1. Panorama Geral
Pernambuco revela uma história de resistência à escravidão manifestada sob diferentes modelos de organização, formação e estratégias, demonstrando quão diversas foram as formas encontradas por sua população. Ocupando lugares ora pouco acessíveis, ora próximos às vilas, fazendas ou engenhos, grupos eram formados e a partir deles comunidades, com regras particulares, religiosidades próprias, formas distintas de economia, alianças, redes de proteção e sociabilidade, numa constante negociação por liberdade, que viria a definir a diferença étnica e política destes grupos.
Palmares, Catucá, Conceição das Crioulas, Castainho e Onze Negras, cujo reconhecimento ultrapassa as fronteiras nacionais, são um retrato desta diversidade inerente ao que se convencionou chamar de comunidades quilombolas, ou usando os termos impressos nos dispositivos legais, remanescentes das comunidades de quilombo. Mais do que isso, elas são ícones de resistência e pioneirismo na luta por direitos e autonomia, características que lhes aproxima mais do que traços culturais, religiosidade, forma de apropriação das terras ou a memória da escravidão.
A exemplo destas comunidades, e respaldadas pela Constituição Federal e pelo Decreto nº 4.887/2003, outras comunidades negras do estado iniciam, no final do século XX e início do XXI, o processo de pleito de sua identidade, requerendo a garantia de posse e uso do seu território.
Atualmente, estão certificadas pela Fundação Cultural Palmares 1228 comunidades em todo país, segundo critério de auto-reconhecimento, sendo 83 de Pernambuco – 2 na região metropolitana, 2 na zona da mata, 33 no agreste e 46 no sertão.
Precisar a quantidade de comunidades que se movimenta em direção à afirmação de uma identidade étnica, quilombola, no entanto, é uma tarefa difícil pelo próprio momento embrionário do processo de etnogênese (Oliveira, 1993). Sem falar em outras dificuldades de ordem prática e conceitual.
O cenário revela assim que o reconhecimento étnico - e territorial - sob a recente rubrica de “quilombo” não se mostra definido, mas, ao contrário, em aberto, podendo surpreender em quantidades e formas.
Para a Comissão de Articulação Estadual das Comunidades Quilombolas de Pernambuco, criada em 2003 por representantes de comunidades das diversas regiões, há cerca de 120 comunidades quilombolas no estado, confirmando a importância dos quilombos na formação de Pernambuco.
Novamente é no sertão onde se sabe, ou se imagina, com base no movimento dos próprios sujeitos políticos ou dos seus mediadores, haver o maior número de comunidades quilombolas, cerca de 80 delas, ou seja, praticamente o dobro das comunidades já certificadas na região
Tabela 1 - Distribuição das comunidades quilombolas pelos sertões pernambucanos.
Sertão |
Quantidade de Municípios |
Quantidade de Comunidades Certificadas |
Pajeú |
4 |
6 |
Moxotó |
2 |
15 |
Central |
3 |
12 |
Itaparica |
2 |
4 |
São Francisco |
4 |
9 |
TOTAL |
15 |
46 |
Fontes: Fundação Cultural Palmares (2008)
A história de muitas dessas comunidades se confunde com a história dos seus municípios, ou mesmo de suas regiões, permitindo uma comunhão nos processos históricos de ocupação territorial, por onde configuram diversos atores sociais, do período colonial (missionários religiosos, grandes fazendeiros, governo colonial, indígenas, negros escravizados) ao contemporâneo (fazendeiros, pequenos agricultores, movimentos de trabalhadores rurais sem terra, movimentos dos atingidos por barragens, sindicatos, prefeituras, Ministério da Integração, Ongs, quilombolas, povos indígenas e outros).
Isso ajuda a explicar a forte ligação intercomunitária existente na região, mantida por critérios oriundos das próprias comunidades, tais como laços de parentescos, alianças, fluxos culturais e migratórios, e não pela divisão geopolítica local.
Guardando as especificidades, essas comunidades se aproximam muito quando pensadas a partir das violações de seus direitos e de suas demandas, das quais se destaca a luta pela terra. Por esta razão, e reconhecendo na questão agrária e no protagonismo da afirmação/oficialização da identidade étnica dois pontos centrais - e determinantes - da luta e conquista dos direitos dos quilombolas em Pernambuco, defino essas variáveis como objeto de análise.
