Qual a utilidade do licenciamento ambiental, na prática?
Por: Nelson Tembra
O cerne dos problemas que ultimamente têm sido divulgados na imprensa nacional e internacional (links anexos), cada vez com mais freqüência, sobre a verdadeira humilhação e subjugação que são submetidas as populações tradicionais, índios e quilombolas, brancos e mestiços pelos grandes grupos econômicos, principalmente a Companhia Vale do Rio Doce, através da implantação e operação de projetos de extração mineral altamente impactantes que provocam significativa alteração dos ecossistemas naturais, está no licenciamento ambiental dos empreendimentos. Este procedimento é regulamentado, dentre outros dispositivos, pela Resolução 237/97 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - Conama.
O licenciamento não se aplica apenas para monitorar os diversos ambientes - físico, biótico, antrópico - nas áreas de influência dos projetos. Serve, ou pelo menos deveria servir, de uma espécie de contrato entre o estado e o empreendedor, no estabelecimento das justas compensações e medidas mitigatórias dos impactos negativos desses
projetos.
Um tópico das notas distribuídas à imprensa, pela Companhia Vale do Rio Doce, tentando justificar-se dos inúmeros atos de protesto é emblemático para realçar alguns equívocos que no Pará se tem cometido na concessão de licenças ambientais. "O apoio da CVRD às iniciativas de proteção e desenvolvimento sócio-econômico das comunidades indígenas, dentre eles a Parkatejê, os Xikrins etc. é uma atitude voluntária", declara a empresa nos documentos.
"Voluntário" seria também, pelo mesmo raciocínio, o apoio dado pela Pará Pigmentos S/A, empresa do Grupo Vale que explora uma mina de caulim no município de Ipixuna do Pará, às comunidades indígenas em cujas terras passa o mineroduto que transporta o minério até o complexo portuário de Vila do Conde. Pois bem, alguns meses atrás, a Fundação Nacional do Índio (Funai) acusou a empresa de não estar cumprindo os compromissos assumidos com os índios, enquanto estes se queixavam do tratamento "arrogante e desrespeitoso" a eles dispensados por alguns executivos da Vale.
A relação da CVRD com as comunidades indígenas que ocupam terras situadas nas áreas de influência de seus projetos, como se vê, é marcada pela ambigüidade, como ambígua tem sido, também, a sua relação com a sociedade paraense. A empresa, que utiliza a figura do índio no seu marketing promocional, ignora a passagem de mineroduto e ferrovia nas terras indígenas e considera como simples favores - ou "atitudes voluntárias" - todo e qualquer tipo de apoio.
Ao agir assim, a Vale está fazendo, em benefício próprio, uma interpretação muito generosa dos dispositivos da Lei 5.887, a chamada Lei Ambiental do Estado. Mas a culpa não é só dela, e nem sequer é principalmente dela. O que acontece é que a própria sociedade paraense não está sabendo aproveitar, em toda a sua plenitude, recursos contidos na legislação. Se o fizesse, a empresa jamais poderia classificar como "atitudes voluntárias" nem considerar como simples "favores" o cumprimento de compromissos a que, na verdade, estaria obrigada por imposição legal.
A Lei 5.887 estabelece, por exemplo, que o Conselho Estadual de Meio Ambiente, o Coema, definirá, através de resolução, as atividades e obras que dependerão da elaboração de Estudo de Impacto Ambiental e de Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Eia/Rima). É através dos instrumentos de controle, ou projetos ambientais, segundo a mesma lei, que devem ser previstas e definidas, com antecedência, todas as medidas e ações. E não somente as de compensação, mas também as de mitigação de impactos negativos e de incremento dos positivos, definindo-se principalmente as de
natureza socioeconômica e ambiental.
No Pará, o que tem acontecido - e no caso mais recente aconteceu com o projeto bauxita de Paragominas - é que nem o Coema, que tem ampla representação da sociedade civil, e nem a própria população, nas audiências públicas que antecedem à conclusão dos estudos, têm tirado proveito dessas disposições da lei. O documento final, com simples recomendações difusas, acaba sendo mesmo aquele apresentado pela
mineradora e previamente preparado sob a sua orientação direta. Depois, quando procuram - sejam brancos ou índios - buscar compensações, o que buscam na verdade são direitos inexistentes, já que, fora dos parâmetros que expressamente condicionam o licenciamento ambiental, toda e qualquer ação da empresa pode ser considerada "voluntária" e "de livre iniciativa".
