As religiões de matrizes africanas estão atualmente assim representadas em nosso território brasileiro: Candomblé (varias nações 1), Umbanda, Tambor de Mina, Tambor de caboclo, Xangô, Xambá, Omolocô, Terecô, Batuque, Encataria e Jurema, podendo haver alguma ramificação isolada.
Dentro de nossas religiões acreditamos que o nosso corpo é o nosso templo, portanto ele deve ser preservado. Todo o conceito de criação está baseado nos quatros elementos (água, terra, fogo e ar), sendo que Olodurame (Criador) é único. Dando ao animal humano a razão para tudo coordenar diante dos outros animais criados, portanto temos a grande responsabilidade de manter toda a criação em equilíbrio a partir de nós mesmos. Acreditando que o corpo é a morada dos Orixás, e nós seres humanos criados para administrar os elementos que vão servir para organizar a própria existência, somos totalmente voltados para a magnitude da criação; “a natureza” sendo nosso ponto chave de fé e devoção.
Ficando então corpo-mente-espírito a grande chave para o equilíbrio do ser humano e que quando cada um destes pontos estiver desequilibrado tenhamos que reequilibrá-lo dentro dos nossos espaços sagrados para que o Orixá continue a ser o nosso grande guardião, fortalecendo assim o elo sagrado entre homem e Olodumare.
Falar do sagrado ou do profano nas religiões de matrizes africanas é um tanto quanto desafiador, porque quem trouxe os negros até estas terras usurpou deles todas as formas de crenças, culturas e sentimentos. Tinham que ser batizados no Cristianismo Católico, mas com muita garra e resistência venceram, quando associaram, já na nova terra, todos os seus conceitos de sagrado e fizeram com que seus usurpadores acreditassem que o que era profano para eles fosse na verdade o sagrado (o próprio sincretismo, usado como artimanha para continuarem a cultuar os Orixás), fazendo assim que perpetuassem a sacralidade de sua história. Mesmo sabendo que hoje somos descendentes africanos e de termos nossa própria história, não podemos mais dizer que isto ficou perdido nos navios negreiros, principalmente por ser uma religião oral, temos pesquisadores e escritores 2 idôneos que registraram muito bem a história deste povo diante da adversidade que o afligiu em meados do século XVI.
Estas religiões têm uma outra característica que muito favorece ao acolhimento e a auto-estima que é a forma de ver o ser humano, que faz com que seja diferenciada a sua visão de cura diante do quadro patológico.
Os descendentes de religiões de matrizes africanas cuidam do indivíduo por inteiro, dentro das três formas aqui já relatadas (corpo, mente e espírito). Sendo assim não há discriminação diante da forma que o indivíduo se apresenta quando vai em busca de ajuda. Acolhe e cuida sem discriminar a sua etnia, raça, opção sexual ou mesmo a sua opção social de viver, simplesmente o assiste nas suas necessidades por acreditar que ele é um ser criado e merecedor de toda e qualquer forma de ajuda para se reequilibrar diante de Olodumare. Por tudo isso, a vinda da epidemia para o Brasil nos anos 80 foi associada à libertinagem e às religiões de matriz africana, pois muitos eram negros, homossexuais e de baixa renda. Não podia deixar de dar uma introdução na nossa história, pois somente assim conseguiremos entender os avanços que as tradições de matrizes africanas deram até aqui neste início de século XXI.
Nossos mais velhos dentro da religião muito lutaram para desfazer esta imagem criada a partir da ignorância e desconhecimento de nossas tradições. O Instituto Emílio Ribas, organização que primeiramente atendeu e promoveu o enfrentamento da epidemia, era visitado por estes Sacerdotes e Sacerdotisas para o auxílio aos seus adeptos e muito erroneamente foram achincalhados e desacreditados, mas não deixaram de dar assistência espiritual e também de cidadania diante da resistência dos órgãos públicos de Saúde em querer entender quem queríamos e nos credenciar para podermos dar uma assistência de qualidade para os nossos adeptos dentro das instituições públicas de saúde .
Não posso aqui deixar de dizer que isto é histórico e está registrado no próprio IBGE, que diz que a população negra está a margem da sociedade.
