KOINONIA criou o Programa Egbé Territórios Negros em 1994 como resposta às desigualdades que atingem a população negra brasileira. Egbé vem do Iorubá: sociedade e o lugar onde ela se reproduz. Nesse sentido, o programa trabalha com as comunidades negras tradicionalmente estabelecidas no que se convencionou chamar de Territórios Negros.
Num primeiro momento, o foco do programa voltava-se exclusivamente para os terreiros de candomblé de Salvador (BA), com os objetivos de assistir e assessorar essas comunidades nas ações de regularização fundiária, recuperação etnobotânica e diálogo inter-religioso.
Em 1999, com o crescimento da temática quilombola e a reflexão institucional sobre as semelhanças que poderiam ligar a experiência territorial desses dois tipos de comunidades, a equipe de KOINONIA ampliou o escopo do programa original.
Percebeu-se a garantia da propriedade da terra como fator fundamental para a sobrevivência, reprodução e para a melhoria da qualidade de vida tanto das comunidades remanescentes de quilombos quanto dos terreiros de candomblé.
Terreiros de candomblé e quilombos – situações diferenciadas
Os terreiros de candomblé são sociedades organizadas e, em torno de cada um deles, há uma rede de solidariedade, mais ou menos extensa, e mais ou menos formalizada, dependendo do terreiro, segundo o número de participantes e a antigüidade. Com caráter simbólico de valorização da religião de origem africana, os terreiros de candomblé são centros de organização e de educação popular. Enfrentaram séculos de repressão, mas conseguiram sobreviver.
Calculamos por nossa experiência histórica e pela densidade populacional que cerca de 3.000 terreiros funcionem em Salvador e seus arredores. Eles representam uma forma específica de ocupação do solo urbano, com sua organização, ajuda mútua entre seus membros, a preservação do meio ambiente (a relação com a terra, com as árvores e plantas, com as águas, rios e lagoas é decisiva para o pensamento religioso do candomblé e para seus ritos).
Os terreiros enfrentam hoje o ataque da especulação imobiliária que ameaça seus territórios, e o acirramento do preconceito religioso, açulado em especial pelas novas igrejas evangélicas.
As comunidades de quilombos também enfrentam tremendas dificuldades: para manter a terra onde vivem e trabalham em extrema pobreza; para produzir e comercializar seus poucos produtos; deficiências enormes na educação; na saúde; na habitação e no saneamento. Em algumas delas a luta pela terra já vem de décadas, mas na maioria dos quilombos há pouca organização interna para buscar, sem ajuda externa, a concretização do novo direito constitucional em seu favor e para trabalhar pela melhoria de sua qualidade de vida.
As atividades do Programa em Salvador (BA)
Em Salvador as atividades do Programa Egbé Territórios Negros foram iniciadas em 1994 com os primeiros contatos com os terreiros. De lá para cá, foram elaborados laudos antropológicos e laudos etnoecológicos que documentam a localização, a delimitação do território, a história, a botânica e os fármacos de cada terreiro. Esses laudos são bem consistentes, produzindo um conhecimento novo essencial para a luta dos terreiros pelo direito aos territórios que ocupam e contribuem para que a sociedade conheça melhor esta realidade.
É com base nos laudos que o programa, junto com os terreiros, realiza gestões junto a órgãos públicos para que os territórios sejam “tombados” pelo poder público, ou considerados “áreas de proteção ambiental”, dois instrumentos que garantem a posse da terra pelos atuais ocupantes. O Programa oferece também o serviço de assessoria jurídica para conduzir ações de usucapião, outro instrumento que garante a posse da terra após certo número de anos de ocupação comprovada. A assessoria jurídica dedica-se a legalizar sociedades civis que passem a representar os terreiros em todas as questões com a sociedade, uma vez que os terreiros, embora possuam uma organização de caráter religioso, em sua maioria não contam com sociedades civis que possam representá-los em suas demandas junto aos poderes públicos e junto a outras instituições formais.
A assessoria jurídica também tem entrado com ações que visam dispensar os terreiros do pagamento do imposto territorial, imunidade fiscal que é facultada a outros templos religiosos, mas que não vinha beneficiando os terreiros.
