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POLÍTICA, RELIGIOSIDADE E VIOLÊNCIA
Ano 11 - Nº 31
Outubro de 2016
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Democracia e Espiritualidade em tempos de cativeiro neoliberal
Por: Zwinglio M. Dias
Data: 31/10/2016

                                                                     Zwinglio M. Dias*
(Para a irmã e companheira Rosa Marga Rothe, que se encantou,
deixando uma  marca indelével de amor e dedicação ao povo da
Amazônia!)

 

Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não épossível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado. Prometemos uma vida de esbanjamento e no fundo constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais. Ou pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.”  (José ‘Pepe’ Mujica)

O que vemos hoje não são guerras de religião ou de civilização. Estamos diante de algo da ordem do assassinato e estes assassinatos têm relação estreita com as paixões niilistas de uma era que esqueceu justamente os grandes valores do humanismo, valores estes que não são específicos do Ocidente, mas sim compartilhados por muitas culturas e civilizações.” (Roland Gori)
Ecumenismo... ”é mediar trabalho em unidade e na promoção de diálogos entre as religiões. Em um esforço conjunto para além da tolerância, sem proselitismos, mas na proposta de fraternidade, que una forças para denunciar as desigualdades sociais, a discriminação, a exclusão, o sexismo, o machismo, a homofobia ou quaisquer outros tipos de violências que possam impedir o abraço, o afeto, a ternura em favor da humanidade.” (Valeria Cristina Vilhena) 

Introdução

Que minhas primeiras palavras sejam de agradecimento pelo honroso convite que me foi endereçado pelo Fórum Ecumênico de ACT Brasil (FEACT-Brasil), por intermédio da Pastora Romi Bencke, para partilhar algumas inconclusas reflexões sobre o trágico momento histórico que vivenciamos em nossas sociedades, em nossas instituições religiosas e no conjunto de organismos da sociedade civil que se esforçam para impedir que a barbárie do paradigma capitalista, em sua versão neoliberal, derrote de vez os sonhos de felicidade e bem estar dos humanos.
É minha intenção apresentar, em primeiro lugar, ainda que de forma bastante simplificada, alguns aspectos da realidade socioeconômica, política e cultural, que conformam o cenário mundial e determinam, direta ou indiretamente, os acontecimentos que dão forma à nossa vivência cotidiana.  Estabelecido o contexto histórico em que nos encontramos procurarei apresentar alguns elementos analíticos que nos permitam perceber algumas das causas que subjazem à formidável movimentação religiosa que caracteriza a nossa época. Posto este cenário, que nos toca de perto, pretendo levantar algumas pistas que, talvez, nos auxiliem a encaminhar linhas de ação mais conformes e eficientes em relação às tarefas requeridas pela vocação a que nos sentimos chamados como igrejas, comunidades religiosas outras e organismos de cooperação, irmanados no propósito maior de ampliar os espaços democráticos em nossa sociedade e garantir a possibilidade de vida abundante para todos.

Os Desafios do Contexto Atual

Ao analisar   as  razões  que  deram  origem à, em muitos sentidos,  caótica situação   contemporânea  que  experimentamos, o geógrafo Milton Santos, numa penetrante descrição  das condições da sociedade atual, chama a atenção para o fato de que “nos últimos cinco séculos de desenvolvimento e expansão do capitalismo, a concorrência se estabelece como regra. Agora, a competitividade toma o lugar da competição. A concorrência atual não é mais a velha concorrência, sobretudo porque chega eliminando a compaixão. A competitividade tem a guerra como norma. Há, a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar o seu lugar.” (...) ”Ora, é isso também que justifica os individualismos arrebatadores e possessivos: individualismos na vida econômica (a maneira como as empresas batalham umas com as outras); individualismos na ordem da política (a maneira como os partidos frequentemente abandonam a ideia de política para se tornarem simplesmente eleitoreiros); individualismos na ordem do território (as cidades brigando umas com as outras, as regiões reclamando soluções particularistas); também na ordem social e individual são individualismos arrebatadores e possessivos, que acabam por constituir o outro como coisa. Comportamentos que justificam todo desrespeito às pessoas são, afinal, uma das bases da sociabilidade atual.” (Santos: 2001, 47).
