos de braços cruzados.” 22 . A despreocupação com que se expressa Graesslé é uma postura que faz muita falta nos círculos reformados, precisamente na busca de um maior diálogo com as perspectivas atuais, menos orientadas para o dogmatismo de outros tempos. Uma relação impensada, a partir da América Latina, é a que oferece o Rev. Obed Vizcaíno entre calvinismo e chavismo, pois como parte dos novos rostos da fé reformada em nosso continente, também é preciso enfrentar os dilemas políticos com os recursos da tradição religiosa. Evidentemente, uma aposta desta natureza pode ser revista segundo as mudanças das conjunturas, mas arriscar uma postura não é algo muito freqüente. Isto porque estas palavras são sumamente enfáticas: “A Igreja Presbiteriana de Venezuela (calvinista) conjuntamente com outras igrejas evangélicas do país, tem sido vanguarda em muitos processos libertadores que temos vivido em nossa pátria em diferentes momentos históricos.” 23 A contribuição calvinista, neste caso, oferece uma ferramenta de análise histórica e ideológica da própria experiência.
Finalmente, da Turquia chega a notícia de que existe uma sorte de “calvinismo islâmico”, isto é, que por fim o espírito empresarial está entrando nas categorias mentais e práticas do mundo islâmico num país que seja, a todo custo, tornar-se europeu. Para tal fim alguns empresários tem “descoberto” que suas industrias só poderão se desenvolver se puserem para funcionar o “espírito calvinista” da economia. Como afirma Sukru Karatepe, ex-prefeito da cidade de Kayseri: “Tinha lido Weber, quem escreveu sobre como os calvinistas trabalham duro, economizam dinheiro e, em seguida, o reinvestem em negócios”.24 Assim, para além da morbosidade de alguns blogs e sítios da Web, empenhados em mostrar o “rosto escuro” de Calvino (algo que os calvinólogos de todos os signos já fizeram até cansar...) é possível encontrar leituras e aplicações de todos os tipos para a influência do reformador francês, especialmente nestes tempos quando tudo passa pelo crivo da crítica e quando é possível construir e desenvolver múltiplos perfis interpretativos que continuam pondo sobre a mesa a atualidade de Calvino e sua, muitas vezes, imprevisível influência.
* Teólogo, médico, poeta e escritor mexicano. Pastor da Igreja Presbiteriana Nacional de México. Coordenador do Centro Basilea de Investigación y Apoyo e editor da revista eletrônica elpoemaseminal. Autor de vários livros dentre eles “Série de sonhos – A teologia ludo-erótica- poética de Rubem Alves.”
1 Calvino, J. Réponse...aux injures de Balduin. Opuscules (1562) apud Cottret,B. Calvino: la fuerza y la debilidad.Medrid: Univ. Complutense, 2001, o.174.
2 Barth-Thurneysen Correspondence: Revolutionary Theology in the making. Trad. de Smart, J.D. Richmond: John Knox Press, 1964, p. 101.
3 Cit. Por Cottret, B., op.cit., p.113.
4 Cottret, B., op.cit., p.177. Ênfase do autor. A citação de J.B. Bossuet procede de Histoire des variations
des Églises protestantes. Paris, Garnier, 1688.
5 Besançon, A. “Il riformatore Che disincarnò l’Incarnazione”, em L’Osservatore Romano, 3 de julho de 2009, www.vatican.va/news_services/or/or_quo/cultura/150q05a1.html. Versão de LC-O.
6 Cit. Por “O Vaticano destaca a figura de Calvino”, em El Universal, 2 de julho de 2009, www.eluniversal.com.mx/notas/609063.html
7 Ganoczy, A., “Calvino e a opinião dos católicos de hoje”, em Concilium, n. 14, abril de 1966: O pensamento eminente e sistematicamente ‘eclesial’ do reformador de Genebra é, certamente, afim à eclesiologia católica atual. Vários pontos essenciais da colegialidade promulgada no C. Vaticano II, por exemplo, parecem estar contidos na doutrina calvinista da Igreja.” Cf. Larriba, J. Eclesiologia y Antropologia em Calvino. Madrid: Cristiandad, 1975.
