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RELIGIÃO E SAÚDE
Ano 4 - Nº 16
Junho 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
As redes de apoio social constituídas por pastores e agentes comunitários de saúde evangélicos no âmbito do cuidado e atenção à saúde da população
Por: Maria Beatriz L.Guimarães, Victor Vincent Valla e Alda Lacerda

No âmbito da proposta de se articular o campo da saúde com o da religião na compreensão do processo de saúde-doença das classes populares, esse artigo tem como objetivo apresentar resultados parciais da pesquisa 1 desenvolvida na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/FIOCRUZ, com pastores e agentes comunitários de saúde (ACS) evangélicos da região da Leopoldina, cidade do Rio de Janeiro. A escolha dessa região se deve ao fato de ser um local em que predominam a miséria e a pobreza, conhecida como uma das áreas mais violentas da cidade, com grande número de favelas e conjuntos habitacionais de baixa renda.

Entendemos ser relevante discutir acerca do impacto do trabalho dos pastores, bem como dos agentes comunitários evangélicos na saúde da população de baixa renda atendida - especialmente no que se refere às demandas advindas da dimensão simbólica e subjetiva dos sujeitos -, considerando que os referidos agentes públicos convivem e estão próximos dessa população, e, dessa forma, compartilham com os moradores alguns dos perigos e incertezas que os afligem.
O campo da saúde vem sofrendo transformações importantes nas últimas décadas, em decorrência da atual conjuntura social determinada pelo capitalismo globalizado, cujos resultados acentuam a distribuição desigual de renda, a precarização das condições de trabalho, o aumento do desemprego e da violência, a retração das redes sociais, entre outros, intensificando a pobreza, a exclusão e as desigualdades sociais (Castel, 1993; Bourdieu, 1998). Esses fatores sócio-econômicos e políticos contribuem para os agravos de saúde da população, formando assim um ciclo vicioso de pobreza, isolamento e adoecimento.

Nesse contexto de privação e isolamento cresce a demanda de atenção médica por agravos psicossociais. Grande parte da população apresenta queixas de ansiedade, angústia, insônia, depressão, tristeza, medos, baixa estima de si, falta de perspectiva de vida, dores generalizadas, denominadas por alguns autores de “sofrimento difuso” (Valla, 1999). Estudos anteriores (Valla, 1999; 2001) constataram que a população vem indicando outros caminhos - não mais restritos ao modelo médico hegemônico - para ajudar a resolver os problemas de saúde e aliviar o sofrimento, como as diversas formas terapêuticas de atenção e cuidado integral à saúde, tais como os grupos religiosos, trabalhos desenvolvidos em organizações não governamentais, associações comunitárias, movimentos sociais, grupos de promoção da saúde, entre outros.

Entre os diferentes grupos religiosos, optamos por trabalhar com as igrejas evangélicas devido à representatividade dessa corrente religiosa nas classes populares, na medida em que se evidencia, nos últimos anos, o grande crescimento desse segmento religioso (IBGE - 2000). Além disso, algumas dessas igrejas vêm desenvolvendo, há muitos anos, trabalhos de assistência, os quais têm estreita relação com os problemas de saúde da população (Valla, 2002).

É notória a falta de espaços para acolher e cuidar do sofrimento difuso nos serviços públicos de saúde, fato amplamente percebido por aqueles que vivenciam esse sofrimento nas classes populares (Guimarães et al., 2008). As práticas de saúde, organizadas segundo a lógica do modelo biomédico, priorizam o diagnóstico e o tratamento das doenças, definidas pelo saber técnico-científico, e tendem a se afastar do sujeito doente e seu cuidado. Embora os serviços públicos sejam cobrados pela produtividade, ou seja, pela quantidade de consultas, exames e procedimentos realizados, e disponibilizem pouco tempo para ouvir os relatos dos sujeitos, o que se percebe é que não se trata apenas de falta de tempo. É preciso levar em conta que é inerente à racionalidade da biomedicina não se ater ao relato do paciente, muitas vezes considerado “impreciso” e “subjetivo”, mas buscar a doença no organismo, seja pelo exame físico ou por instrumentos técnicos (Guimarães, 2005).

