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HERESIAS DA PRESENTE CONJUNTURA SOCIOPOLÍTICA E CULTURAL
Ano 2019 - Nº 32
Junho de 2019
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Notas para uma teologia herética
Por: Pa. Romi Márcia Bencke

Talvez uma das tarefas atuais da teologia ou das teologias seja a de desenterrar cacos de centenas ou até de milhares de anos de idade, a fim de usá-los nas fundações de nossa própria existência e dos lugares que nos moldam. Esses fragmentos enterrados e esquecidos podem construir uma nova imagem da realidade e mudar a percepção das nossas relações, lembrando-nos de nossa própria fragilidade.

Boris Gunjevic (O sofrimento de Deus: inversões do apocalipse)  

 

Algumas formas de falar sobre Deus no Brasil

No Brasil, o discurso sobre Deus tem assumido os mais diferentes lugares, conteúdos e motivações. Tais discursos estão presentes, por exemplo, nas diferentes e inusitadas formas de relações entre alguns grupos cristãos evangélicos e traficantes. Não é incomum, nestes casos, a oração por proteção e livramento do mal, além de, quando a graça for alcançada, o financiamento, por parte de traficantes, de cultos de ação de graças ou a pintura de muros e outdoors com mensagens bíblicas[1]. Em algumas situações, ocorrem também uma espécie de “limpeza de sagrados”, quando se expulsam Casas de tradições de matriz africana de seus territórios, não importando se a existência destas Casas em determinado território seja anterior à chegada desta ou daquela Igreja. O importante é que uma vez “ganho” o território para Jesus, nada do que é associado ao mal pode permanecer neste lugar.

Deus também não está ausente das campanhas políticas eleitorais. O Brasil é emblemático quando o assunto é a relação entre Deus e política representativa. No Congresso Nacional, Deus está representado (mesmo que talvez sem desejar) por bancadas religiosas por vezes bem conservadoras. Mesmo que tais representações pareçam anacrônicas em um país que tem a laicidade com um dos princípios, boa parte das políticas de direitos humanos fica refém dos senhores e senhoras que falam em nome de Deus no Congresso Nacional. Tais se autoentitulam os guardiões por excelência do que é, ou não, permitido por Deus; pelo menos é assim que eles dizem se orientar. O Brasil tem, no Congresso Nacional, versões atualizadas e revistas de “Torquemadas[2]” dispostos a agirem sempre contra mulheres, indígenas, defensores e defensoras de direitos humanos, militantes pela reforma agrária, afro-brasileiros, LGBTTQIs, militantes pela justiça ambiental. As condenações, os martírios inquisitoriais e as mortes continuam sendo o resultado visível destes Torquemadas modernos, que se dedicam, por exemplo, ao combate à “ideologia de gênero” (mesmo que ninguém consiga explicar o que seja isso), à diversidade religiosa e,…pasmem, ao comunismo. São os porta-vozes de uma teologia do domínio, para a qual, diabo não se esconde nos detalhes, mas está em toda a parte e precisa ser combatido e exterminado.

Mas Weber oferece muitos caminhos para a compreensão da relação entre religião e economia. Entretanto, é necessário aprofundar a relação entre Teologia da Prosperidade e neoliberalismo. A graça de Deus, em tal contexto, é materializada no aumento da capacidade do fiel consumir. Os bens materiais são os indicadores por excelência do quanto a pessoa é capaz de acreditar em Deus. Muito se exalta a liberdade humana e o quanto ela é valiosa. Entretanto, a liberdade conferida pela graça de Deus está cada vez mais confinada a uma liberdade do mercado.

 

Pelo menos desde a queda do Muro de Berlim e, posteriormente, com o fim da União Soviética, a ideia de um capitalismo de promoção de estado de bem-estar social, que garantia uma aparente distribuição de renda, não fez mais sentido. A necessidade de se criar estratégias para a difusão de um capitalismo socialmente pacificado e democrático foi superada.