Cabe destacar outra luta do programa: a mobilização para reagir a um jornal da Igreja Universal do Reino de Deus que publicou, sem autorização, a fotografia de uma Mãe de Santo, Mãe Gilda, ilustrando uma matéria ofensiva às religiões de origem africana. Por tal agressão a Mãe de Santo veio a falecer. Entre outras iniciativas, o Programa apoiou uma passeata e ações de protesto realizadas pelos terreiros em 2000, além de prestar assessoria jurídica para ação judicial, finalmente julgada em setembro de 2008 (para conhecer detalhes sobre o caso leia o artigo de Jussara Rêgo nesta edição) . O processo já obteve ganhos em primeira, segunda e terceira instâncias, e agora passa por um período de recursos em ainda terceira instância. Note-se que, esta dinâmica iniciada por este processo desde 2000, construiu uma ponte significativa entre os Terreiros e os Movimentos Negros sob o tema da Intolerância Religiosa. É com esse tema e com esse caso que se pode chegar ao reconhecimento formal do Dia Nacional Contra a Intolerância Religiosa pela Presidência da República, dia 21 de janeiro – mesmo dia na morte da Mãe Gilda, vítima no caso. Por causa desse processo e da aliança entre os Terreiros e os Movimentos Negros contra o racismo, hoje o conceito Intolerância Religiosa tem um conteúdo político e definição de amplo conhecimento tanto para o Estado como para os atores da sociedade civil.
Para informar sobre suas atividades e estimular redes de solidariedade relacionadas aos direitos das comunidades de terreiros de candomblé, o Programa criou em 2003 o informativo Fala Egbé. A publicação já está na 16ª edição 1
O Programa Egbé Territórios Negros também promove ações relacionadas à saúde reprodutiva, ao direito a saúde e prevenção ao HIV/Aids 2. A partir de 2006 passara a ser realizadas Feiras de Saúde em vários terreiros, em parceria com órgãos governamentais municipais, . As comunidades de terreiros de candomblé atendidas pelo Programa Egbé também participam de Cursos de Capacitação de Multiplicadores em Saúde, que formam agentes multiplicadores que desenvolvem nas comunidades ações educativas e de sensibilização em relação aos temas ligados aos direitos reprodutivos e sexuais.
O Programa Egbé atende hoje mais de 150 terreiros de candomblé. Além disso, vem promovendo encontros que reúnem representantes de cerca de 80 terreiros quadrimestralmente, e tem disponibilizado no site pequenos spots sobre o trabalho de KOINONIA com terreiros agrupados sob a marca “Candomblé e Direitos”.
Atividades do Programa no Rio de Janeiro
No ano de 1999 demos início às atividades de pesquisa e visita às comunidades negras rurais quilombolas do estado. Num primeiro momento, o programa dedicou-se à identificação das comunidades, ao contato inicial visando estabelecer relações com seus líderes, e ao levantamento do conhecimento existente sobre a questão das comunidades remanescentes dos quilombos.
O programa também se dedicou a fomentar uma rede regional para esclarecimentos e apoio a essas comunidades, tendo em vista as possibilidades de regularização fundiária e os direitos culturais abertos com a constituição de 1988 (além do artigo 68 das ADCT, os artigos 215 e 216 sobre direitos culturais), por meio da troca de informações, experiências e da realização de eventos científicos e culturais. Além disso, concentrou esforços na promoção de iniciativas que permitissem a efetiva manutenção desses territórios, nos seus aspectos econômicos, sociais, culturais e ambientais, sempre de uma forma que respeite as concepções e prioridades de suas populações.
O site Observatório Quilombola (www.koinonia.org.br/oq) surgiu com o objetivo de disseminar e monitorar informações acerca da temática quilombola, buscando organizar, qualificar e subsidiar a ação dos diversos atores envolvidos. O programa conta também com o informativo Territórios Negros 3, distribuído gratuitamente às comunidades, entidades e indivíduos de todo o país interessados no tema.