Nesse contexto constata-se um paradoxo entre os anseios da população em relação à resolutividade de seus problemas de saúde no âmbito dos serviços públicos e o atendimento disponível. Os pacientes valorizam a atenção médica, mas o distanciamento da relação profissional-paciente cria uma barreira cultural para muitos sujeitos e grupos sociais que demandam serem efetivamente tratados e não apenas diagnosticados (Luz, 1997; Valla et al., 2004).

Os problemas gerados pelo sofrimento difuso são responsáveis por uma parcela significativa dos gastos com consultas, exames, licenças médicas e aposentadorias por problemas de saúde. A resposta mais imediatista a esse tipo de sofrimento, e que tem sido utilizada nos serviços públicos, é a medicalização com benzodiazepínicos para “acalmar” os sintomas. O que se percebe é que o recurso à medicalização não resolve o problema individual e propicia a cronificação do paciente, dependente desse tipo de medicação, além de acobertar a discussão dos problemas sócio-econômicos envolvidos na gênese do sofrimento e da formulação de práticas e políticas de saúde que atendam às necessidades da população (Fonseca, 2007; Lacerda et al., 2007).
Tendo em vista a relevância de acolher e aliviar o sofrimento difuso, o cuidado assume uma dimensão importante, o que implica em sair da centralidade da doença para o sujeito e seu cuidado. O cuidado é mais do que um ato pontual, é uma atitude interativa de atenção, preocupação e responsabilização para com o outro (Boff, 2000), e inclui o acolhimento, a escuta dos sujeitos e o respeito pelo seu sofrimento e suas histórias de vida (Lacerda & Valla, 2004). Cuidar dos sujeitos é ajudá-los a aliviar o sofrimento e dar-lhes o apoio necessário para superar as dificuldades e enfrentar os impasses do cotidiano.

O cuidado integral pressupõe estabelecer relações de troca e envolvimento entre os sujeitos, e essas relações estão permeadas de conteúdos emotivos, que ao serem expressos precisam ser acolhidos (Lacerda et al., 2007). Assim sendo, o trabalho mecânico e técnico do profissional de saúde, mesmo que tenha o objetivo de cuidar do paciente, pode salvar vidas, no entanto, muitas vezes, negligencia o processo de sofrimento dos sujeitos que adoecem (Tesser, 1999).

As dimensões subjetivas e simbólicas do cuidado e as emoções abrem espaços para práticas sociais pautadas em um saber que na filosofia aristotélica é chamado de phrónesis ou sabedoria prática (Ayres, 2004). Esse tipo de saber tácito se distingue da técnica e da ciência, bem como do livre exercício da subjetividade criadora; aprende-se com a experiência e permeia de modo intencional as ações. No campo da saúde esse saber que se faz presente na relação com o outro é muito importante, pois as decisões, em grande parte, são tomadas a partir da prática, no momento em que as ações estão se dando, e é nesse momento que é exigido do profissional um julgamento e atitude diante da situação. É um saber que muda de situação a situação, por isto não cria leis universais. Nesse momento, o profissional pode lançar mão de saberes técnicos, mas não somente, pois há também os saberes populares, as convicções e valores pessoais, a religião (Ayres, 2004) e a intuição (Guimarães, 2005).

Valorizar o modo de conhecer por meio da experiência e da sabedoria prática pode contribuir para que o cuidado e as emoções sejam legitimados nas diversas práticas de educação e saúde. O cuidado pressupõe uma atitude de desvelo e atenção apurada para com o outro, para que se possa ser capaz de observar e captar pequenos detalhes, gestos inconscientes e sutis, pois eles podem traduzir o que as palavras muitas vezes não conseguem expressar (Guimarães, 2001). Ginzburg (1991) aponta para a relevância desse tipo de saber nascido a partir da prática, isto é, adquirido com a experiência, residindo aí a sua força. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo elementos imponderáveis, tais como: faro, golpe de vista, olho clínico, intuição.