Por outro lado, talvez mais do que em outros períodos da experiência humana, pelo menos no interior da chamada cultura ocidental, nunca foi tão grande a busca pelo sentido da vida, ou seja, a necessidade, profundamente experimentada, de uma explicação para a condição de impermanência que nos caracteriza como humanos, e que relutamos em aceitar. Esta situação que, remotamente, tem sua origem na instituição do patriarcalismo e, mais recentemente, na operacionalização dos supostos valores gerados a partir da revolução industrial e tecnológica, do século XVII para cá, que deram forma à civilização moderna, está dominada por uma racionalidade que não consegue satisfazer as carências de sentido de transcendência dos humanos. Como assinala certo autor “a civilização que construímos na esperança de que viesse a constituir para todos nós um lugar de bem-aventurança, até hoje só conseguiu mostrar a sua impossibilidade. A libertação dos humanos, a fraternidade universal, a paz comum, a felicidade, aparecem cada vez mais como frutos proibidos ao paladar humano. São bens dos quais a humanidade como um todo está infinitamente longe de poder desfrutar.”(Nogueira: 1978, 13). Os humanos, hoje, são seres solitários, dispersos no anonimato dos imensos conglomerados urbanos, desenraizados e sós, marcados pela incerteza, a insegurança e a falta de sentido para sua vidas.
O filósofo italiano U. Galimberti atribui esta situação de vazio, de solidão e de abandono à totalização da linguagem da ciência e da técnica que, ao produzir modificações irreversíveis na relação humanos-natureza, mas sem assumir nenhum tipo de responsabilidade com relação ao significado da vida humana, por ser em si mesma umalinguagem parcial, porque delimitada pelo método e pelo objeto, plasmou uma civilização tecnológica sem nenhuma visão de mundo e nenhuma consideração pelo humano a não ser em termos de uma perspectiva utilitarista. Com isso a ética perdeu sua força humanizadora como norma determinante e como fundamento de certezas coletivas.
O psicanalista francês Roland Gori refletindo sobre os ataques terroristas a seu país afirma: “Fomos tão longe no desencantamento do mundo e na dessacralização do universo, das coisas e dos seres vivos ao nosso redor, que enfrentamos agora a nudez de uma razão puramente instrumental. O terrorismo também cai nesta racionalidade instrumental, uma vez que ele está disposto a queimar tudo a sua volta para alimentar o combustível do terror. Eles pertencem à mesma civilização, especialmente no que diz respeito a certa lucidez feroz na concepção do mundo atual. Esta perda de sentido da existência, de direção e de valores. Esta perda de moral e de inteligência crítica do mundo é o que alimenta tanto a guerra de todos contra todos no mercado da competitividade e da flexibilidade, o que destrói as proteções e promove o surgimento de uma revolução conservadora, pertence ao mesmo nicho cultural que a ascensão da extrema-direita, dos racismos, dos nacionalismos etc. Perdemos a razão de ter esperança.” (...)“A visão neoliberal do ser humano, a lógica da austeridade, a financeirização generalizada das atividades humanas têm criado esses monstros como o Estado Islâmico, a Frente Nacional (partido de direita na França) a extrema direita e o racismo na Europa. Temos de dar um basta ao neoliberalismo, devemos decretar a sua morte. Ele aumenta as desigualdades sociais e as divisões.”
