Espontaneamente cada um de nós sabe o que é ser tolerante ou intolerante. Usamos esta palavra quer como verbo, substantivo ou adjetivo em diferentes situações de nosso dia a dia. Porém, poucas vezes paramos para refletir sobre ela e, sobretudo refletir sobre nossa capacidade pessoal de produzirmos comportamentos intolerantes. As palavras são expressões de nossa própria realidade humana, de suas contradições e de sua beleza.
A origem da palavra tolerância vem do latim - tolerare – que significa acolher alguém, ser suporte, ser indulgente para com os outros. Mas, este significado aparentemente positivo não se manteve tal e qual. Percorreu uma longa história marcada por diferentes situações históricas e culturais que foram introduzindo nuances e conteúdos diferentes ao conteúdo inicial. Por exemplo, no século XIII, Tomás de Aquino identificou a palavra tolerância com a virtude da paciência, visto que, dada a nossa imperfeição comum, temos que nos esforçar em ser tolerantes ou pacientes uns com os outros. Nos séculos XVI e XVII, com a Reforma Protestante começou-se a falar de tolerância religiosa como atitude necessária para a convivência entre católicos e protestantes. No século XIX, na França e depois em outros países do mundo, se falava das “casas de tolerância”, que eram casas de prostituição em que comportamentos sexuais que fugiam aos comportamentos admitidos pela sociedade eram tolerados.
As palavras tolerância e intolerância são igualmente usadas na medicina para indicar a aptidão que um organismo tem para tolerar ou não um medicamento ou um alimento. A química pode ser tolerável ou intolerável podendo levar o paciente a morte ou a cura de seus males.
Poderíamos continuar buscando os diferentes significados, usos e costumes em torno das palavras tolerância e intolerância. Entretanto, depois desta breve introdução mostrando a multiplicidade de seus significados, julgo importante tentar trazê-las para nossa vida pessoal para entender alguns dos mecanismos que nós mesmos criamos em relação às outras pessoas ou a certas situações. Tolerantes e intolerantes não são apenas os outros que julgamos assim, mas somos nós mesmos. A tolerância e a intolerância são relações que se estabelecem entre pessoas na linha de uma reciprocidade negativa. E não são apenas frutos do momento, mas são construídas ao largo de nossa história cultural. Por isso se pode fazer a história da intolerância religiosa ou a história da intolerância étnica e assim por diante.
Sabemos bem que no cotidiano de nossa vida a palavra tolerância e sua contrária, a intolerância, são palavras acompanhadas de uma carga emocional muitas vezes negativa. É como se ao afirmarmos a palavra tolerância já sentíssemos uma emoção negativa invadindo nosso próprio corpo. É como se um peso ou uma carga se impusesse a nós e modificasse até o nosso equilíbrio psíquico e o nosso humor. E, nessa dinâmica, pode ocorrer que busquemos aliados às nossas emoções e que passemos a ter emoções coletivas em relação a este ou aquele grupo de pessoas. Somos capazes de abandonar qualquer reflexão ou qualquer racionalidade e cometer crimes de intolerância. Tudo se passa como se a irritação provocada pelo outro ou pelos outros fosse capaz de excitar em nós zonas de violência de certa forma desconhecidas, a ponto de fugirmos ao controle do bom senso e ao respeito devido a uma vida em sociedade. Já não é mais a humanidade solidária que vive em nós, mas a violência irracional capaz de tirar a vida daqueles que se tornaram de certa forma objetos de nossa intolerância. Já não reconhecemos o próximo como nosso semelhante e passamos a odiá-lo a partir das diferenças que apontamos nele. Os jornais e os noticiários abundam em fatos ou em delitos de intolerância dos mais diferentes tipos.
