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HERESIAS DA PRESENTE CONJUNTURA SOCIOPOLÍTICA E CULTURAL
Ano 2019 - Nº 32
Junho de 2019
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Ideologia de Gênero: uma ofensiva reacionária transnacional
Por: Rogério Diniz Junqueira
Data: 01/10/2018

(...) Isto comporta ao mesmo tempo a defesa do direito dos pais à educação moral e religiosa dos próprios filhos. E a este propósito, gostaria de manifestar a minha rejeição de qualquer tipo de experimentação educativa com as crianças. Com as crianças e os jovens não se pode fazer experimentos. Elas não são cobaias de laboratório! Os horrores da manipulação educativa que vivemos nas grandes ditaduras genocidas do século XX não desapareceram; conservam a sua actualidade sob outras aparências e propostas que, com a pretensão de modernidade, impelem as crianças e os jovens a percorrer o caminho ditatorial do «pensamento único». Há pouco mais de uma semana, um grande educador disse-me: «Às vezes não sabemos se com estes programas — referindo-se a projectos concretos de educação — mandamos uma criança para a escola ou para um campo de reeducação». (Papa Francisco. Discurso a uma delegação do Departamento Internacional Católico para a Infância, Cidade do Vaticano, 11 abril de 2014).

 

Nos últimos anos, em dezenas de países de todos os continentes, presencia-se a eclosão de um ativismo religioso reacionário que encontrou no “gênero” o principal mote em suas mobilizações. “Gênero”, “ideologia de gênero”, “teoria do gênero” ou expressões afins são brandidos em tons alarmistas, conclamando a sociedade para enfrentar um inimigo imaginário comum. E, em nome da luta contra ele, se empreendem ações políticas voltadas a reafirmar e impor valores morais tradicionais e pontos doutrinais cristãos dogmáticos e intransigentes.

Com efeito, por meio de uma tematização acerca dos “riscos” da infiltração da perspectiva de gênero nas instituições, na política e na vida cotidiana, tal ofensiva visa, além de recuperar espaço à Igreja em sociedades envolvidas em distintos processos de secularização, conter o avanço de políticas voltadas a garantir ou ampliar os direitos humanos de mulheres, pessoas não-heterossexuais e outros dissidentes da ordem sexual e de gênero. Para tanto, tais cruzados morais investem maciçamente na (re)naturalização das concepções de família, maternidade, parentesco, (hetero)sexualidade, diferença sexual. Deste modo, procuram também promover a restauração ou, mais propriamente, o aggiornamento do estatuto da ordem sexual tradicional e reforçar as disposições relativas às normas de gênero, à heterossexualidade obrigatória e à heteronormatividade.

Os interessados no assunto são concordes em afirmar que o nebuloso sintagma “teoria/ideologia de gênero”, com suas variações, é uma invenção católica que emergiu sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e de conferências episcopais, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000. Nos anos seguintes, o sintagma espraiou-se na forma de um poderoso slogan, incendiando a arena política de dezenas de países, ao catalisar manifestações virulentas contra políticas sociais, reformas jurídicas e ações pedagógicas voltadas a promover os direitos sexuais[1] e punir suas violações, enfrentar preconceitos, prevenir violências e combater discriminações (hetero)sexistas. Com efeito, evidencia-se na atuação desses missionários da família natural a intencionalidade de, por exemplo, opor-se a ações voltadas a legalizar o aborto, criminalizar a homotransfobia, legalizar o casamento igualitário, reconhecer a homoparentalidade, estender o direito de adoção a genitores de mesmo sexo, bem como políticas educacionais de igualdade sexual e de gênero e de promoção do reconhecimento da diferença/diversidade sexual e de gênero (CARNAC, 2014; GARBAGNOLI, 2014; HUSSON, 2014a, 2014b; PATERNOTTE, 2016; ROSADO-NUNES, 2015).

Antes de prosseguir, vale sublinhar que “teoria de gênero” não é sinônimo de “Estudos de Gênero”. “Teoria”, ali, aparece sempre no singular e, frequentemente, é substituída por “ideologia” – termos curiosamente tratados como sinônimos nos documentos da Cúria Romana dedicados ao tema[2]. Assim, nos sítios discursivos vaticanos, bem como em outros cenários em que se polemizam questões de gênero a partir desses pressupostos, não há diferença entre “teoria de gênero” e “ideologia de gênero”. São sintagmas fabricados na forma de rótulos políticos. E enquanto rótulos, tendem a funcionar como estandartes, sinais de adesão, pontos de referência na construção e na atuação de grupos de mobilização.

Não por acaso, o emprego de um, de outro ou de suas contínuas metamorfoses parece obedecer unicamente às avaliações acerca de sua eficácia política, calculada a partir de técnicas de marketing. Assim, desde meados anos 1990, ao longo de um esforço criativo para encontrar as combinações que melhor funcionassem no espaço mediático e político, foram numerosas as formas de declinação desses sintagmas emersas dos documentos vaticanos e das conferências episcopais: teoria do gender, ideologia de gender, ideologia da ausência de sexo, teoria subjetiva do gênero sexual, teoria do gênero queer, teoria do gênero radical, teoria feminista do gênero, teoria feminista radical, teoria feminista violenta, ideologia ultra feminista do gender, ideologia do lobby gay, ditadura do gender, genderismo, ou, simplesmente, gender. Tais sintagmas foram progressivamente se descolando dos contextos vaticanos e passaram a animar ações midiaticamente muito eficazes, para enfim se legitimar como categorias políticas, passando a figurar em documentos de Estado e estar presentes em pronunciamentos de dirigentes políticos, inclusive com ares de aparente laicidade.