Enfim, diante da precariedade e sofrimento das classes populares, é importante promover e legitimar espaços de escuta e construção de redes de apoio social, onde se torne possível tratar o sofrimento difuso, não por meio da medicalização, mas por abordagens que aproximem o cuidador e os sujeitos que estão sendo cuidados e permitam a expressão de emoções ligadas ao sofrimento - como os medos, ansiedades, tristezas, raivas, angústias - de modo que estas possam ser acolhidas e ressignificadas (Lacerda et al., 2007).

As redes de apoio social no âmbito do cuidado e atenção à saúde
O foco de nossas pesquisas está centrado nas práticas de atenção à saúde, que extrapolam a instância estritamente médica, desenvolvidas tanto por pastores quanto por agentes comunitários de saúde evangélicos, pois objetivamos investigar a qualidade do cuidado e atenção à saúde oferecida por pessoas religiosas e que convivem com a população atendida. Partimos do pressuposto de que por meio do sentimento de pertencimento a uma denominação religiosa e dos códigos compartilhados nessa esfera, o trabalho dos ACS também passa a ter um novo significado. Isto pode ser explicado pelo fato de que para aqueles que são convertidos a uma religião, a vida é reconstruída dentro desse sistema de crenças e inserida em uma visão de mundo sagrada, na qual o espiritual e o material não são separados (Cesar e Shaull, 1999). Através da compaixão sentida, da sensação da presença de Deus e da fé, o crente vê a sua vida de outra maneira (Corten, 1996). Compreende-se dessa forma que o trabalho, como parte intrínseca da vida desses ACS, também assume uma esfera sagrada e sobrenatural (Lacerda et al., 2008).

O trabalho exercido por esses agentes públicos – pastores e ACS - têm em comum o fato de ambos serem moradores e, portanto, conviverem com a comunidade na qual prestam serviço, além de visitarem regularmente as casas de sua clientela. Assim como os agentes comunitários trabalham com territorialização e adscrição de clientela, os pastores entrevistados também são responsáveis pelo acompanhamento de sua população - a rede de fiéis que frequentam a sua igreja. Uma das características importantes desse tipo de trabalho é o vínculo que estabelecem por meio de relações sistemáticas com a população que, por sua vez, propiciam o apoio social, o cuidado em saúde (Valla et al., 2005) e a constituição de redes sociais.

O apoio social pode ser entendido como os diversos recursos emocionais, materiais e de informação que os sujeitos recebem por meio de relações sociais sistemáticas, incluindo desde os relacionamentos mais íntimos com amigos e familiares próximos até relacionamentos de maior densidade social, como os grupos e redes sociais (Lacerda & Valla, 2004). Trata-se de um processo recíproco – isto é, que gera efeitos positivos tanto para quem recebe como para quem oferece o apoio –, o que permite que ambos tenham uma sensação de coerência de vida e maior sentido de controle sobre a mesma, com consequentes benefícios à saúde física e mental (Cassel, 1976; Minkler, 1992; Valla, 1999). Além disso, a teoria do apoio social trabalha com a premissa de que a origem da doença, assim como sua resolução, está diretamente relacionada às emoções, indicando que essa teoria inclui a idéia antiga da totalidade corpo-mente (Lacerda et al., 2006).

Apesar de existirem diversas atividades e práticas de apoio social na nossa sociedade, estudar a questão religiosa como uma forma de apoio social vem sendo enfatizado devido à busca crescente das classes populares nessa direção (Valla, 2001; 2002). A procura pelas religiões populares pode estar sinalizando a constituição e formação de redes de apoio social, como forma de se defenderem de um sistema econômico e político, o chamado capitalismo selvagem, que tende a excluí-los da sociedade mais ampla (Parker, 1996; Valla, 2001).