O roteiro do caos
Reunindo informações político-econômicas de relevância num artigo breve, mas contundente, o jornalista ítalo-argentino, Roberto Savio, sintetiza o desenvolvimento da economia capitalista nos últimos 40 anos, sob a égide do neoliberalismo, que resultou no aprofundamento das desigualdades econômicas e sociais, responsáveis pelos terríveis e trágicos conflitos que marcam a vida do planeta na atualidade. Segundo este autor, na década de 1970 os países reunidos na ONU preocupados com o crescente distanciamento entre os países desenvolvidos e os em via de desenvolvimento, decidiram estabelecer condições para a emergência de uma Nova Ordem Internacional para reduzir as desigualdades, impulsionar o crescimento global e fazer da cooperação e da prevalência do Direito Internacional as bases para assegurar a paz e o entendimento entre todos. Para tal foi convocada uma reunião de chefes de Estados e governos mais importantes em Cancún, no México, em 1981, para elaborarem um plano de ação comum. Ronald Reagan e Margaret Thatcher fizeram de tudo para impedir que esta perspectiva de cooperação triunfasse. Segundo ambos, os países deveriam implementar políticas pragmáticas de acordo a seus interesses nacionais. O fracasso da proposta de cooperação teve como uma de suas consequências o enfraquecimento da ONU com a perda de sua capacidade de governança global. A instância que passou a assumir esta função foi o grupo dos sete países mais poderosos(o G7) que se dedicam, desde então, a defender seus interesses econômicos e geopolíticos em primeiro lugar. Segundo o autor, três outros acontecimentos ajudaram Reagan e Thatcher a mudar o rumo da história. Foram eles: a) a criação do Consenso de Washington, em 1989, conformado pelo Dpto.  do Tesouro dos EUA, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial que, juntos, decretaram que o mercado era o único motor das sociedades e que os Estados deveriam ser encolhidos ao máximo para não se tornarem obstáculos ao desenvolvimento  das economias. Os impactos das políticas de ajuste estrutural para a conformação do Estado Mínimo reduziram drasticamente o sistema público nos países do então chamado Terceiro Mundo; b) O segundo acontecimento, também em 1989, foi a queda do Muro de Berlin que decretou o fim das ideologias e o estabelecimento forçado da globalização neoliberal com a ideologia do pensamento único e liberando as empresas de toda e qualquer obrigação para com os Estados; c) O terceiro foi a derrubada paulatina das normas que regiam o setor financeiro, iniciada por Reagan entre 1981-1989 e completada por Bill Clinton entre 1903-2001, liberando os bancos para usarem os depósitos de clientes para a especulação. Livres de quaisquer peias os agentes financeiros embarcaram em todo tipo de aventuras. Atualmente para cada dólar produzido em bens e serviços são gerados 40 dólares em transações financeiras!
Segundo o autor o resultado disso é a base do horror que estamos vivenciando hoje. A ideia de que nessas novas condições o crescimento se daria em todos os quadrantes foi um fiasco total. Ao ponto de hoje tanto o Banco Mundial como o Fundo Monetário Internacional começarem a advogar que os Estados voltem a ser reguladores indispensáveis. A concentração capitalista tornou-se, então, obscena. Em 2010, 388 pessoas concentravam uma riqueza equivalente a 3,6 bilhões de dólares. Em 2014, essa proporção foi reduzida para 80 por 3.6 bilhões e em 2015, a 62! Esse processo de altíssima concentração do capital foi e é acompanhado de uma galopante e permanente onda de desemprego, atingindo principalmente a juventude em pleno coração do sistema, na Europa e na América do Norte! Assinala ainda o autor que o novo mundo criado por Reagan e Thatcher se baseou na afirmação da ganância e, numa sociedade gananciosa, os valores e as prioridades mudam. O resultado imediato foi a crise econômica de 2008, que provocou o surgimento de um novo grupo de verdadeiros cavaleiros do Apocalipse, para agravar ainda mais a trágica situação do planeta.
O primeiro cavaleiro descrito pelo autor foi o colapso do sistema bancário, em 2008, em virtude da especulação que atingiu níveis absurdos nos Estados Unidos através dos créditos hipotecários (parcialmente retratado no filme ‘O lobo de Wall Street’). Esta crise se expandiu para a Europa em 2009 com a queda dos títulos imobiliários como se viu na tragédia que asfixiou economicamente a Grécia, sem falar de Portugal e Espanha! A crise agravou a situação de desemprego em ambos os lados do Atlântico. A única medida acordada em favor do crescimento foi em favor do setor bancário, ao qual o Banco Central Europeu passou a destinar 80 bilhões de dólares mensais!   O segundo cavaleiro apontado pelo autor foram as intervenções armadas dos Estados Unidos no Iraque (e no Afeganistão) e dos países europeus na Líbia que derivou na onda de migração massiva que a Europa começou a receber a partir de 2012 e para a qual não estava preparada. De repente, as pessoas passaram a temer aquela maré humana que vinha e seu impacto no mercado de trabalho, na cultura, na região, etc. Assim surgiu mais um importante elemento de instalação do medo. O terceiro cavaleiro foi o surgimento do Estado Islâmico (Daesh), na Síria, em 2013, um dos legados da invasão norte-americana ao Iraque. O espetacular impacto do Estado Islâmico nos meios de comunicação e no público, a radicalização de muitos jovens europeus de origem árabe, geralmente marginalizados, acentuou o temor e foi um presente para o populismo, que agora é capaz de utilizar a xenofobia para mobilizar as cidadãs e cidadãos inseguros e descontentes.
