A eleições presidenciais americanas, mais uma vez, provocaram elogios entusiasmados por parte da mídia e de colunistas brasileiros que vêem nos Estados Unidos o grande paradigma acabado e definitivo de democracia. Entretanto, bastaria uma análise não muito profunda do sistema eleitoral americano para se constatar o quanto essa percepção está longe da realidade. Na verdade, uma análise mais profunda mostraria que o sistema eleitoral dos Estados Unidos tem pouco de democrático e muito de mecanismos que inibem qualquer tentativa de quebra do duopólio de poder exercido pelos partidos Democrata e Republicano.
Intencionalmente ou por mera ignorância, o fato é que a mídia brasileira nunca se preocupou em explicar o sistema eleitoral americano. Nas coberturas das eleições recém realizadas, alguns jornais mencionaram uma vez ou outra o sistema obsoleto de votação e de apuração, mas, nessas ocasiões, a tônica era o elogio à urna eletrônica brasileira, apresentada como modelo. Falou-se, também, em Colégio Eleitoral, e finalmente os brasileiros tomaram conhecimento de que a eleição presidencial americana é indireta.
Nos Estados Unidos, o eleitor não elege o candidato de sua preferência e, sim, os representantes do seu estado no Colégio Eleitoral. Esses representantes são, comumente, indicados pelos comitês eleitorais dos partidos. O número de representantes de cada estado é igual ao número de congressistas (deputados federais mais dois senadores) a que cada estado tem direito. Apesar de geralmente a eleição no Colégio Eleitoral acompanhar a votação popular, os membros desse colégio não têm obrigação de respeitar a vontade do eleitor. Por três vezes, o Colégio eleitoral elegeu o candidato minoritário, sendo que o último foi George W. Bush, no ano 2000.
Como cada estado estabelece suas próprias regras, a distribuição de votos no Colégio Eleitoral não representa proporcionalmente os votos dos partidos ou dos candidatos. Dos 50 estados que compõem os Estados Unidos, 48 adotam o sistema “winner-take-all” (o vencedor leva tudo), segundo o qual o candidato que vencer nesses estados obtém todos os votos desses estados no Colégio Eleitoral. Isso é que permite a possibilidade de um candidato ganhar no voto popular e perder no Colégio Eleitoral. Esse sistema torna impossível o surgimento de outros partidos e garante o duopólio do poder nas mãos dos partidos Democrata e Republicano, ainda que com alternâncias entre eles.
Mas parece que os detentores do poder não confiam muito na solidez dessas regras para manter o controle sobre o país e procuram se proteger com o uso de formas mais explícitas de cerceamento da liberdade política. Em vários estados e condados, candidatos de outros partidos são impedidos de se manifestarem em lugares públicos ou terem seus nomes incluídos nos sistemas de votação. Para completar, mesmo nos estados em que se permite a manifestação pública de outros candidatos, os partidos Republicano e Democrata, com ajuda da Mídia, impedem que candidatos de partidos minoritários participem de debates televisionados.
Mas as distorções do sistema eleitoral americano não se restringem à eleição indireta para presidente. Diferentemente de outros países democráticos, nos quais o sistema eleitoral tem regras claras que se aplicam a todas as unidades políticas do país e é regido por uma instância nacional geralmente ligada ao Judiciário, nos Estados Unidos não há um órgão padronizador nem fiscalizador nacional. Em quinze estados, quem dirige e fiscaliza o sistema eleitoral é o Secretário de Estado (algo como um chefe da Casa Civil ou Secretário de Justiça) nomeado pelo governador. Nos outros estados, há Juntas Eleitorais, geralmente formada por três membros, dois indicados pelo governador de plantão e um indicado pelo partido derrotado na eleição anterior. Cada estado e cada condado pode estabelecer suas próprias regras e também seu próprio método de votação e de apuração, que incluem desde cédulas de papel, uso de lápis, cartões perfurados e até um sistema mecânico de difícil operação. Só recentemente alguns condados introduziram um sistema eletrônico de votação. E o eleitor não recebe nenhum comprovante de que tenha votado ou de que seu voto tenha sido computado.
Na verdade, pode-se dizer que as distorções começam no momento em que o cidadão se registra como eleitor. O voto não é obrigatório e, para votar, o cidadão tem que se registrar em algum dos inúmeros locais de registros eleitorais, de acordo com o seu lugar de residência. Geralmente, esse processo é conduzido por ativistas partidários. Além disso, a ficha de inscrição pede que o eleitor indique o seu partido de preferência. Alguns eleitores mais corajosos se declaram independentes ou indicam um terceiro partido, geralmente sem nenhuma chance. Além de se constituir em uma clara violação do sigilo eleitoral, pois se torna pública, essa informação poderá ser usada para estabelecer os contornos dos distritos eleitorais de forma a favorecer o partido que estiver no poder, ou seja, os partidos Republicano ou Democrata. Note-se que a eleição para o legislativo não é proporcional e, sim, distrital. Em outras palavras, um partido pode ter 49% de votos em um estado e não ter nenhum representante no Congresso caso seus candidatos não vençam em nenhum distrito.