A importância das redes de apoio social como estratégia da população no enfrentamento dos problemas de saúde-doença e dos impasses do cotidiano vem sendo apontada por diversos autores (Minkler, 1992; Lacerda & Valla, 2004). São redes que muitas vezes se tecem a partir da sociedade civil organizada, e mantém a sua vitalidade em função dos vínculos de solidariedade, de troca e reciprocidade que se estabelecem entre os diversos sujeitos. Tendo em vista que os sujeitos estão expostos a diferentes tipos de situações estressantes e impasses na sua vida diária, a forma como a sua rede social está estruturada vai influenciar diretamente os recursos de apoio social que fluem por meio da rede e os ajudam a lidar com as oportunidades e contingências do sistema social (Pearlin, 1985; Lacerda et al., 2006).

É com isto em mente que passamos adiante a apresentar os resultados empíricos da pesquisa que objetiva analisar o impacto do trabalho realizado tanto por pastores quanto por agentes comunitários de saúde evangélicos junto às classes populares da região da Leopoldina.

O trabalho dos pastores e dos agentes comunitários de saúde
Um dos pastores entrevistados enfatizou a necessidade de sua moradia ser próxima à comunidade de fiéis atendida, pois o pastor que mora no local está atento a tudo que acontece na comunidade, enquanto o que mora fora, quando chega, tudo já aconteceu. Refere também que ao frequentar as casas dos membros da igreja está proporcionando uma assistência direta a estas pessoas.

Com base nas entrevistas realizadas pôde-se constatar também que a proximidade dos pastores com os moradores propicia encontros que, muitas vezes, podem provocar mudanças radicais na vida das pessoas, como o exemplo de jovens que deixam a vida no tráfico e se convertem à igreja.  Essas pessoas recebem diversos tipos de apoio social dos pastores, desde o apoio tangível no sentido de arrumar emprego até o apoio emocional que as ajudam a largar o vício e encontrar um sentido para a própria vida.

Na visão de outro pastor entrevistado, as pessoas procuram pelas igrejas para resolver problemas, principalmente de ordem familiar: conflitos entre casais, pais e filhos, drogadicção e/ou prostituição de membros da família, entre outros. E o pastor prossegue afirmando que as famílias, principalmente as de classes populares, não têm aonde recorrer, pois praticamente não há atendimento psicológico nos serviços públicos de saúde.

O envolvimento dos pastores e agentes comunitários com a população aponta para relações mais humanizadas, em que muitas vezes não é possível curar os problemas de saúde, mas é possível cuidar dos sujeitos necessitados (Vasconcelos, 1998). As visitas realizadas nas casas dos usuários e/ou membros da igreja favorecem um ambiente acolhedor onde formas diferenciadas de cuidado e atenção integral à saúde podem ser percebidas, como demonstram os depoimentos que se seguem feitos por agentes comunitários:

“A gente sabe que o médico não olha para o paciente, só anota, anota, não tem aquela coisa do olhar, de pegar na mão, de ter esse contato mesmo físico e passar essa coisa do emocional, ter um elo mais de amizade, não é ser amigos íntimos, mas que a pessoa possa se sentir segura, tendo um consolo, já que na sua vida cotidiana não tem isso.”

Percebe-se que a demanda social dos sujeitos, muitas vezes, não é por problemas de saúde de ordem física, mas de outras dimensões existenciais ou até mesmo a necessidade de falar e desabafar seus problemas. A escuta e o acolhimento dos sujeitos são fundamentais quando se realizam as visitas domiciliares, como demonstra o depoimento de uma agente de saúde:
“Quando você sai daqui para ir a uma visita você tem que ‘tá’ preparada para ouvir, mais do que falar. (...) Encontramos aquelas pessoas que não estão doentes fisicamente, mas a mente está bem adoecida, encontramos muito aquelas pessoas que precisam só conversar com você, às vezes elas não querem ir ao médico, aliás, às vezes elas até querem ir ao médico, mas para conversar também, você vê que não tem nenhuma causa.”