Este roteiro da crise que nos assola internacionalmente é resultado, segundo nosso autor, do fato de que os países, depois da fracassada Cúpula de Cancún, em 1981, perderam a capacidade de pensar juntos. Com exceção de Reagan e Thatcher todos os demais líderes reunidos naquela ocasião “compartilhavam certos valores de justiça social, solidariedade, respeito pelo direito internacional, assim como a convicção de que as sociedades fortes eram a base da democracia.Tudo isso desapareceu. Os líderes políticos atuais, sem ideologias e subordinados às finanças, priorizam o debate administrativo sobre assuntos pontuais, sem contexto, onde é difícil distinguir entre a esquerda e a direita. Claramente, estamos num período de cobiça, de temor”... e de horror!”
A conjuntura brasileira
Sobre a conjuntura político-econômica que atravessamos em nosso país, vou me permitir apenas uma breve menção para relacioná-la à conjuntura mundial que acabo de descrever. Entendo que o documento produzido por FEACT “Carta sobre a situação política do Brasil”, publicado em 17 de maio, expressa uma análise circunstanciada da trágica situação que nos toca vivenciar. Atualmente já dispomos de um número expressivo de documentos, análises sociopolíticas e econômicas que indicam claramente que o golpe político-midiático-empresarial-jurídico e com forte apoio de um setor religioso dito “evangélico”, em curso, faz parte de um projeto de asfixia das pretensões de desenvolvimento independente dos interesses geoeconômicos do império norte-americano. Faz parte de uma nova forma de intervenção para impor, de forma definitiva, as premissas político-econômicas do neoliberalismo. O impeachment da presidente Dilma trouxe consequências nefastas para o conjunto da população brasileira e incluiu o Brasil, de vez, no conjunto de países submetidos aos interesses absolutos do capital internacional, comandado pelos Estados Unidos. Concluo com as palavras de Leonardo Boff: “Depois dessa primavera de democracia que tivemos após as ditaduras, estão saindo do armário os grupos de direita que representam a macroeconomia, o neoliberalismo, a hegemonia do neoliberalismo como acumulação privada, individualismo, desrespeito e esquecimento total da natureza e de seus bens e recursos limitados.  Então está voltando essa velha ideia, há um império e todos têm que se alinhar a ele, que são os Estados Unidos e os Estados europeus.”
Para a compreensão da presente conjuntura religiosa
Na Era do Espírito...
Em seu livro “O Futuro da Fé” o teólogo norte-americano Harvey Cox, classifica o desenvolvimento histórico do Cristianismo em três etapas desiguais em tamanho e diferenciadas em seus conteúdos teológicos, a saber: 1) A Era da Fé: do início com Jesus até  o século IV, quando o imperador Constantino decidiu assumir o Cristianismo como suporte ideológico de seu império; 2) A Era da Crença: que prevalece por mais ou menos 15 séculos, entrando em declínio com o Iluminismo, a Rev. Francesa, a secularização da Europa e os levantes anticoloniais do século XX; 3) Finalmente A Era do Espírito, na qual nos encontramos e que começa na segunda metade do século XX.