Teoria da conspiração
Apesar do neocolonialismo mineral que vive o Estado do Pará, a democracia participativa deveria garantir seu espaço e estimular a democracia formal a ampliar a influência da sociedade civil nas decisões de governo. Essa dinâmica deveria alterar o próprio significado de "governar". Surgiria uma nova perspectiva de tomada de decisão em que os atores "não-governamentais" passariam a dividir responsabilidades com os gestores públicos, tomando parte efetiva no espaço público. Esse novo modo de exercer a democracia deveria ser, na verdade, um processo para permear todas as relações sociais, assumindo um caráter ético e político, objetivo e subjetivo, macro e micro.
Quem empreende esforços na difícil tarefa de consolidar a democracia participativa depara-se com o desafio de conciliar a eficácia das decisões com a ética democrática. Para tanto, deveria contar-se com a vontade política dos governantes de ceder parte do poder e seria esperada dos agentes desses espaços de participação a capacidade de aperfeiçoar ao máximo. O desafio seria tanto o de conquistar o espaço de participação
efetiva, como o de consolidar os modelos de co-gestão participativa e sustentável, quando esses espaços públicos fossem apropriados pela população. O exercício da democracia participativa exige, porém, esforços coletivos constantes de todos, sociedade e governo.
Além de mais complexas, as decisões participativas exigem muito mais trabalho em reuniões, negociações e organização de processos do que as decisões centralizadas e sem participação. Logo, seria importante que não se desperdiçasse o tempo e a energia dos participantes nessas reuniões. Nelas, um grande número de pessoas tem de tomar as decisões necessárias para atingir os objetivos estabelecidos em pouquíssimo tempo, sem se descuidar da ética.
Os problemas se refletem na postura de cada indivíduo nas audiências públicas ou privadas. Daí costumam surgir obstáculos para o êxito da reunião em função da atuação dos participantes. Diferentes pontos de vista, interesses e objetivos podem entrar em choque e agravar a situação se as questões inerentes ao processo não forem esclarecidas ou negociadas. Diferenças de formação, de experiência prévia e de papel institucional de cada participante estabelecem essa desigualdade. A herança de uma cultura política clientelista, personalista e autoritarista compromete a qualidade e a ética da participação.
Tudo isso acaba alimentando alguns "jogos de poder" que podem ter nenhuma, pouca ou muita relevância para o processo decisório. O problema fica mais sério quando esses jogos se sobrepõem aos objetivos, não só de cada encontro ou audiência pública, mas do processo participativo em geral. Com o passar do tempo, o participante de boa fé começa a ficar descrente do processo e logo acaba se retirando, frustrado pela sensação de exclusão e por estar em um espaço em que reina apenas a disputa do poder. A falta de ética e de eficácia traz o de esvaziamento do processo, tanto em quantidade como em qualidade.
Ninguém questiona a alta complexidade de se pensar, decidir e agir coletivamente. É algo que exige esforço de abertura em relação ao outro, capacidade de negociação, tolerância, paciência, agilidade e disciplina, entre outros requisitos. Os grandes perigos de uma reunião participativa são os mecanismos autoritários, típicos de uma cultura política antidemocrática, reproduzidos em maior ou menor escala pelos participantes, por hábito ou intencionalmente. É importante saber identificar esses mecanismos e agir para que os participantes os compreendam e para que o grupo possa substituí-los por alternativas democráticas, contrárias da indiferença, da cena oculta, da disputa retórica, da desfocalização, da generalização de discurso, da teoria da conspiração ou síndrome da perseguição.
Os impactos ambientais, a floresta e o futuro
O aumento da exploração madeireira na região amazônica resultou, inicialmente, da exaustão das florestas do Sul e Sudeste do Brasil e do esgotamento progressivo das florestas tropicais da Ásia, então responsáveis por mais da metade do comércio internacional de madeiras. De outro lado, o desequilíbrio estrutural nas outras regiões do Brasil, aliado à implantação de grandes empreendimentos, especialmente no Pará, como a abertura de estradas, a construção de usinas hidrelétricas, a implantação de grandes projetos de mineração e os próprios projetos de assentamento e reforma agrária do governo contribuíram - e continuam contribuindo - para que milhares de famílias de agricultores e desempregados migrem para o Pará e outros estados da Amazônia, por não encontrarem em seus locais de origem as condições básicas necessárias para ter uma vida digna. Não podemos confundir os impactos primários, qualquer que seja o tipo de exploração, com os impactos secundários da colonização espontânea e o desmatamento total associados à agricultura de corte e queima, são problemas seculares de origem socioeconômica agravada com a inoperância e até mesmo a omissão do Estado com relação à exigência de compensações, no processo de licenciamento ambiental, pela implantação de grandes empreendimentos.