É preciso sublinhar que tais sintagmas não são conceitos científicos: são grotescas formulações paródicas ou até fantasmáticas que, porém, atuam como poderosos dispositivos retóricos reacionários, eficazes na promoção de polêmicas, ridicularizações, intimidações e ameaças contra atores e instituições inclinados a implementar legislações, políticas sociais ou pedagógicas que pareçam contrariar os interesses de grupos e instituições que se colocam como arautos da família e dos valores morais e religiosos tradicionais. Nesse empenho reacionário, investe-se em um clima de pânico moral (COHEN, 1972, 2011) contra grupos social e sexualmente vulneráveis e marginalizados por meio do acionamento de variadas estratégias discursivas, artifícios retóricos, repertórios, redes de intertextualidade etc. Ao fazê-lo, incide-se em processos de construção de categorias de percepção e de classificação do mundo que podem estar relacionados a processos inscritos na longa duração.

Nada surpreendentemente, para seus formuladores, pouco poderá importar se o rótulo-slogan “teoria/ideologia de gênero” se refere ou não a algo concretamente verificável ou se suas teses podem resistir a um confronto acadêmico. Pouco importa se se trata ou não de um rótulo sem referente, uma espécie de formulação fantasmagórica. Como se sabe, tal como em um rito de instituição, aliada a um cenário particular favorável, uma eficiente estratégia discursiva pode atingir uma parcela de convicção e adesão suficiente para, socialmente, fazer criar e fazer perceber aquilo que enuncia.

Ao lado disso, é importante reter que os defensores do emprego polêmico do sintagma em questão, em vez de debater com os seus adversários, preferem ridicularizá-los e estigmatizá-los como: destruidores da família, familiofóbicos, homossexualistas, gayzistas, feminazis, pedófilos, heterofóbicos, cristofóbicos, etc. Não por acaso, entre cruzados antigênero é recorrente o apelo à produção e disseminação de notícias e relatos falsos, escandalísticos e caluniosos. Os repertórios variam em torno dos mesmos temas: docentes da educação infantil obrigam os meninos a vestir saias e a brincar de bonecas, espancam os alunos com genitais de pelúcia, ministram aulas práticas de masturbação, difundem pornografia, defendem a pedofilia, a zoofilia e a poligamia; os alunos, chocados, desmaiam; os professores “dissidentes” são ameaçados e processados; pais que se opõem à doutrinação do gender nas escolas são levados à prisão, etc. (CAMPOY, 2016; CASELLATO, 2015; PELLAI, 2015).

As formulações teóricas dos adversários devem ser capturadas, descontextualizadas, homogeneizadas, esvaziadas, reduzidas a uma teoria, distorcidas, caricaturadas e embutidas de elementos grotescos para serem, finalmente, denunciadas e repelidas. Os inesgotáveis debates, interrogações e problematizações, bem como os instrumentos e os resultados produzidos pelos estudos científicos e acadêmicos há pouco mencionados são objetivados como uma perigosa, enganosa e ilegítima “teoria”/“ideologia”, que, por meio de “manipulações linguísticas”, produziria a “colonização da natureza humana”. Em tal cenário, não há por parte desses alarmados cruzados nenhum interesse pelo confronto acadêmico. O seu público alvo, os atores cujas mentes e corações eles anseiam alcançar, seduzir e arrancar adesão, são principalmente gestores públicos, parlamentares, juristas, jornalistas, dirigentes escolares, eleitores.

Em tais discursos polêmicos, a “teoria/ideologia do gênero” é frequentemente denunciada como uma forma de “doutrinação neototalitária”, de raiz marxista e ateia, e ainda mais opressiva e perigosa do que o marxismo, camuflada em discursos sobre emancipação, liberdade e igualdade. Seria, segundo tal entendimento, uma ideologia que serve de referência à ONU. Não por acaso, nos discursos de tais missionários, é frequente o emprego do termo gender, em inglês e itálico. O propósito é o de promover um estranhamento e, por conseguinte, o rechaço de um conteúdo, objetivado como uma “propaganda”, uma imposição do imperialismo cultural dos Estados Unidos da América, da ONU, da União Europeia e das agências e corporações transnacionais dominadas por “lobbies gays”, feministas, que juntamente com defensores do multiculturalismo e do politicamente correto, extremistas ambientalistas, neomarxistas e outros pós-modernos, garantiriam a hegemonia daquela “ideologia” naqueles ambientes peculiares. Gender, de tão alienígena e inapropriado, nem encontraria exata tradução (CARNAC, 2014; FAVIER, 2012; GARBAGNOLI, 2014).

 

[1] Para uma reflexão sobre a emergência e os debates em torno da noção de direitos sexuais, ver: Corrêa (2004, 2006), Petchesky (1999), Rios (2007).

[2] Extrapolaria os propósitos deste artigo ingressar nas complexidades das discussões sobre o conceito ideologia. Cabe observar que, antes que eclodissem as polêmicas e os enfrentamos que aqui se procura problematizar, o conceito sociológico “ideologia de gênero” já tinha sido elaborado, com o intuito de permitir identificar, compreender e criticar os processos de naturalização das relações de gênero, a subordinação das mulheres, a assimetria de poder e de acesso aos recursos por parte das mulheres em relação aos homens. De acordo com tal entendimento, são manifestações de ideologias de gênero o machismo, o sexismo, a misoginia, a homofobia, assim como esta polêmica empreendida pelo Vaticano contra o “gender” e a “teoria/ideologia do gender”.



Anexo:
Ideologia-de-Genero-KN_out_2018.pdf