Ele descreve essas fases da seguinte maneira: a Era da Fé começou com Jesus e seus discípulos imediatos. O que unia os cristãos era a perseguição brutal e o compartilhamento do espírito vivo de Cristo numa fé em ascensão. Fé nesse momento significava esperança e confiança no surgimento de um novo tempo de liberdade, cura e compaixão. A Era da Crença teve início quando líderes eclesiais começaram a organizar programas de orientação para novos aderentes que não tinham conhecido a Jesus e nem seus discípulos.  A ênfase na crença começa a se fortalecer quando esses programas de formação vão se tornando mais complexos até virarem catecismos trocando a fé em Jesus por preceitos a respeito dele. Para o final do terceiro século uma elite dirigente começou a organizar listas de crenças que, no entanto, variavam muito de um lugar para outro. Mas as congregações ainda estavam unidas por um espírito comum.  Ainda não existia um credo comum. Uma ampla gama de teologias continuava a vicejar. Finalmente o imperador Teodósio estabeleceu o Cristianismo como religião oficial do império e isto deu início à degradação paulatina do Cristianismo, “de um movimento de fé cheio de energia ele se coagulou numa falange de crenças obrigatórias, lançando assim as bases para cada fundamentalismo cristão pelos séculos que viriam” (pg.17). O império tornou-se cristão e o Cristianismo tornou-se imperial. O Concílio de Nicéia, em 312, foi seu marco inicial. Seu epitáfio foi estabelecido, recentemente, quando a União Europeia, em 2005, recusou mencionar a palavra “cristã” em sua Constituição. Entramos há pouco na Era do Espírito, sugere Cox, numa época marcada por movimentos que acentuam a experiência espiritual, a esperança e o discipulado e que quase não dão importância à memória dos credos tradicionais e rejeitam as hierarquias. Mas esta expressão é muito controversa.  O florescimento da espiritualidade sempre esteve presente no interior das estruturas eclesiásticas.  Muitas vezes em oposição às crenças estabelecidas gerando assim um conflito sem fim entre o religioso institucionalizado (com seus credos, dogmas e ritos) e a vivência espiritual das pessoas.  Com o passar do tempo espiritualidade veio a significar o aspecto subjetivo da fé, distinto dos ensinamentos objetivos, isto é, dos credos, catecismos e as formulações teológicas sistemáticas ou dogmáticas.  Apesar da ambiguidade da expressão Cox a encontra adequada para explicitar a nova efervescência religiosa que passou a tomar conta do mundo a partir da segunda metade do século passado. Ele aponta três razões para isso: 1) trata-se de uma forma de protesto que reflete o descontentamento generalizado com a redução, particularmente do Cristianismo, a um pacote de proposições teológicas por parte das agremiações religiosas; 2) representa uma tentativa para expressar o temor, a maravilha e o encantamento dos humanos diante da complexidade da natureza, considerada essencial para a vida humana sem obrigá-los a caber em padrões eclesiásticos pré-fabricados; 3) reconhece as fronteiras cada vez mais porosas entre as diferentes tradições e, como o Cristianismo inicial, olha mais para o futuro do que para o passado. (pg.27)
De acordo com a socióloga francesa Danielle Hervieu-Léger “Religiões ‘à la carte’, religiosidade ‘flutuante’, crenças ‘relativas’, novas elaborações sincréticas: a religiosidade ‘vagante’ de que falava um dia J. Peguy, já está situada, em sua indeterminação específica, no centro de toda reflexão sobre a religião nas sociedades modernas.” Em sua pesquisa esta autora se ocupa da movimentação das religiões em função das transformações sociopolíticas que vivemos atualmente, como a globalização, o desenvolvimento dos meios de comunicação e das migrações que levam, forçosamente, à aproximação das diferentes tradições religiosas. Ela destaca a predominância do individualismo, a constituição de uma ‘religião do Eu’, fruto das transformações do capitalismo nesta sua fase neoliberal. O paradigma do consumo invade a dimensão do sentido da vida com ênfase na presentificação e abandono da memória herdada. Passado e futuro não interessam mais. Esses condicionantes sociais levam então, os indivíduos a um exercício permanente de bricolagem, de mistura e de fusão de  conceitos e valores religiosos que acaba instituindo um regime subjetivo de verdade, o que demonstra a crise de credibilidade dos sistemas religiosos tradicionais e a consequente emergência de novas formas de crenças.
Estamos diante de um processo de transformação do universo religioso muito mais complexo, que nada tem a ver com as antigas ideias iluministas que falavam do “fim da religião” ou com aquelas centradas na certeza do triunfo da razão, assustadas agora com o “retorno da religião”. O que vivenciamos, na verdade, nesta modernidade tardia que atravessamos é o fato de que, segundo Hervieu-Léger, ela “se reapropria do sonho de realização da autonomia criativa da humanidade, antes oferecido pela utopia religiosa, projetando e prometendo sob formas seculares diversas, um mundo de abundância e de paz, finalmente, realizado.” (pg.39) Acontece que em seu desenvolvimento e expansão a modernidade produz, ao mesmo tempo, “um universo de incertezas. A dinâmica de seu avanço implica que ela suscite continuamente sua própria crise e esse efeito de vazio social e cultural produzido pela mudança é sentido como uma ameaça pelos indivíduos e pelos grupos. Em certos períodos de profundas mutações como o que experimentamos atualmente, pode ocorrer uma inadequação permanente entre a utopia moderna e tal espaço esvaziado pelo processo de mudança”. “....Em tais períodos turbulentos, os sistemas religiosos tradicionais, reservatórios formidáveis do protesto simbólico contra o não-senso, readquirem, em formas novas, um grande poder de atração sobre os indivíduos e sobre a sociedade.” (pg.40) Ou seja, vivemos num período histórico de decomposição e recomposição dos universos religiosos no qual  indivíduos e grupos buscam respostas para a situação de vulnerabilidade psicológica e também de precariedade social, econômica e cultural para enfrentar os desafios de uma condição em que se sentem esmagados, pois não conseguem abarcar e superar as complexidades  de um mundo no qual perderam suas referências vitais. A partir de suas heranças culturais, suas carências mais sentidas e as exigências e valores impostos pela ideologia dominante na sociedade as pessoas vão dando forma a uma nova polifonia religiosa que as ajude a suportar os assombros da vida moderna...