8 Cf. Vischer, L., Pia Conspiratio. Calvin on the unity of Christ’s Church. Genebra: John Knox Center, 2000 (Serie J. Knox, 12),p. 38:” Em seus anos iniciais de ação, Calvino aceitou participar em conversações onde se negociavam em suas frentes: em Frankfurt (1539), Hagenau (1540), Worms (1541) e, como delegado de Estrasburgo, em Regensburg (1541). Mesmo não tendo ilusões acerca das possibilidades de um acordo, a impaciência que se adverte em suas cartas é suficiente evidência de que aproveitou cada oportunidade para trabalhar mediante a controversia em busca da verdade.”
9 Cf. Campi, E., “Calvin’s understanding of the Church and its relevance for the ecumenical movement”, palestra apresentada na Consulta Internacional de preparação do Jubileu de Calvino. Genebra, em 16/04/2007, www.calvin09.org/media/pdf/theo/070905_Campi_Calvin-Eclesiology.pdf
10 Cottret, B., op.cit.
11 Crouzet, D., Calvino. Tradu. De I. Fierro. Barcelona: Ariel, 2001.
12 Garcia Alonso, M., “Quien fue Calvino?”, en Revista de Libros, 90, 2004. Universidad Nacional de Educación a Distancia, http:// e-spacio.uned.es.
13 Idem.
14 Pettegree, A. “The spread of Calvin thought”, en Mckim, D.,ed., The Cambridge Companion to John Calvin, Cambridge University Press, 2004, p. 208.
15 Wyatt, P. “Seven Myths about Johon Calvin” [Sete mitos sobre Calvino], em The United Church Observer, Canada, junho de 2009, www.ucobserver.org/faith/2009/06/john_calvin. A versão em espanhol é de Rubén Arjona M., em El Faro , maio-junho de 2009, PP. 90-92, www.publicacioneselfaro.com.mx.
16 Cottret, B. op.cit., p.175.
17 Cf. Villegas, G.F., “Introducción del editor”, en La ética protestante y el espíritu del capitalismo. TGradução ao español de L. Legaz lacambra, México: Fondo de Cultura Económica, 2003, p.30. Na p.28
Villegas escribe: “ Weber se interessou em estudar essa mentalidade moderna, que na “época heróica do capitalismo” do século XVI ao XVIII se foi impondo sobre a mentalidade do tradicionalismo econômico. A nova mentalidade teve a sua mais clara expressão nos setores sociais que eram os portadores históricos do ascetismo intra-mundano derivado da Reforma protestante em suas variantes do calvinismo, o pietismo, o metodismo, o puritanismo e as diversas seitas batistas”. (Ênfase do autor)
18 Couto, R. Carrizo, “La Iglesia católica ha roto con la tradición de tolerancia” , El País, Madrid 8/06/09
www.elpais.com/artículo/sociedad/Iglesia/católica/ha/roto/tradición/tolerancia/elpepisoc/20090608elpepisoc_6/Tes.
19 van Biema, David, “The new Calvinism”, em www.com/time/specials/packages/article/0,28804,1884782_1884760,00html
20 Cf. Jones, Brian, “Calkvinism in the Las Vegas Airport, by Richard J. Mouw”, em http:// brianjones.org/books/bookreview-calvinism-in-the-las-vegas- airport-by-richard-mouw.
21 Cf. Álvarez Caperochipi, J.A., Reforma Protrestante y Estado Moderno. Granada: Comares, 2008.
22 Couto, R. Carrizo, op.cit.
23 Nájera, O. Vizcaíno, “Carta al señor general Muller Rojas sobre el Calvinismo”, em El Faro, maio-junho de 2009, p. 92. Originalmente em www.aporrea.org/actualidad/ a62553.html
24 Cf. Lodhi, Aasiya, “El Calvinismo islámico turco”, en BBC Mundo, 13 de março de 2006.
http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/business/newsid_4801000/4801882.stm.