Quando no princípio a novidade toca a vida de Maria, vem com palavras de anunciação, bem-aventurança e profecia. No texto da anunciação (Lucas 1) Maria vai receber palavras de alegria e favor (v.28), confiança e graça (v. 30); no encontro com Isabel (Lucas 1) Maria vai ser recebida com saudações de felicidade (v.42) e ter reconhecida sua fé: Bem-aventurada a que creu... (v.45).
Mas, difíceis são as palavras que Simeão entrega para Maria: Eis que este menino está destinado tanto para ruína. Como para levantamento de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição (também uma espada traspassará a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações (Lucas 2, 34 e 35).
Este caminho entre a euforia e o susto, entre as palavras que anunciam o nascimento (Lucas 1, 31) e as palavras que antecipam a espada (Lucas 2, 35), esta trajetória, entre as expressões de confiança - não tenha medo! alegra-te! bem-aventurada! – e o tom de voz profundo que anuncia contradição e a vida atravessada, pode ser entendida como um percurso de construção de significado que afirma a originalidade de Maria, elogia seu lugar de maternidade sagrada... para então aprisioná-la na experiência do sofrimento.
O sofrimento de Maria está na maternidade como experiência padrão para as mulheres. As narrativas da infância de Jesus são construções de significado: querem educar a experiência da maternidade colocando limites e padrões para as mulheres das comunidades cristãs. Parte deste mesmo esforço pode ser localizado nas cartas pastorais, principalmente em 1 Timóteo que propõe a salvação para mulheres “através de sua missão de mãe” (2, 15).
A mãe sofredora não é exclusividade das tradições judaico-cristãs. A novidade está na resolução do sofrimento.
No mito grego a deusa-Mãe Deméter, deusa da fertilidade e da agricultura, distribuía a fartura aos seres humanos que felizes pela abundância glorificavam e oravam para as divindades. Até que um dia sua linda filha Coré foi raptada e violentada por Hades, deus do mundo inferior. Chorando inconsolável durante nove dias, Deméter vaga pela terra à procura da filha, mas não consegue nenhuma informação sobre o paradeiro de sua menina. Inconformada com o rapto da filha, Deméter abandona o Olimpo e, disfarçada de anciã, perambula como louca entre os mortais. A deusa-Mãe se nega a aceitar a separação da filha e, indignada, se recusa a fazer crescer qualquer semente ou grão. O sofrimento de Deméter se expressa em indignação ativa, como luta contra o destino da filha. Tal atitude move o deu-Pai (Zeus) que devolve a filha de Deméter com um outro nome – Perséfone – na forma da primavera 1. A filha ressuscita por conta da recusa da mãe em aceitar a separação e o sofrimento.
Maria e Deméter têm em comum o imaginário de uma divindade masculina que aceita e precisa do sofrimento. As narrativas sobre as duas mostram o grande esforço hermenêutico feito pelos mitos das teologias patriarcais no controle e subordinação do imaginário das deusas-Mãe, da sexualidade e da reprodução. O mito de Deméter ainda trabalha com uma relativa autonomia e protagonismo por parte da deusa: a mãe pode lutar pela filha, a mãe tem poderes e formas de pressão, seu sofrimento é ativo. A narrativa de Maria apresenta uma resolução diferente: o sofrimento passivo, uma participação interiorizada e subordinada, a perda do controle do corpo e a ausência de poderes.
As figuras de Deméter a apresentam com um feixe de cereal numa mão e um objeto cortante na outra. Ela é o poder que atravessa a terra e faz com que os frutos apareçam ou não. No evangelho de Lucas, Maria já não tem nada nas mãos: esvaziada de poderes o texto atravessa o corpo/vida de Maria.
Este trânsito de significados pode ser identificado também na mitologia dos astecas revelando o deslocamento de conteúdos e as formas culturais de controle que se impõem como consolidação do poder patriarcal.
Cihuacoatl era o nome da mãe mítica entre os astecas que pode ser traduzido como mulher-serpente ou mulher-de-gêmeos como referência à fertilidade. Ela é identificada como deusa da fertilidade e da reprodução. O mito antigo relacionava a deusa com a gravidez e o parto mas, no período da colonização e cristianização, se transformou na lenda da mulher que matou seus filhos e por isso se desespera. Nos tempos atuais Cihuacoatl se transformou na figura da Chorona das lendas populares mexicana: uma figura misteriosa que carrega o corpo de uma criança e que, durante a noite, chora desesperadamente2 .
Da bem-aventurança para o desespero, do poder para o sofrimento, do protagonismo para o papel co-adjuvante: os mitos das deusas-Mãe – antigos e contemporâneos – expressam, revelam e escondem mecanismos precisos e preciosos de controle, dominação e alienação.
A subordinação e o aprisionamento do imaginário das deusas-Mãe no sofrimento co-adjuvante dentro do cristianismo tiveram e continuam tendo conseqüências dolorosas na vida das mulheres... e muitas vezes em nome da “defesa da vida”.
