Trabalhamos juntos num projeto de inclusão digital cujo significado ultrapassa seus objetivos imediatos. Muitos falam em inclusão digital sem perceber seu potencial revolucionário nem reconhecer sua natureza complexa.
Num país como o nosso, com sua vasta extensão e suas imensas desigualdades, inclusão digital pode significar ampliação dramática de acesso aos meios para capacitar-se, produzir e criar. Numa política como a nossa, com sua dificuldade de instaurar debate nacional fora dos círculos de elites freqüentemente preocupadas consigo mesmas e vidradas nas nações que se acostumaram a tomar como referências, pode facilitar as práticas ao mesmo tempo deliberativas e populares que nos faltam. E numa cultura como a nossa, com seu pendor para o improviso, para o engenho indisciplinado, porém fervoroso e fecundo, pode ajudar a transformar sincretismo acidental e anarquia sugestiva em prática coletiva criadora.
O projeto que idealizamos comporta quatro elementos. A primeira parte é a organização pelo governo, em colaboração com as empresas privadas, de infovia nacional. Tal infovia tem de incluir todos os requisitos: o backbone (a base física da rede), o backhaul (o desdobramento dessa base, necessário para certos usos) e a “última milha” (o elo entre a base física e o usuário da rede). Trata-se de combinar as muitas redes, fragmentárias e duplicadas, que já temos e de estendê-las para as regiões, especialmente algumas partes da Amazônia ocidental, que elas ainda não alcançam. É um trabalho que o governo deve liderar, sem qualquer intuito de excluir as empresas privadas de telefonia. Pelo contrário, esse trabalho pode servir para inaugurar novo padrão de colaboração entre o ativismo governamental e a iniciativa privada.
A segunda parte, portanto, é conjunto de medidas voltado para o fortalecimento das capacitações populares de acesso à internet. Importa que tais capacitações não sejam prerrogativa de uma elite, mas que se difundam, tanto quanto possível, por amplos setores de nosso povo. Para isso, não basta ensinar nas escolas. É preciso abrir, em todo o país, centros de apoio e de instrução para os usuários, atuais e potenciais, da internet.
É nesse contexto que se deve colocar a discussão a respeito da distribuição de computadores simplificados e baratos nas escolas brasileiras. O governo considera várias opções para a fabricação de um computador que custe por volta de R$200 e que seja robusto bastante para sobreviver aos trancos da juventude. Não se deve exagerar nem minimizar a importância dessa iniciativa. Faz todo o sentido, porém só dentro de projeto maior.
Não adianta ter instrumento sem ter substância. A terceira parte, portanto, é o estímulo à produção de conteúdos nacionais e populares na rede. É o que o Ministério da Cultura já começa a assegurar por meio do programa “Pontos de Cultura”, que procura apoiar um mundo de inovações culturais em todo o país, inclusive na combinação das culturas erudita e popular. Nessa mesma linha, propomos estabelecer fundações públicas, independentes da influência dos governos e representativas da sociedade civil. Tal como as fundações privadas dos Estados Unidos e da Europa, poderiam ajudar a financiar e a qualificar, por extensionismo técnico, o trabalho de criação e de participação na internet. Não uma única entidade, mas várias, com direções diferentes, compostas por critérios diversos. Nada como o pluralismo mais livre para garantir que o impulso experimentalista se amplie. Juízo de qualidade, sim, desde que haja as necessárias pluralidade e independência dos encarregados de avaliar e de decidir.
A quarta parte é a organização de estrutura de governança na internet — no Brasil como decisão e no mundo como proposta. O que temos de fazer no Brasil é antecipar, como regime nacional de governança, aquilo que o governo brasileiro já propôs oficialmente para o mundo: sistema que dê voz e vez à sociedade civil independente, organizada fora do Estado, não apenas aos governos e às empresas.
Assim concebida, inclusão digital vira instrumento de libertação nacional.
Gilberto Gil, ministro da Cultura; e Roberto Mangabeira Unger, ministro extraordinário de Assuntos Estratégicos.
Artigo publicado no Jornal: O GLOBO, em 17/02/2008, Página: 7, Primeiro Caderno