Em alguns estados, uma pessoa com antecedente criminal perde seu direito de votar para o resto da vida. Como é de se esperar, , em um país cujo sistema judicial é permeado pelo racismo, a maioria esmagadora das pessoas que algum dia estiveram presas ou foram condenadas é formada por negros, hispânicos e outras minorias. Um exemplo é o Estado da Flórida, onde trinta por cento dos homens negros não podem votar por terem antecedentes criminais. Antes de cada eleição, milhares de eleitores são desqualificados mediante vários expedientes casuísticos. Um dos mais usados é a exclusão de eleitores cujos nomes são fonética ou graficamente parecidos com os nomes de pessoas com antecedentes criminais, e não há instâncias rápidas de apelação. Outro expediente comum é quando o eleitor não responde a uma correspondência enviada por correio ao seu endereço. Milhares de eleitores são desqualificados com base nesse expediente. Não há obrigatoriedade de a correspondência ser registrada, portanto, não há como provar que foi realmente enviada ou recebida. Outro artifício é a exigência de um documento de identidade, com foto, na hora de votar. Essa exigência não é universal e nem poderia ser. Nos Estados Unidos não há uma carteira de identidade nacional, como no Brasil e em outros países. Na verdade, os únicos documentos oficiais, com foto do seu portador, são o passaporte e a carteira de motorista. Não são documentos de porte obrigatório, exceto, obviamente, quando seu portador viaja ao exterior ou quando está à direção de um veículo. Milhares de eleitores são desqualificados em muitos condados com base nessa exigência. Certamente não é mera coincidência o fato de que exigências desse tipo são comuns nos postos de votação dos bairros pobres, onde a maioria jamais teve um passaporte ou não possui carro, e nunca nos postos de votação em bairros ricos e brancos. Como a adesão partidária dos eleitores é conhecida, torna-se fácil criar artimanhas e artifícios burocráticos para impedir o voto de comunidades inteiras.
Outra dificuldade, é que o dia da votação não é um feriado especificamente dedicado ao exercício do voto, já que este é um ato voluntário. E as eleições presidenciais são sempre na primeira terça-feira do mês de novembro, um dia útil. Apesar de a legislação permitir ao cidadão ausentar-se do trabalho para votar, muitas empresas colocam obstáculos que obrigam o trabalhador a ir aos postos de votação fora do período de trabalho, seja de madrugada, na hora do almoço ou depois do expediente. São milhares as pessoas registradas para votar que não conseguem chegar aos locais de votação. Devido ao complicado sistema de votação, é comum a existência de longas filas, especialmente nos bairros pobres. Nas eleições de 2004 houve denúncias de que essas filas são propositais para impedir a votação de minorias que geralmente apóiam o Partido Democrata. Naquelas eleições, o tempo médio de espera na fila para votar nos bairros brancos foi de 12 minutos e de 58 minutos nos bairros negros.
O sistema é totalmente vulnerável a fraudes. Não foram poucas as denúncias públicas de fraudes e de manipulação de resultados nas eleições de 2004. Além da desqualificação de eleitores em distritos identificados como democratas, de máquinas de votação que mudavam o voto, e anulação arbitrária de votos, houve várias denúncias de manipulação de resultados em vários distritos eleitorais. Por exemplo, em 2002, na Comarca de Broward, Flórida, constatou-se que 104 mil votos não foram computados pelas máquinas de votação e que aproximadamente 55 mil votos a distância se perderam no correio. Ainda na Flórida, o sistema eletrônico de votação de uma comarca registrou o comparecimento de um número de votantes 900% maior do que o número de eleitores registrados.
Diante desse quadro, não é de se estranhar que cerca de metade das pessoas qualificadas para votar preferem não participar de eleições. É uma ausência aparentemente ativa, ou seja, uma forma de dizer que não vale a pena o esforço porque os limites estão estabelecidos e é impossível qualquer mudança, seja ela qual for. Só três vezes na história das eleições americanas houve participação maior de 60 por cento do eleitorado: em 1906 (quando as mulheres e negros ainda não podiam votar), em 1960 (eleição de John Kennedy) e agora com a eleição de Obama.
Apesar de ser um tema de discussão em setores políticos de esquerda e em pequenos círculos acadêmicos, são poucas as vozes que publicamente denunciam o caráter não democrático do sistema eleitoral americano. Qualquer mudança exigiria uma emenda constitucional, ou seja, apoio de dois terços do Congresso, ou seja, uma tarefa quase impossível. É importante notar que, em mais de duzentos anos desde a sua promulgação, a constituição dos Estados Unidos sofreu somente 27 emendas. Qualquer iniciativa, para ter sucesso, teria que contar com apoio explícito e militante do presidente e com a mobilização dos partidos Republicano e Democrata. Até agora, nenhum dos dois partidos mostrou qualquer disposição de caminhar espontaneamente para a guilhotina.
Anivaldo Padilha, secretário de Planejamento e Cooperação de KOINONIA