2. A Questão Agrária
É notório o fato do movimento de afirmação da identidade étnica vir acompanhado da luta pela posse do território, e nem poderia ser diferente, já que é em um território específico, com formas próprias de manejo, que a identidade étnica se afirma e legitima.
Ao se tratar de comunidades quilombolas, a posse do território se torna pauta de discussão do próprio conceito de quilombo e desencadeia uma série de pressões para que os instrumentos jurídicos e administrativos do governo dêem conta das diversas demandas das comunidades negras (SCHMITT, 2002). A criação desses instrumentos, no entanto, não se constituiu em um mecanismo eficaz de garantia de posse do território para essas comunidades.
Atualmente no estado de Pernambuco, 21 comunidades passam pelo processo de titulação das terras quilombolas, correspondendo a 3,85% do cômputo nacional. Dessas, 43% estão nos sertões.
Tabela 2 - Processos de titulação de terras no sertão pernambucano.
Região |
Município |
Terras |
Etapa Atual |
Sertão do Moxotó |
Custódia |
Buenos Aires e outros |
Processo Formalizado |
Sertão Central |
Mirandiba |
Fazenda Posse |
Processo Formalizado |
Salgueiro |
Sibaúma |
RTID em elaboração |
Contendas/Tamboril |
Processo Formalizado |
Santana |
Processo Formalizado |
Sertão de Itaparica |
Itacuruba |
Negros de Gilú |
RTID em elaboração |
Sertão de São Francisco |
Cabrobó |
Cruz do Riacho |
Processo Formalizado |
Bela Vista |
Processo Formalizado |
Jatobá |
Processo Formalizado |
Fonte: Comissão Pró-Índio de São Paulo (2008)
As invasões e desapropriações dos territórios quilombolas, no entanto, permanecem e têm nas figuras dos grileiros e do órgão do governo federal, ironicamente, responsável pela regularização das terras, o Incra, os principais espoliadores.
Pernambuco é um estado com alta concentração de assentamentos da reforma agrária e, especialmente nos sertões de Itaparica e São Francisco, de reassentamentos da Chesf por conseqüência das represas de Itaparica e Sobradinho.
Nesta disputa por terras, os quilombolas vêem parte de seu território, ou mesmo todo ele, sendo transformados em assentamentos e reassentamentos. Se a perda territorial neste contexto é algo fácil, a recuperação destas terras parece ser um direito inalcançável.
Os exemplos são numerosos e variados: casos onde em que as terras foram dadas como improdutivas pelo Incra e destinadas à reforma agrária; casos em que a população não resistiu a nova organização territorial e cedeu lugar aos assentados; casos em que o território quilombola foi dividido por assentamentos e a regularização das terras mantém a atual divisão reduzindo a área e separando as famílias; dentre outros tantos casos. Fica evidente que a prática do Incra ao invés de assegurar a territorialidade dos grupos étnicos em questão, atesta e regulariza as apropriações indevidas sobre eles.
Esta situação se torna mais alarmante quando pensamos a atual conjuntura do sertão de São Francisco, que se depara com a implantação do projeto de Transposição do Rio São Francisco e a iminência da construção de duas usinas hidrelétricas (Pedra Branca e Riacho). A região concentra diversas comunidades quilombolas _, apenas uma oficializada, _ que poderão ser deslocadas por ocasião do empreendimento, permanecendo sem o direito sobre seu território e perdendo elementos definidores de sua etnicidade.
Esses prejuízos são conhecidos pelas comunidades do sertão de Itaparica que tiveram suas terras inundadas pela construção da barragem. Aquelas comunidades que sobreviveram a este processo precisaram se reorganizar social e politicamente, criar novas práticas produtivas e reelaborar sua religiosidade e história.
Outra situação recorrente de perda territorial é causada pela inoperância dos órgãos públicos em lidar com comunidades localizadas numa área de divisão geopolítica. No sertão do Pajeú, mas não só nele, há casos emblemáticos de comunidades fragmentadas por esta divisão, que responde a uma lógica que se sobrepõem à organização social e territorial das comunidades quilombolas, subdimensionando o território e comprometendo a territorialidade dos grupos.