Citamos o exemplo da construção da Rodovia PA-150, aberta na década de 70 e asfaltada em 1986, com objetivo de servir de ligação entre a cidade portuária de Belém e a rica província mineral do sul do Pará. Para compreender a importância da madeira na vida de quem fugiu da miséria, atraído pela esperança de melhores dias, é necessário entender o contexto em que as pessoas são inseridas. É necessário considerar as espesas correspondentes à cesta básica e as necessidades sociais, incluindo roupas, calçados, saúde, transporte etc. Estimemos que o custo anual mínimo da cesta básica requerida para uma família de oito pessoas, tamanho médio da região, seja de R$ 3500. Essa estimativa não inclui o consumo de arroz e a farinha de mandioca que são produzidos na roça para a alimentação da própria família. Considerando gastos sociais correspondentes a 40% do valor da cesta básica, ou seja, R$ 1400, logo, a despesa anual de uma família de oito pessoas ficaria em torno de R$ 4900.
Cada hectare de mata recém-desbravado produz, em média, no sistema primitivo convencional, R$ 1.400 de produtos agrícolas de subsistência - milho, arroz, feijão e mandioca - antes de ser abandonado. Isto significa que uma família, depois de vender as árvores de tamanho e valor comercial imediato por preço de banana, precisa derrubar aproximadamente quatro hectares de floresta por ano, destruindo nesse processo um enorme volume de biodiversidade com valor potencial, presente e futuro, somente para
atender as necessidades básicas de subsistência. Quando esgotados os recursos florestais, resta ao colono trilhar o caminho inverso da reforma agrária, vendendo a terra de volta ao grande proprietário, ou abandonando a sua área, seguindo para novas regiões de fronteira a fim de repetir o ciclo vicioso. Todo o processo também abre espaço para a marginalidade, como a grilagem e a invasão de terras, a exploração ilegal de madeira,
dentre outras.
A abundância de madeira possibilita a extração apenas dos exemplares de maior diâmetro e de valor comercial imediato. O Brasil possui uma das legislações ambientais mais completas do planeta, mas, embora os impactos primários da exploração seletiva de madeiras sejam pequenos, a presença da economia madeireira nas regiões de fronteira, atraída com a abertura das estradas e a implantação dos grandes projetos hidrelétricos e minerais, de fato, continua a contribuir para o desflorestamento. Mas são os impactos secundários da colonização espontânea associados ao desmatamento total e à agricultura de corte e queima, temperados com uma boa dose de omissão e incapacidade do governo, que comprometem a ecologia da região no presente e futuro.
Nelson Tembra, engenheiro agrônomo e consultor ambiental
Links:
Pará ameaçado de perder licença ambiental
http://200.242.252.70/oliberal/arquivo/noticia/painel/n15022004default1.asp,
Engenheiro formaliza denúncia ao MP
http://www.portalorm.com.br/oliberal/interna/default.asp?codigo=19211&modulo=250,
Projeto Bauxita de Paragominas
http://www.portalorm.com.br/oliberal/interna/default.asp?codigo=19599&modulo=269
Os Índios Xikrin e a CVRD
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3434
http://www.amazonia.org.br/opiniao/artigo_detail.cfm?id=228762
Parauapebas: entre o céu e o inferno
http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=831
Quilombolas querem indenização da vale
http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13439
Quilombolas de Mojú denunciam impactos da CVRD
http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1320
http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=1335
Quilombolas do território do Jambuaçu/PA conquistam direitos
http://www.cedefes.org.br/new/index.php?conteudo=materias/index&secao=3&tema=31&materia=3419&email=enviado
Vale financia e racha Igreja Católica
http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=926
CUT traça caminhos do alumínio
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=16692
População questiona modelo de desenvolvimento
http://www.agenciaamazonia.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1041&Itemid=51
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