Para tentar apaziguar a irrupção das diversas formas de violência em nós tentamos falar da necessidade da tolerância. A partir dessa situação seu sentido toma uma forma particular em nós. Assim, tolerar alguém ou um grupo requer um esforço emocional para além do habitual. Tolerar significa aqui ter que agüentar o outro diferente, o outro com suas crenças, sua linguagem, seus costumes, seu tom de voz, sua sexualidade, suas exigências que no fundo me ameaçam ou agridem. Tolero para não eliminar o outro, para não riscá-lo de minha existência. Tolero porque acredito que é necessária certa civilidade para a convivência humana e porque nossa fragilidade e limitação comum assim o exigem. Mas, espontaneamente o que vem à tona é a vontade de eliminar o outro ou ao menos de calar-lhe a voz ou submetê-lo à minha vontade ou ameaçá-lo com uma punição que julgo merecida ou simplesmente busco sair do círculo da convivência comum. Não tenho nenhuma atitude positiva em relação a ele. Não quero conhecê-lo, nem saber de sua história, nem de seus sofrimentos e nem de seus sonhos e buscas.
Tolero para não eliminar os outros ou o outro que me molesta por sua maneira de existir ou simplesmente por sua existência em minha circunstância. Tolero porque o outro se apresenta talvez como aquele que eu não gostaria que estivesse em minha história e tenho que conviver com ele apesar dos pesares. Tolero porque intuo às vezes que o outro do qual me afasto é em parte minha sombra, meu rosto oculto, a expressão negada de meu próprio eu. A tolerância nesse sentido já nutre as raízes da intolerância.
No processo de intolerância/tolerância o centro é sempre o eu individual e coletivo ou aquilo que julgamos talvez impropriamente como sendo o nosso eu. É o eu que tolera um outro eu ou o eu que é intolerante com outro eu e com tudo o que ele significa. Há uma relação íntima entre pessoas que se toleram e pessoas que são toleradas. No fundo um é o outro. Desta forma, a intolerância não é apenas um processo que se passa no interior da subjetividade humana, mas se manifesta em comportamentos públicos pessoais e grupais de uns para com os outros. Há uma irracionalidade, uma razão sem razão em todos os processos de tolerância e intolerância.
Uma frase do Evangelho de Jesus me vem à memória: “Por que vês a palha no olho de teu irmão e não vês a trave em teu próprio olho?” (Mateus 7,3) Ou, em outros termos, por que somos capazes de apontar o limite do outro e de certa forma desculpar-nos de nosso próprio limite? Por que mantemos hierarquias de diferentes tipos entre nós e os outros?
Criamos um mar de discórdias entre nós e pouco a pouco vamos desacreditando de nossas possibilidades de respeito e solidariedade. Instauramos o inferno das guerras étnicas, das guerras entre os sexos, das guerras religiosas!
Para muitos de nós a descrença na capacidade humana de desenvolver relações de justiça e igualdade está se tornando moeda corrente. “O homem lobo para o homem” tem se tornado uma conduta comum de vida. Fechamo-nos, defendemo-nos e nos atacamos mutuamente num acirramento de identidades étnicas, sexuais, religiosas cada uma tentando afirmar algo de nós, mas nenhuma suficiente para dar razão à nossa desumanidade.
A tolerância e a intolerância são na realidade duas faces da mesma moeda. Mas, qual é a moeda? É a moeda da mentira, a moeda falsa, enferrujada por dentro e pintada de ouro por fora. É a moeda enganosa que cria ilusões sobre o poder humano e sua capacidade de dominar a terra e seus habitantes. É a moeda que se tornou mediação das relações humanas cada vez mais sem alma, isto é, sem a honestidade da verdade da interdependência que nos permite existir. Moeda que nada mais é do que uma ilusão passageira, ilusão altamente destrutiva de todas as vidas.
A partir de nossos sonhos queremos restaurar a moeda das trocas diretas, a moeda capaz de ser farinha e pão, água e vinho, cuidado com a terra e todos os seus habitantes. A moeda da ecologia da terra e da ecologia humana capaz de apostar na força de nossa diversidade e no respeito a ela como único caminho para manter a vida viva.
As palavras tolerância e intolerância poderiam ter assim gradativamente seu significado original restaurado. Poderiam ser convite cotidiano para que sejamos apoio para os outros, paciência e perdão. E quando o vírus da intolerância se manifestar de novo, sermos capazes de lembrar que palhas e traves existem em todos os olhos, mas que além delas existe a beleza do olhar ou existe simplesmente a misteriosa e frágil chama da vida em cada um de nós.
Ivone Gebara
Para Tempo e Presença – Outubro de 2008.