Essas visitas podem ser entendidas como atos terapêuticos, e a disponibilidade para a escuta permite dar a devida atenção às demandas dos usuários. A atenção despendida sob a forma de cuidado por parte dos agentes comunitários que passam a acompanhar o tratamento dos sujeitos doentes pode auxiliar na recuperação da saúde e no aumento da auto-estima e dignidade pessoal, como demonstra o depoimento de um ACS em relação ao atendimento oferecido:

“Ah, depois que você veio aqui que você falou e tal, eu ‘tô’ indo nas consultas, eu ‘tô’ me tratando”. A pessoa começa a se sentir mais gente, né, que tem alguém que tá preocupado com a saúde dela, porque às vezes na própria casa dela ninguém ‘tá’ preocupado um com outro, às vezes sai e chega outro vai, então têm pessoas que dizem: “Ah, eu ‘tô’ muito feliz, ‘tô’ melhorando, eu não achei que tinha jeito”.

O conhecimento dos problemas que ocorrem no cotidiano pode trazer benefícios na compreensão do processo de saúde-doença, e, portanto, pode ser útil para os profissionais de saúde nas suas práticas diárias. A falta dessa compreensão por parte dos profissionais que atuam distante – tanto no sentido físico como no sentido simbólico – das comunidades pode levar a medicalização desnecessária da vida social. Tomemos como exemplo o aumento da demanda dos postos de saúde devido a surtos de vômito e diarréia nas crianças após uma noite de tiroteio na comunidade, e que, muitas vezes, o médico, vindo de fora, sem saber do ocorrido, diagnostica como “uma virose” e medicaliza (Guimarães et al., 2008).

No que se refere ao processo de saúde-doença-cuidado, a adesão dos ACS às igrejas evangélicas, especialmente as pentecostais e neopentecostais, nos leva a sugerir que eles passam a ter uma determinada compreensão da saúde e do adoecimento, dentro de uma perspectiva em que acreditam que as curas tratam de males que geralmente não são físicos, mas que se localizam na esfera espiritual com repercussões psicossomáticas, em que a resolução não passa por medicamentos (Corten, 1996), mas pela oração e reflexão espiritual. Tal compreensão, por sua vez, vai interferir na busca de cuidados à saúde, ou seja, nos seus itinerários terapêuticos, assim como na integralidade do cuidado das suas práticas (Lacerda et al., 2008).

Os ACS dessas religiões evangélicas distinguem a doença do corpo, ou seja, material, da doença da alma, de natureza espiritual, e o seu olhar nas visitas domiciliares vai estar imbuído dessas representações sobre a saúde e a doença.

“O agente comunitário de saúde evangélico, que acredita em Deus, quando chega na casa de uma pessoa, ele detecta quase todos os tipos de problemas – material, pela experiência que ele já tem como agente de saúde, e espiritual. Ele pode detectar que aquela doença pode ser espiritual também.”

Eles entendem que as doenças no corpo físico também podem ser causadas por problemas de outras ordens: psicológicas ou espirituais; e algumas vezes recorrem a soluções que denominam de “sobrenaturais”, como orações pela cura das pessoas. Essa cura, no seu imaginário, pode representar não só a cura da doença física, mas também a cura da alma, do espírito.

“A pessoa está tão fincada no problema, aí vem uma dor de cabeça, uma dor nos rins, vem um câncer. Mas aquilo tudo é uma doença que ela está absorvendo dos problemas. Desde o momento que você encontre uma solução para liberar esse problema e tenta resolver de uma maneira sobrenatural, que não te atinja, que você não se machuque, é a melhor coisa.”

Por terem essa visão ampliada e integral do ser humano, os ACS evangélicos podem interferir no itinerário terapêutico do usuário, no sentido de que são capazes de perceber quando a doença física está acobertando um problema de outra dimensão existencial. Nesse sentido, a partir do diálogo e de uma conduta individualizada específica a cada encontro, eles, em alguns casos, interferem no processo terapêutico do usuário encorajando-o a refletir acerca de sua doença e a buscar as causas que estão ocasionando os seus problemas de saúde. Isto, em certo sentido, complementa o atendimento médico que é oferecido pelo sistema público de saúde, pois não se restringe à doença física, mas busca uma atenção integral de acordo com as necessidades de cada morador visitado. Constroem, assim, um projeto terapêutico junto com o usuário voltado para atender as demandas de saúde colocadas por sua clientela, e sintonizado com o contexto específico de cada encontro e de cada sujeito (Mattos, 2004).