 

Entretanto, este capitalismo onipresente apresenta suas contradições.  A primeira delas é que não há espaço neste capitalismo para a democracia. A crise de narrativa capitalista necessita de Deus para se afirmar e se impor. Vive-se uma espécie de reedição moderna das lutas travadas no processo de formação das tradições religiosas monoteístas com as politeístas. Na luta travada entre a exclusividade e oripresença do capitalismo e a existência de múltiplas formas de crer em Deus, novas fogueiras são acessas, nelas são queimados os novos hereges. A experiência de fé revelada por um Deus que não nega a diversidade, o diálogo, o encontro e o cuidado com a criação, torna-se uma experiência de fé herética, que precisa ser combatida e eliminada, ajustada às regras, doutrinas e dogmas.

 

Como fica a teologia?

Se o falar sobre Deus tem ocupado tantos e diferentes espaços na sociedade, na política e na economia, isso não significa que a(s) Teologia(s), enquanto instrumento(s) hermenêutico(s) que contribuem para refletir sobre as diferentes experiências de Deus, tenham tido a mesma capacidade de incidência tanto nas igrejas quanto na sociedade. As teologias têm sido pouco capazes de fortalecer e reafirmar virtudes teológicas da fé, entre as quais a esperança, a igualdade e a comunhão integral entre seres humanos e a criação.

A sensação que se tem é que tem faltado força e criatividade para que a teologia trabalhe os fragmentos das cerâmicas antigas, porém valiosas, para criar, a partir das  Escrituras, um mosaico esplêndido do que é a humanidade e suas complexidades, que poderiam contribuir para entender esta humanidade.

Suspeita-se que as teologias atuais tenham se conformado com o descarte das experiências hermenêuticas que procuraram olhar para os fragmentos antigos da fé para traçar caminhos criativos e ousados de profecia e testemunho. As garras autoritárias das teologias que se rendem e estão a serviço do Deus monoteísta do capital expurgaram as teologias ousadas e nós aceitamos com pouca resistência. Foi e tem sido assim com as teologias latinoamericanas, da libertação, feminista, entre outras.

Será que, todavia, se tem a coragem para buscar, encontrar e oferecer recursos e ferramentas encarnacionais que possibilitariam a mobilização social e comunitária capaz de promover processos de transformação do mundo e de apontar luzes sobre o atual momento crítico vivido pela humanidade?

Responder essa pergunta urge, uma vez que o planeta agoniza.

A impressão que se tem é que a teologia foi se rendendo e se prendendo nos muros das academias, nos seminários e faculdades de teologia. A teologia tem sido moldada aos interesses de grupos eclesiais e políticos dos mais diversos. A teologia perdeu sua liberdade de ser herética no sentido de reinterpretar a tradição religiosa, realizar as críticas às hierarquias sociais, eclesiais, denunciar a corrupção clerical e a exploração econômica da sociedade.

Inicia-se um século com muita religião e pouca liberdade ou heresia teológica.

Muitas das narrativas religiosas em evidência defendem a ideia de que tudo é permitido para aqueles que se referem a Deus de maneira direta e que se auto-entitulam instrumentos da vontade de Deus.

Como instrumentos da vontade de um Deus autoritário e negador da diversidade, cabe-lhes a tarefa de comprimir uma missão, que lhes dá a permissão para aniquilar o outro, humilhar e matar, se for preciso.

A religião oferece uma causa maior em um período em que se carece de utopias. No entanto, estas causas, muitas vezes, são incoerentes com o Evangelho, entre elas a da defesa da propriedade privada, do exclusivismo cristão, de argumentos doutrinais que negam o cuidado da Criação.

Assim como em séculos anteriores, o traçado geopolítico do mundo está sendo redesenhado com uma forte presença e instrumentalização da religião. Observando o cristianismo, em alguns momentos, ele tem sido mais o ópio do povo do que fermento na massa.

No Brasil, a instrumentalização do cristianismo tem sido um instrumento eficaz para as disputas territoriais do agronegócio e da mineração; algumas vezes também tem sido eficaz para o combate aos direitos humanos e das diversidades.