Por fim, vale ressaltar que o próprio procedimento para a regularização do território é desconhecido para muitas comunidades, se constituindo em outro obstáculo para a conquista de seus direitos. Neste sentido, a relação com outras populações étnicas tem se revelado um aporte no fortalecimento da luta por terras, seja pelo apoio político ou pela abertura de um canal pouco conhecido, e muitas vezes temido.
O mesmo pode ser dito com relação à articulação da identidade quilombola.
3. Protagonistas do Processo de Reconhecimento Identitário
O processo de etnogênese das comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, e mesmo entre aquelas que se vêem em condições de aderi-la, recorrentemente têm seu processo mediado por agentes externos.
Para melhor falar sobre a intervenção desses agentes proponho uma divisão por categoria, embora reconheça haver uma fluidez e uma articulação entre elas:
(1) Comunidades brancas rurais – Aqui me refiro aos grupos formados por uma população majoritariamente branca, descendentes diretos dos fazendeiros donos de escravos, ou simplesmente moradores de áreas vizinhas aos quilombos.
Nos casos observados, a intervenção deste grupo não apenas rege o processo pelos quilombolas, mas se apropriam dos benefícios sociais e demais direitos, inclusive territoriais, previsto aos verdadeiros sujeitos de direito.
Com os espaços de poder sob controle (associação de moradores e escola), a história de algumas comunidades é (re)escrita de forma a manter o privilégio do grupo dominante. Embora em alguns casos se sobressaia um ambiente harmonioso, as condições entre as populações negras e brancas são desiguais, gerando uma maior vulnerabilidade aos quilombolas e perpetuando a exploração e dominação sobre eles.
(2) Ongs – No sertão do Pajeú o processo de etnogênese é desencadeado pela atuação do Projeto Dom Helder Câmara, do Grupo Mulher Maravilha (GMM) e da CPT. Questões como raça, gênero e políticas públicas tornam-se pautas dos encontros com as comunidades.
(3) Órgãos Federais – O sertão pernambucano banhado pelo Rio São Francisco e/ou seus afluentes foi marcado pela intervenção de órgãos federais, em especial, o Ministério da Integração que tem atuado em diversos municípios desta região, por conseqüência do projeto de Transposição do Rio São Francisco (Projeto de Integração do rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Sententrional) que prevê um programa de apoio às comunidades quilombolas.
Neste contexto chega às comunidades o Projeto Produzir1 , utilizando fazendo uso de uma perspectiva culturalista e de aspectos fenótipos-raciais, para incentivar as comunidades a se identificarem como quilombolas, atribuindo de maneira externa ao grupo os elementos que seriam definidores da sua identidade. Esta intervenção resulta na certificação de muitas comunidades quilombolas do sertão.
Novamente, as leis que asseguram os direitos dos quilombolas, são manipuladas de forma a inibir a autenticidade e autonomia dos grupos, que sem protagonizar os processos de seus interesses permanecem em similar situação de desvantagem e vulnerabilidade.
Carla Siqueira Campos, pesquisadora e mestra em antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
BIBLIOGRAFIA
ARRUTI, J. M. Morte e vida do nordeste indígena: a emergência étnica como fenômeno histórico regional. Rio de Janeiro. Estudos Históricos. vol. 8, n.15, p. 57-94. 1995
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DE SÃO PAULO. In: www.cpisp.org.br
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. In: www.palmares.gov.br
OLIVEIRA, J. P. “A viagem da volta: reelaboração cultural e horizonte político dos povos indígenas no Nordeste”, em PETI, Atlas das terras indígenas do Brasil, Rio de Janeiro, Museu Nacional. 1993.
SCHMITT, A.; TURATTI, M. C. M.; CARVALHO, M. C. P. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas. Ambiente & Sociedade; Ano V - Nº. 10; 1o Semestre de 2002.
O Produzir é uma parceria entre o Ministério da Integração e Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - ONU/FAO (por meio do Novo Pronager), que tem como objetivo
combater a situação de desemprego e subemprego em comunidades pobres, sejam elas urbanas ou rurais, situadas nas áreas prioritárias de atuação do Ministério da Integração Nacional, inserindo seus integrantes em arranjos e atividades produtivas que promovam dinamização econômica local e contribuam para o Desenvolvimento Regional.