A consolidação do cristianismo patriarcal cultivou uma cultura de que as mulheres deveriam naturalmente sofrer no período da gravidez, parto e pós-parto proibindo e inibindo a assistência, proscrevendo a técnica que se acumulara na antiguidade no cuidado à saúde, sobretudo o ligado à sexualidade e à reprodução, incluindo aqui tanto a gravidez e o trabalho de parto quanto a contracepção, o aborto e as doenças específicas das mulheres3 . Na Idade Média muitas parteiras foram consideradas bruxas porque tinham conhecimentos de atenção e cuidado das vivências sexuais e reprodutivas4 .
Estas proibições e perseguições foram teologicamente sustentadas por renomados teólogos que sistematizaram e normatizaram a dor e o sofrimento como um atributo essencial das mulheres como alternativa de expiação do pecado original5 . Nestas construções a maternidade se expressa como fetiche ocultando os materiais e relações de poder (negativos e/ou positivos) que atravessam a reprodução humana em sua historicidade, e a vida – e a defesa da vida – expressam o princípio fundante (mas não exclusivo) de alienação das mulheres.
Alienação e fetichismo não são invenções do capitalismo e do patriarcalismo: precisam ser entendidos no âmbito da fabricação dos mitos, dos cultos, dos encantamentos, dos rituais mágicos de manutenção de ambos, seus deuses (capital/pai) e seus truques. A religião sempre foi também expressão e reprodução de situações econômicas e de relações sociais de poder. Nesta dobradiça entre o discurso amoroso e o discurso religioso é que a teologia feminista percebe, não um conjunto de comparações ou recursos estilísticos, e sim um espaço de análise e crítica fundamental das relações entre capital-mercado-patriarcalismo.
As formatações históricas da dinâmica reprodutiva humana não são caóticas, não são imutáveis, nem estruturadas de uma vez por todas. Neste sentido, não existe um discurso perfeito e acabado sobre reprodução humana na Bíblia ou na teologia. Cada texto remete para condições objetivas e subjetivas que precisam ser consideradas como conjunto.
Neste sentido, as análises das relações sociais de poder e gênero são importantes para a compreensão das funções sociais da religião articuladas com as funções e estruturas sociais das práticas reprodutivas de determinado grupo social, em determinado momento histórico e suas representações narrativas.
A contribuição ética do feminismo se dá na insistência de que o pessoal é político, o cotidiano é histórico, a reprodução é produtiva, a produção é distributiva, o consumo é criativo. Esta reversibilidade dos sentidos e suas relações confrontam qualquer modelo político metafísico de alienação das relações cotidianas e fetichização de desejos e necessidades. Não há nenhum mecanismo fora da história, no passado ou no futuro, capaz de concretizar relações igualitárias e assumir univocamente a defesa da vida.
Ao insistir em trabalhar com o corpo, a vida cotidiana e suas relações como lugar vital de construção e circulação de poder e significados sociais e teológicos 6, a teologia feminista quer inviabilizar a mercantilização dos corpos e a estetização da mercadoria. Neste sentido, e de modo especial, a Bíblia e a teologia deixam de ser uma identidade auto-referenciada nos métodos sociológicos e histórico-críticos e passam a conviver com a vertigem da pluralidade dos paradigmas: classe, gênero, etnia, ecologia. São estas simultaneidades vivenciais e suas diferenças irredutíveis que tornam impossível qualquer tentativa idolátrica de mercantilização do corpo e estetização da mercadoria.
Visibilizar o caráter hermenêutico das relações políticas e econômicas e desvendar os mecanismos de construção de ídolos e rituais auto-reguladores, exigem uma teologia capaz de desistir de qualquer mão invisível auto-reguladora (seja ela dogmática ou exegética) para se inscrever definitivamente no campo da criação cultural, estética de memórias, hermenêutica de libertação. Nós, mulheres, com nossa medida de gente. Atrevidas: somos o arco e a flecha, a corda e o ai! Maria, Deméter, Cihuacoatl. Mãe ou Não: Deus conosco.
Os corpos, frente a frente como astros ferozes, são feitos da mesma substância dos sóis. O que chamamos amor ou morte, liberdade ou destino,
Não se chama catástrofe, não se chama
Hecatombe?
Onde estão as fronteiras entre espasmo e terremoto,
Erupção e cópula?
... |
a imaginação é a espora do desejo,
seu reino é inesgotável e infinito como
o fastio, seu contrário e seu gêmeo.
Atreve-te:
Sê o arco e a flecha, a corda e o ai. O sonho é explosivo. Estala.
Volta a ser sol.
Octávio Paz
O Prisioneiro, 1947 |
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Nancy Cardoso, pastora metodista, coordenação na
NOTAS
GADON, Elinor, The once & the future goddess, Harper, San Francisco, 1989, pp.146-149
www.sacred-texts.com/nam/aztec/rva/rva13.htm
www.mulheres.org.br/parto/mestrado_1.html
ALEXANDER-BERGHORN, K. Ísis - A Deusa como curadora, In: NICHOLSON, S., O despertar da Deusa - o princípio feminino hoje, Ed. Rocco, Rio de Janeiro, 1993.
AGOSTINHO, Santo, A Cidade de Deus. Parte I, Editora Vozes, São Paulo, 1991.
vv.aa., Pautas para uma hermenêutica feminista da libertação, Ribla 25, Vozes, Petrópolis, pp.5-10.