Sem falar nas instituições privadas, em que muitas vezes tinham que pedir intervenção policial e ainda assim não conseguiam pelo próprio racismo institucional.
Nossas tradições têm uma forma hierárquica de ser, damos créditos aos mais velhos primeiramente, e por sermos de raízes matriarcais, as mulheres é que dão o tom das ações, discussões e afirmações diante do sagrado e da comunidade de terreiro. Então fica mais grave ainda quando vivemos em uma sociedade totalmente machista, patriarcal discriminativa e racista.
Isto tudo é o grande segredo do cuidar africano, voltado hoje para nós descendentes, quando no final do século XX continuávamos a estar descredenciados para o auxílio de nossos adeptos, mas já com uma política publica em saúde voltada para a população negra com dados e confirmações de que necessitamos sim destas políticas. Isto em razão do avanço da trajetória da Aids como se verificou, por exemplo, na 13ª Conferência Internacional sobre Aids, em Durban em 2000, na África do Sul, que denunciou ao mundo a mortandade na África. Ou quando da realização do I Fórum em HIV/Aids e DST da América Latina, no Rio de Janeiro, que identificou o aumento dos casos em mulheres.
Assim, surgem várias ações voltadas para a compreensão e o auxílio no controle da epidemia, bem como uma melhor qualidade de vida, em que a Política Nacional de Saúde da População Negra - Uma Questão de Equidade/Subsídios para o Debate reconhece:
“(...) Por intermédio de categorias culturais que permitem outras formas de perceber, expressar, avaliar e tratar doenças, os terapeutas populares, como mães de santo, rezadeiras, raizeiras e parteiras atendem a uma demanda expressiva de doentes que não têm acesso aos serviços públicos de saúde e, para muitos, oferecem a primeira, e talvez, a única terapêutica disponível.”
Nós das tradições de terreiros também começamos a nos istrumentalizar para ajudar no controle das DST/Aids, fazendo capacitações 3 em nossas comunidades. Acreditamos que temos que dar o empoderamento ao nosso próprio povo, para assim acolhermos melhor e com linguagem própria os adeptos dentro desta questão nas nossas casas, pois muitos portadores do HIV/Aids não se sentem fortalecidos em conversar nos seus lares, e chegam em nossos templos totalmente arrasados e sem equilíbrio.
Ainda há profissionais de saúde e gestores que entram em nossos espaços, ainda neste momento, somente para fazer as capacitações sem querer entender realmente quem somos. E também começamos a circular nos espaços diretamente ligados às DST/Aids, bem como nas secretarias de saúde, nos três poderes públicos. Assim, mostramos que estamos organizados e queremos um melhor cuidado para o nosso povo, que pela própria história tem sempre que reafirmar a sua resistência diante do descaso social em que vive.
Estamos já, nós comunidades de terreiros, dentro do Plano Estadual de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo 2008/2011, como promotores de saúde, dentro do objetivo 18 do Eixo VI: “Desenvolvimento de serviços e ações de saúde para segmentos da população mais vulneráveis aos riscos de doenças ou com necessidades específica”.
Hoje temos uma nova construção de linguagem para as capacitações e oficinas, pois acreditamos que temos que dar educação continuada para o nosso povo, mas já com efetividade de linguagem profissional e estrutural. Quando os profissionais de saúde e gestores agora adentram em nossos espaços para aprender sobre a nossa cultura e religiosidade 4, para melhor acolhimento dentro dos órgãos públicos de saúde, fazem um grande avanço para a humanização do SUS.
Fico aqui tranquila para dizer que a maneira de cuidar da comunidade de terreiro pode intervir diretamente na forma de fazer políticas públicas de saúde e de cidadania, ficando assim evidente o quanto auxiliamos, nós de religiões de matrizes africanas, para a diminuição da epidemia dentro e fora da nossa cultura e religiosidade. Pois mantemos a prevenção e a educação juntas em todas as instâncias aqui apresentadas. E reafirmo o paralelo traçado pelo Diretor Executivo da Rede de Religiões Afrobrasileira e Saúde no I Seminário Nacional de Diversidade de Sujeito e Igualdade de Direitos no SUS 5.