Alia-se a isto o fato de que, em geral, a visão religiosa – pentecostal e neopentecostal especialmente - insere-se em uma perspectiva otimista da vida, na qual os fiéis são encorajados a ter controle sobre as suas vidas e a buscar a solução dos problemas através do “empoderamento” pessoal, na condição de todos serem filhos de Deus.

Nesse sentido, torna-se relevante trazer o relato de um ACS em relação a uma paciente poliqueixosa, muito dependente desse profissional, dos médicos e dos medicamentos. Conforme este trabalhador foi adquirindo mais intimidade com a moradora, começou a encorajá-la a tentar tirar as doenças da cabeça dizendo: “fala com a doença que você pode ter ela, mas ela não pode te ter, ela não pode te dominar”. A paciente, então, relatou que todos os familiares não ligam mais para ela, dizendo que: “se eu ficar doente, todo mundo vai vir me ver”. O ACS compreendeu qual a estratégia que estava por trás dos problemas de saúde da paciente e tentou contribuir para a reversão da situação da seguinte maneira:

“Mas a senhora tem que pedir a Deus para tirar esse veneno que está afastando sua família de você. Vamos orar pra senhora. E começamos orar ali, eu e ela. Voltei lá no outro dia, oramos, voltei no outro dia, oramos e quando foi na 2ª feira eu falei assim: “E aí D. Teresa, e os filhos?”“ Ah, meu filho teve aqui, me deu até presente”. Eu falei assim: “Oh, benção! Oh Glória! Oh Jesus! Obrigada Senhor! E a dor?”“ Sumiu.” E era tudo espiritual. Então se a gente não tiver uma reflexão de tudo o que acontece ao nosso redor através da palavra de Deus, a gente só se perde.”

A atitude tomada por esse ACS pode ser compreendida na perspectiva da integralidade no sentido de que o profissional teve uma apreensão ampliada das necessidades de saúde da usuária, adequando o que ele podia oferecer no contexto específico da situação em que ambos se encontravam (Mattos, 2004).
Para os ACS entrevistados, uma das formas de se perceber se o problema é espiritual pode estar associada ao excesso de sujeira e desordem presente na casa, que um olhar atento pode ser capaz de registrar:

“Eu chego numa casa, vejo aquela casa toda em miséria, pobreza, sujeira... aquilo ali é espiritual... falta de Jesus.(...) Aí você detecta aquela sujeira...”

            A esse respeito, Monteiro (1985) relaciona a doença espiritual à noção de desordem que se manifesta no corpo físico, mas também no corpo social e espiritual. A associação entre doença e desordem é compreendida pelo fato de que a doença afeta, de um modo geral, o vigor moral, a vontade pessoal e o fluxo da energia cotidiana. De acordo com essa autora, a doença espiritual pode vir a tornar-se doença quando o corpo sofre uma ação prolongada e desordenada das forças sobrenaturais, debilitando as funções vitais (Lacerda et al., 2008).

A participação nos cultos pode ser uma forma de tentar se reorganizar e se reestruturar diante das adversidades, e, desse modo, buscar um cuidado integral para si próprio e para seus entes queridos, pois na igreja se sentem cuidados física e espiritualmente. Assim sendo, é comum os relatos de situações de adoecimento que, durante o seu itinerário terapêutico, procuram a igreja antes do serviço de saúde. Um ACS nos fala de sua filha que tinha tido uma crise convulsiva e refere:

“Ia atrás de um carro para poder levar minha filha para o hospital, mas antes eu passei na igreja. Tinha um irmão orando, eu pedi a ele que orasse pela minha filha naquele momento: “Irmão, por favor, faz uma oração aqui pela minha filha e depois sigo o caminho.”

Essa busca pela igreja, pela oração, antes de um atendimento médico, até mesmo em situações percebidas como sendo de emergência, tem significado dentro de uma lógica própria dessas religiões de que a cura das doenças vem após a oração. No entanto, também pode ser pensada em função dos médicos, e dos serviços de saúde em geral, se voltarem para tratar sintomas específicos, enquanto as instituições religiosas buscam oferecer soluções para as aflições em geral (Fry & Howe, 1975).