A interferência mínima do Estado na vida das pessoas fomenta a maior influência religiosa em suas vidas privadas. Como nota Boaventura de Souza Santos (2013, p. 66), grupos cristãos fundamentalistas identificam a sociedade moderna como a sua grande inimiga, uma vez que liberalizou a família, a educação e os costumes. Isso representou, na visão desses grupos, uma traição aos valores cristãos. Tais grupos preconizam o “reenvio para o domínio privado de questões que os movimentos de emancipação, como o de mulheres e LGBTTQIs, remetem para o espaço público”. (BOAVENTURA, 2013, p. 66).

Nos Estados Unidos, como segue observando Boaventura (2013, p. 66), esses grupos cristãos, formados por organizações como Maioria Moral, a Voz Cristã e a Mesa Redonda Religiosa, reivindicam “simultaneamente, a cristianização das estruturas do Estado, como as da educação”. Para eles, o retorno da “ordem perdida” passa pela menor intervenção do Estado na vida privada, por uma articulação entre a ética cristã da responsabilidade e a economia de mercado.

No Brasil, não tem sido diferente. Em 2018, acompanhamos um processo eleitoral em que Deus serviu de slogan político. A Bíblia esteve colocada ao lado da Constituição Federal no pronunciamento do presidente eleito. A frase “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8.32) está na ordem do dia da política brasileira. Ministros e ministras falam diretamente com Deus e se dizem seus porta-vozes. Precisa-se de heresias para o enfrentamento destes que se autointitulam porta-vozes de Deus.

Não se pode esquecer que o crescimento de uma sociedade de mercado é a causa fundamental da promoção das forças desintegradoras que afetam a vida das pessoas. Essas forças geram inseguranças e incertezas, que são terrenos férteis para o florescimento de fundamentalismos e conservadorismos.

O neoliberalismo, ao identificar estas forças desintegradoras, instrumentaliza os fragmentos antigos das tradições de forma fundamentalista. A religião torna-se violenta, impositiva de normas de conduta e não dialogal.

Este contexto de aumento dos fundamentalismos, de fascismos e de conservadorismos apresenta o desafio de uma teologia herética, que denuncie a simbiose entre o fundamentalismo financeiro e o fundamentalismo religioso.

Precisa-se de um teologia herética que não aceite o fundamentalismo moral que reivindica o reenvio para o domínio privado das questões que movimentos emancipatórios trouxeram para o espaço público.

Precisa-se de uma teologia herética que denuncie e não aceite a liberdade do capital financeiro em defender os interesses e desejos das empresas multinacionais na exploração de minério, de água, de petróleo em detrimento do sacrifício das pessoas e do Planeta.

Por fim, precisa-se de uma teologia herética para resgatar que a “Revelação” significa que Deus assumiu para si o risco de colocar tudo em risco. Revelando-se, Deus “engajou-se existencialmente” e por completo tornando-se parte da criação, expondo-se à completa contingência da existência.

Bibliografia

BOAVENTURA, de Souza Santos. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. São Paulo: Ed. Cortez, 2013.

CUNHA, Christina Vital da. Oração de Traficante. Uma etnografia. 1. Ed. Rio de Janeiro: Graramond Universitária, 2015.

GIDDENS, Anthony. Admirável Mundo Novo. O novo contexto da política. Caderno CRH, Salvador, jul/dez, 1994; P. 15.

GUNJEVIC, Boris; ZiZEK, Slavoj. O Sofrimento de Deus: inversões do Apocalipse. São Paulo: Ed. Autêntica – ebook.

HABERMAS, Jürgen. Mundo de la vida, política y religión. Madrid: Editorial Trotta, 2012.

SHARYATI, Ali. In. HABERMAS, Jürgen, TAYLOR, Charles; BUTLER, Judith; WEST, Cornel. El poder de la religion en la esfera pública. Madrid: Editorial Trotta, 2011.

 

[1] Cunha, Christina Vital da. Oração de Traficante, p. 364.

[2] Referência a Tomás de Torquemada, também conhecido como “O Grande Inquisidor”,atuou na Inquisição Espanhola no século XV dos reinos de Castela e Aragão.