Desde a década de noventa, com o encerramento das experiências socialistas monitoradas pela União Soviética, que deixou de existir a partir da queda do muro de Berlin (1989) o capitalismo tratou de reconfigurar-se, abandonando a socialdemocracia e abraçando com fervor e furor sua versão neoliberal, antidemocrática, que prega o estado-mínimo e exalta as iniciativas empresariais em favor de um novo processo de acumulação do capital. Desde então assistimos, nas últimas três décadas, praticamente em todos os continentes, um enorme processo de transformação socioeconômica em favor de uma maior concentração do capital tendo o capitalismo financeiro e as instituições bancárias como os grandes gerentes da vida social em praticamente todos os seus aspectos.
Estas mudanças nas formas básicas de interação dos humanos nas sociedades capitalistas, agora dominadas pelos interesses do capital financeiro tout court, trouxeram necessidades novas de reorganização social com tudo o que isso possa significar. Desde a criação de novas ou a adaptação das antigas narrativas de sentido vivenciadas pelas respectivas populações em seus enquadramentos históricos peculiares até a negação de realidades culturais e materiais até então inquestionáveis, substituídas agora por versões mitológicas de há muito superadas pela ciência.
Nesta edição de Tempo & Presença reunimos um conjunto de artigos que resultaram de um encontro promovido por FEACT Brasil*, no ano passado em Belo Horizonte, MG que tratou de compreender e oferecer às igrejas-membro e demais organismos filiados uma perspectiva sólida do que se está a viver na atual conjuntura tenebrosa por que passa o mundo de modo geral e nosso país de forma particular.
Um tema fundamental trazido à baila pelos novos governantes, justamente porque vem sendo brandido há tempos pelos setores mais conservadores da sociedade e das igrejas que os apoiam, é o que se refere a tal de “ideologia de gênero”. Num artigo denso, fruto de uma pesquisa primorosa o Dr. Rogério Diniz Junqueira, nos apresenta uma detalhada descrição do que vem a ser essa ideologia exclusivista, nascida nos setores mais conservadores do Catolicismo, mas que ganha forte apoio dos setores fundamentalistas do Protestantismo, que se levanta contra as minorias e particularmente, contra a população LGBTI, instilando o ódio e demonizando-as assim como aos cultos afro-brasileiros e outras manifestações religiosas.
Como parte desse processo de conflagração da sociedade em aras de promover a uniformização de visões, ideias e perspectivas políticas preconizadas pelos interesses do mercado de consumo duas autoras nos conduzem na reflexão sobre duas temáticas de grande atualidade. A primeira, Profª. Alessandra Farias Pereira disserta sobre a violência contra os lutadores e lutadoras do povo na promoção dos direitos humanos para todos e a segunda, Profª Lidia Maria de Lima discute a questão da Laicidade e sua imensa importância na sociedade atual.
Na sequência, dois textos de natureza teológica e bíblica voltados direta e indiretamente para os temas até aqui tratados completam com pertinência esta edição da Tempo & Presença. No primeiro caso a teóloga e mestra em Ciência da Religião, Pa. Romi Márcia Bencke, Secretária Geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), nos oferece um texto crítico sobre as carências das teologias com que convivemos que não chegam a morder o nervo exposto das injustiças e desumanidades que nos habitam, impedindo todo um povo de ser herético das mitologias, narrativas, estruturas religiosas, valores e formas de organização social e de sobre-exploração do trabalho a que estamos jungidos desde que surgimos no mundo como nação.
Por seu lado o biblista Edmilson Schinelo nos apresenta um amplo estudo sobre o movimento profético do Antigo Testamento, mostrando suas limitações derivadas das próprias situações-limite por eles(as) vividas e as saídas possíveis por eles(elas) encontradas. Como então, a profecia sempre esteve ameaçada! Faz isto numa perspectiva de comparação com as limitações experimentadas pelos nossos profetas hodiernos que à semelhança dos antigos procuram demonstrar a presença do Sagrado nas menores e (supostamente) insignificantes situações críticas vivenciadas pelos “pequeninos” de que nos fala Jesus.
Desejamos que nossos leitores e leitoras possam usufruir destes textos e terem suas visões de nosso tempo enriquecidas por estas importantes contribuições.
Zwinglio Dias - Editor
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(*) FEACT Aliança Brasil – FE: Forum Ecumênico ACT (Acting Churches Together- Igrejas Atuando Juntas) (Aliança de Igrejas e Movimentos Ecumênicos em nível nacional e internacional).