Considerações finais
O que se pode inferir é que a convivência contínua com a população cria uma percepção das suas condições de vida, o que por sua vez pode influenciar a produção do cuidado em saúde. Esses pastores e ACS se tornam especialistas no conhecimento do modo de vida, do fazer e do falar dessas populações e passam a conhecer em profundidade seu modo de agir em face da violência e suas formas de solidariedade em face das necessidades dos seus vizinhos.
Os relacionamentos fundamentados a partir dessa convivência possibilitam a criação de vínculos e a constituição de redes de apoio social, com o potencial de diminuir o isolamento social, em um processo ativo de troca e reciprocidade em que todos participam e têm seu papel (Lacerda et al., 2006).

Nesse sentido, conforme discutido por Silva et al. (2004), os agentes comunitários -- e nós acrescentaríamos os pastores entrevistados que convivem com a população -- não seriam apenas elos de ligação entre a comunidade e o sistema de saúde, no sentido de ser um veículo de comunicação, mas sim laços,quando a relação predominante é fundamentada no respeito e no diálogo. Cabe ressaltar que os pastores entrevistados apontam os limites do seu trabalho de atenção e cuidado à saúde em relação ao trabalho realizado pelos profissionais de saúde; entretanto, não podemos afirmar que isto possa ser generalizado a todas as condutas pastorais.

Acrescentaríamos ainda que a direção dada a esses agentes públicos, pelo fato de estarem inseridos em uma denominação religiosa e de acreditarem na proteção e orientação divina, confere-lhes maior autoconfiança na condução de suas ações, sentimento de pertencimento a uma rede social e uma visão ampliada de saúde, que incorpora outras dimensões da existência, complementando, assim, o trabalho exercido pelos profissionais da saúde.

Na reorientação dos cuidados em saúde, vimos constatando que a dimensão das emoções, do afeto e do comprometimento dos profissionais em relação aos problemas dos usuários tem tido mais eficácia do que a dimensão racional e lógica da palavra (Vasconcelos, 2006). Esses pastores, assim como os agentes comunitários religiosos, ao realizarem o seu trabalho de integralidade na atenção e cuidado à saúde dos moradores, não restringem seu olhar aos aspectos físicos da doença, mas redimensiona-a em um novo contexto que compreende a enfermidade como uma provação que coloca ao sujeito a possibilidade da reflexão acerca dos conflitos morais, afetivos e psicológicos (Mariz, 1994), que podem estar na base dos problemas de saúde. Isto confere aos sujeitos maior consciência de si e, portanto, maior autonomia frente ao processo de adoecimento, facilitando um projeto de construção da própria saúde. Esse processo de reequilíbrio da saúde deve ser entendido, de acordo com Luz (1998), como a recuperação de um tempo de vida saudável, de uma vitalidade, que corresponde à recuperação da autonomia e singularidade do paciente face à doença e ao adoecimento. 

Maria Beatriz L.Guimarães, doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ; professora visitante do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (mblguima@hotmail.com)
Victor Vincent Valla, doutor em História pela USP; professor Emérito da Escola Nacional de Saúde Pública/ FIOCRUZ (victorvalla@ensp.fiocruz.br)
Alda Lacerda, pesquisadora e professora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio / FIOCRUZ; doutoranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública /FIOCRUZ; (alda@ensp.fiocruz.br)

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Trata-se da pesquisa “Religiosidade, Sociedade Civil e Saúde: um estudo sobre redes e apoio social no cuidado integral à saúde”, desenvolvida nos anos de 2004 a 2008, no Departamento de Endemias Samuel Pessoa/ ENSP/ FIOCRUZ em parceria com o Laboratório de Pesquisas sobre Práticas de Integralidade em Saúde – LAPPIS, e contou com o financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Pesquisa de natureza qualitativa, com 15 entrevistas abertas, sendo 5 com pastores e 10 com agentes comunitários de saúde.