“O acolhimento e o toque no corpo (Política Nacional de Humanização), o respeito aos idosos e ao saber dos mais velhos (Política Nac. Saúde do Idoso), celebração da vida e do nascimento (Política Nacional de Humanização do Parto e do Nascimento), respeito às orientações sexuais (Programa Brasil sem Homofobia), equilíbrio psicossocial (Política Nacional de Saúde Mental), uso de folhas e ervas (Política Nac. de Práticas Integrativas e Complementares) e a inclusão de todas e todos (SUS)”.
Onde e porque esta Resistência Cultural e Religiosa não consegue avançar diante da Epidemia
Diante do quadro apresentado anteriormente, digo que a maior trava e obstáculo para que alcancemos uma melhor qualidade de vida, quanto a sermos cidadãs e cidadãos brasileiros de religiosidades afrodescendentes que possam acrescentar para a diminuição e o combate a epidemia da Aids no Brasil, é a discriminação, a intolerância religiosa e o racismo sendo ele institucional ou não.
Se nos apropriarmos do imaginário histórico popular para exemplificarmos este quadro acima citado, teremos a escancarada afirmação que para avançarmos nesta questão teremos que resistir muito mais ainda, pois pode interferir diretamente na saúde e nos direitos do ser humano.
Não somos de religião demoníaca porque não o conhecemos. Não somos libertinos porque a partir de ser gerado e ter nascido, ensinamos o quanto o corpo é sagrado e o quanto terá que ser preservado, pois temos vários ritos que pedem a abstinência tanto sexual quanto social e alimentar, para que possa estar apto a estar com o sagrado (seu Orixá). Então sexo para nós tem uma conotação diferente da forma cristã de procriação, é totalmente prazeroso e fomentador de energia.
Não fomos feitos somente para dar prazer, ou sermos diminuídos dentro do conceito histórico imaginativo a ideias associadas à inferioridade inata dos negros 6.
Estamos respaldados dentro da própria Constituição Federal do Brasil, tanto no SUS, no social, quanto religiosamente falando e sempre nos são negados estes direitos, sendo cumprido somente quando fazemos valer nossos direitos diante do disparate escancarado do descaso.
E o mais grave ainda é que por tudo isto, muitos de nossos adeptos não conseguem ultrapassar a linha tênue e fraca da invisibilidade, ficando assim atrás do espelho e negando quem realmente são. Acabam morrendo à míngua com a doença manifestada, e quando diagnosticada em óbito, Caem nas estatísticas como um número apenas, dentro do gráfico epidemiológico do HIV/Aids dos que não tiveram acesso ao tratamento.
Acredito sim que avançamos, mesmo a passos lentos, pois estou aqui mostrando a vocês leitores um pouco de nossa cultura e religiosidade. Fiquem em paz e que os Orixás possam abençoá-los tanto quanto nos abençoa, pois somos todos feitos por um só Criador.
Asé, asé, asé (força, força, força)
Iyalorixá Cristina Martins d’Osun, teóloga, sacerdotisa do Ilê Asé Iyalode Oyo (Casa da Força da Mãe do Poder do Reino de Oyo), secretária Geral do GVTR – Grupo de Valorização do Trabalho em Rede e Coord. da Rede Nacional de Religiões Afro Brasileira e Saúde - Núcleo São Paulo Capital.
Nação: local de origem na África: Ketu, Efon, Jeje, Angola, Ijexá.
Pierre Fatumbi Verger, Roger Bastide, Nina Rodrigues, Ruth Landes, Juana Elben dos Santos, José Marmo da Silva, Reginaldo Prandi, José Beniste.
A participação ativa das Comunidades de Terreiro no processo de construção e implementação das políticas públicas de saúde na mesa de negociação: Conselho Municipal de Saúde em 2004/2005, XII Conferência Nacional de Saúde, Seminário Nacional de Saúde da População Negra; Pólo de Educação Permanente da SES - SP.
Projeto Xirê – Prevenção de Aids na Roda dos Orixás – Parceria PM de DST/Aids – S M S de São Paulo, SOS Saúde Mental Ecologia e Cultura, GVTR/Grupo de Valorização do Trabalho em Rede – 05/06-2008.
Fonte: Identificação e Abordagem do Racismo Institucional – Articulação para o Combate ao Racismo Institucional.