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RELIGIÃO E SAÚDE
Ano 4 - Nº 16
Junho 2009
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Viu e teve compaixão
Por: Cláudio Celso Monteiro Jr

Aos longos destes quase 30 anos a pandemia de HIV/Aids vem determinando a reorientação de saberes na busca de estratégias de enfrentamento aos mais diversos aspectos referentes ao HIV: da Virologia Molecular à Política Internacional; da Farmacotécnica à Teologia Moral. O impacto provocado pela epidemia no espaço de poucos anos (no Estado de São Paulo, de um caso em 1981 para 137.183 casos em 2007, segundo o Programa Estadual de DST/ Aids), associado às circunstâncias interpessoais nas quais a transmissão ocorre, faz com que, cotidianamente, diversas áreas de produção de conhecimento e os responsáveis – destacando-se a co-responsabilidade social - pela execução de ações de enfrentamento à epidemia se vejam premidos a procurar soluções exeq uíveis, muitas vezes em curto prazo, às mais inusitadas situações provocadas pelo HIV. Como garantir que todas as vítimas de abuso ou violência sexual tenham acesso a quimioprofilaxia, quando segundo estimativas dos órgãos de segurança, apenas 10 % dos casos são denunciados? Como desenvolver ações de prevenção secundária que promovam a qualidade de vida dos portadores de HIV? Como prevenir a infecção em situações de extrema vulnerabilidade, como entre pessoas em situação de rua, numa cidade como São Paulo, onde esta população ultrapassa o número de 15.000 pessoas? Como intervir na Cracolândia (em que pese o fato deste bairro de São Paulo oficialmente não existir) onde crianças de ambos os sexos oferecem seus serviços sexuais? Como promover o debate sobre prevenção e acolhimento em espaços religiosos, sem ferir os mais diversos posicionamentos dogmáticos? Como garantir que a atual política de financiamento das ações em HIV/ Aids seja de fato exercida? E, principalmente nos dias de hoje, como trabalhar o enfrentamento da epidemia em seu âmago atual, qual seja, a necessidade de ações de prevenção intraconjugais, em situações supostamente estáveis?

O dinamismo da configuração processual apresentada pela epidemia de HIV, tanto a nível pandêmico, quanto a nível epidêmico nacional levou e leva, incessantemente, a uma revisão de valores frente aos mais diferentes aspectos da doença, uma vez que neste curto espaço de tempo, observamos o advento e desenvolvimento de três ondas epidêmicas predominantes e muito precisas: do início dos anos 80 a meados dos anos 90, a onda entre os Homens que Fazem Sexo com Homens; de meados dos anos 90 ao início deste século, a onda entre os Usuários de Drogas Injetáveis; e a partir dos anos 90, em constante e discreta ascensão até o presente, a transmissão originada em relações heterossexuais. Soma-se a isso, o processo de interiorização (dados do Programa Nacional de DST/ Aids apontam que 81% dos municípios brasileiros já haviam notificado pelo menos um caso autóctone de Aids, até 2006) e de pauperização.

Ou seja: estamos falando de uma doença incurável – ainda que tratável, em que pesem as crescentes sub epidemias relacionadas aos efeitos adversos da terapia antirretro viral - cuja incidência cresce vertiginosamente entre mulheres pobres de cidades pequenas do Brasil. E estamos falando de uma doença de transmissão sexual, transmissão dada pela multiplicidade de parceiro. E isto numa sociedade que, em tese, tem seu principal pilar moral configurado pela família monogâmica, sendo tal valor continuamente apresentado, ou imposto, como sendo o único meio legítimo e sacralizado do exercício da sexualidade, pelas religiões de matriz cristã.

Num primeiro momento, a circunscrição da incidência do HIV em determinados grupos sociais tradicionalmente marginalizados (homossexuais, usuários de drogas injetáveis, profissionais sexuais de ambos os sexos), grupos estes com pouca ou nenhuma visibilidade nas Igrejas Cristãs, propiciou uma leitura escatológica da epidemia, que associavam o advento da patologia ao castigo dos ímpios, sendo este um sinal dos tempos. Data desta época a antológica declaração do então Arcebispo do Rio de Janeiro, D. Eugenio Salles, de que a Aids seria um castigo divino, o que provocou reações imediatas de outras lideranças da Igreja Católica Romana que, com muita propriedade, argumentaram que, neste caso, as eleitas do Senhor seriam as lésbicas, já que as relações sexuais entre mulheres consistem nas de menores riscos de transmissão. Tal circunscrição colocou as Igrejas Cristãs na confortável posição de “este não ser um problema nosso”, ou no máximo, a um certo conclamar a caridade para como nossos “irmãos aidéticos”.

As alterações no perfil sócio-epidemiológico do HIV, associadas a sua rápida disseminação fez com que a Aids arrombasse as portas e sentasse nos bancos das Igrejas. No caso da Igreja Católica Romana, na qual a castidade é um valor em si, com o desconforto a mais, dado pelo fato de sacerdotes e religiosos virem a adquirir o vírus.