Dentro da atuação do programa, destacamos ainda a Campanha Marambaia Livre! Criada em 2006, reúne hoje 18 entidades de todo o País engajadas na luta pela regularização fundiária da comunidade quilombola da Ilha da Marambaia, localizada em Mangaratiba, estado do Rio de Janeiro, que vive sob opressão da Marinha e tem se deparado com a omissão do governo federal 4.
Projetos pontuais junto às comunidades da Ilha da Marambaia (Mangaratiba), Preto Forro (cabo Frio) e Alto da Serra (Rio Claro): Balcão de direitos, realizado em 2005, por meio de convênio entre o programa e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh). O projeto Etnodesenvolvimento Quilombola, finalizado em 2006, fruto do convênio entre o programa e o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), procurou consolidar e fortalecer as comunidades quilombolas envolvidas, oferecendo capacitação para a auto-gestão e para o desenvolvimento social, ambiental e culturalmente sustentável. 5
Recentemente o Programa produziu uma série de vídeos sobre as Comunidades remanescentes de Quilombos, disponíveispara transferênciano site, registram as opiniões das Comunidades sobre diferentes temas, agrupados sob a marca Visões Quilombolas 6.
Perspectivas atuais e futuras do Programa Egbé
Este Programa de KOINONIA mantém sua expectativa de apoio e fortalecimento das Comunidades Negras Tradicionais no Brasil. Mais especificamente, no que se refere à promoção e discussão do Desenvolvimento desejado pelas Comunidades, que hoje faz parte de todas as agendas de debate. Nesse sentido, esperamos criar condições de maior influência na elaboração das políticas públicas pertinentes, assim como na discussão sobre “Desenvolvimento”, buscando afirmar que tal conceito é inseparável e deve respeitar os Direitos Humanos - Civis, Políticos, Econômicos, Sociais e Ambientais. Nessa perspectiva, os protagonistas, em nosso entender, devem ser os próprios representantes das Comunidades Negras Tradicionais. Assim, nosso papel tem sido o de ampliar a capacitação e o reforço das práticas histórico-culturais de reprodução dessas comunidades – promovendo em conjunto com elas oficinas de artes e ofícios a partir de seus saberes tradicionais e diálogos de formação sobre sua própria auto-identificação –, de modo que corroborem com uma boa interpretação do papel daquelas Comunidades num projeto de "Desenvolvimento" democrático, sustentável e com a consolidação dos Direitos Humanos.
Promoção da fraternidade e superação da intolerância religiosa
Fazemos um destaque do posicionamento continuado de KOINONIA, especialmente nesse Programa, quanto à promoção da fraternidade e da liberdade religiosa para superar toda forma de intolerância. Contribuímos com diálogos fraternos com cristãos de diferentes denominações e entre estes e representantes de candomblé em nível sul-americano, em Jornadas Ecumênicas 7 e em outros fóruns internacionais, como nos Fóruns Sociais Mundiais desde o Fórum de 2003, quando pudemos denunciar e apoiar reflexões sobre a superação das intolerâncias incluindo o caso brasileiro. Até hoje foram dadas oportunidades de diálogos sobre regiões da Índia, sobre a Palestina e Israel, sobre movimentos na Europa, e aqui no Continente, com indígenas da Bolívia, Peru e México. Futuramente esperamos propiciar diálogos novamente nessas esferas internacionais e ampliar o impacto dos diálogos fraternos em nível nacional.
Rafael Soares de Oliveira, secretário executivo de KOINONIA, coordenador do programa Egbé Territórios Negros.
No site de KOINONIA – www.koinonia.org.br – estão disponíveis as versões digitais do Informativo Fala Egbé.
No site de KOINONIA – www.koinonia.org.br – há mais informações sobre as ações relacionadas à saúde reprodutiva, direito a saúde e prevenção ao HIV/Aids do Programa Egbé Territórios Negros.
No site de KOINONIA – www.koinonia.org.br – estão disponíveis as versões digitais do informativo Territórios Negros.
Mais informações sobre a Campanha no site de KOINONIA – www.koinonia.org.br.
Mais informações sobre esses projetos são encontradas na seção de notícias do site de KOINONIA – www.koinonia.org.br.
Território, Juventude e religião entre outros temas podem ser vistos em .