Neste sentido, a Aids explicitou o abismo existente entre a moral sexual cristã apresentada como virtuosa pelas Igrejas e a sexualidade vivida e vivenciada pelos membros destas (e não faremos distinção entre clérigos e leigos), o que equivale a dizer que nem sempre os fiéis seguem o que os dirigentes pregam. Ou seja: desta forma é explicitada a fragilidade de nossas Igrejas.

Para a Igreja Católica Romana, mais uma vez, um embaraço adicional: o que a ciência tem a oferecer como o único método de proteção seguro – o preservativo – é também um método contraceptivo não natural. Apela-se então para a transformação de valores morais (como a castidade e a fidelidade conjugal) em estratégias de prevenção. Castidade, fidelidade, abstinência são valores morais, cuja adesão – ou não – depende fundamentalmente do arbítrio individual. Ora, valores morais não podem ser transformados em políticas sociais. Verdades individuais não podem ser ampliadas em verdades coletivas, sob pena de enveredarmos no mais profundo obscurantismo.

As declarações do atual pontífice sobre a pandemia de HIV/ Aids – e consequentemente sobre o preservativo - já fazem parte do anedotário político internacional. Logo após as recentes declarações de Bento XVI na África (continente que concentra cerca de 65 % dos casos estimados de pessoas vivendo com HIV/Aids no mundo), uma marca de preservativos na Europa lançou no mercado camisinhas em cujo invólucro estava estampada a efígie do Papa, sob a frase “I Said No!” (Eu Disse Não!).

Se as declarações de Bento XVI alcançam a esperada visibilidade midiática e desencadeiam ordinariamente reações violentas vindas de setores laicos ou não católicos, tais declarações – e isto não é veiculado pela mídia – tem também desencadeado reações internas à própria Igreja Católica, vindas de determinados setores, principalmente vinculados à Teologia da Prevenção, que se apressam incondicionalmente a declarar que “não é bem assim”. Temos assim uma nova explicitação de conflito: o pensamento do pontífice não é hegemônico e encontra opositores no âmago da própria Igreja Católica.

Naturalmente, as declarações de Bento XVI sobre sexualidade/ Aids/preservativo, não chegam – como pretendem alguns críticos – a atrapalhar o enfrentamento à epidemia.  Afinal, as pessoas terão vida sexual ativa – ou não – serão fi éis – ou não – usarão preservativos – ou não -  de acordo com seus modos de vida e com os diferentes contextos de vulnerabilidade, e não pelo fato do papa ter dito isto ou aquilo. Mas, por outro lado, tais declarações dificultam, e muito, o estabelecimento do diálogo interno à Igreja Católica sobre este enfrentamento, uma vez que setores reacionários nelas se pautam para recrudescerem suas posições.  E estamos falando de uma patologia que atualmente atinge cerca de 40 milhões de pessoas no mundo, muito dos quais, católicos romanos, como é de se supor.

Paradoxalmente, este processo traz consigo também consequ ências sociais bastante positivas, como o que poderíamos chamar de “focos epidêmicos de solidariedade”. E a extensa capilaridade e penetrabilidade da Igreja Católica Romana em todo planeta, pode ( e deve) vir a ser utilizada ( como já está sendo, se bem que numa escala aquém do desejável) para disseminação destes focos de solidariedade. Inúmeras instituições católicas vêm, desde o advento da pandemia e em diversos países, desenvolvendo não só atividades de assistência aos portadores de HI/ Aids, mas também atividades de prevenção, mantendo inclusive, pontos estratégicos de fornecimento de preservativos.

O valor moral máximo que embasa a ação dos membros da Igreja Católica Romana no enfrentamento à epidemia de HIV/ Aids nos parecer ser a compaixão. E neste sentido podemos conceituar compaixão como a incapacidade (individual ou coletiva) de manter-se indiferente diante do sofrimento do semelhante. A compaixão e a solidariedade traduzem-se, principalmente, no acolhimento, no não julgamento e na promoção da qualidade de vida dos portadores de HIV/ Aids presentes em incontáveis obras mantidas pela Igreja Católica Romana.

Há muito, entretanto, faz-se necessário o desenvolvimento de um amplo debate, e mais ainda, de ações concretas sobre o que poderemos chamar a “compaixão preventiva”, ou seja, não se manter alheio frente ao sofrimento daqueles que, independentemente de seu estado sorológico, encontram-se em diferentes contextos de vulnerabilidade, e incapacitados de refletirem sobre tais contextos, vindo, portanto, a se constituírem em alvos preferenciais do vírus. E é ao lado destes sofredores que a Igreja Católica Romana – valendo-se de sua capilaridade - deve posicionar-se, protegendo e promovendo a integralidade de sua saúde, e utilizando para tanto de todos os métodos de proteção disponíveis.

Afinal, Ele veio para que todos tenham vida, e vida em abundância.

Cláudio Celso Monteiro Jr, sociólogo, especializado em Saúde Coletiva, mestre em Infectologia em Saúde Pública. Atua na área de DST/HIV/Aids desde 1985, em Organizações Governamentais e Não Governamentais. Atualmente integra o Núcleo de Atenção Básica da Gerência de Prevenção do Programa Estadual de DST/ Aids de São Paulo. É membro da Pastoral da Aids – CNBB Sul 1.