A religião em movimento no Brasil e a reconfiguração de seu campo religioso
Nos últimos 50 anos o panorama religioso do Brasil passou por profundas e radicais transformações. Dentre os vários acontecimentos enumeramos alguns: assistimos ao surgimento e ao protagonismo político das Comunidades Eclesiais de Base e seu posterior arrefecimento; a emergência de entidades ecumênicas de serviço e o fortalecimento do diálogo entre algumas igrejas que levaram inclusive à formação do CONIC; ao mesmo tempo, porém, devemos registrar o estancamento do crescimento numérico da maioria das igrejas protestantes de missão e seu  enrijecimento fundamentalista; vimos a Igreja Católica fazer frente ao regime militar e retrair-se do espaço público/político  após o fim da Ditadura e com as novas diretrizes do Vaticano, do Papa João Paulo II, a campanha contra a Teologia da Libertação e assistimos  à ascensão  meteórica de uma nova forma de Pentecostalismo a par com o desenvolvimento e consolidação do Movimento Carismático no interior do Catolicismo; passamos a perceber uma maior visibilidade das religiões de matriz africana e suas lutas por reconhecimento igualitário às demais expressões religiosas; especialmente nas últimas duas décadas, constatamos o  incremento de demonstrações de intolerância religiosa no espaço público.
Presentemente, encontramo-nos sob o impacto do crescimento numérico, social e político do chamado Neopentecostalismo que começou a estruturar-se na década de setenta do século passado, num modelo de religiosidade em parte importado dos Estados Unidos (“Teologia da prosperidade”) e, em grande parte, baseado em experiências religiosas para-institucionais, desenvolvidas aqui mesmo desde os tempos do Brasil-colônia. Segundo o teólogo e sociólogo José Bittencourt Filho, que trouxe uma contribuição original para o estudo do universo religioso brasileiro, trata-se de uma religiosidade que se fundamenta no que ele denomina de, Matriz Religiosa Brasileira. Esta teria sido construída ao longo dos séculos pela conjunção do Catolicismo ibérico trazido pelos portugueses, mais a religiosidade dos povos originários e aquelas dos povos africanos aqui introduzidos na condição de escravos e reforçada mais tarde pelo Espiritismo e o Catolicismo romanizado.  Desse amálgama resultou “uma visão e conduta peculiares no tocante ao discurso e à prática religiosa, que permeiam todas as camadas sociais, assim como contribuem para a configuração de uma religião civil brasileira. Seu traço característico seria uma visão mágica e utilitária” tanto da realidade social como da dimensão religiosa.
Baseada na articulação de uma tríade, cura-exorcismo-prosperidade esta religiosidade ganhou forma eclesiástica primeiramente na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) que, ao crescer deu origem a duas concorrentes importantes, a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGR) e a Igreja Mundial do Poder de Deus (IMPD), além de muitíssimos outros rebentos. 
Sincretizando elementos próprios da Matriz Religiosa Brasileira, como a busca de milagres (curas) e eliminação de problemas atribuídos ao diabo (exorcismos) articulados com as promessas de prosperidade e felicidade aqui e agora, e não mais num céu distante, este modelo de religiosidade impôs-se rapidamente no campo religioso brasileiro, tornando-se, em menos de 40 anos de operação, hegemônico entre as igrejas do chamado mundo evangélico. Exerce hoje uma profunda influência sobre quase todas as denominações tradicionais e caminha celeremente para dominar o pentecostalismo clássico das Assembleias de Deus e suas congêneres. Caracteriza-se pelo predomínio de uma espiritualidade profundamente individualizada e voltada para as manifestações emocionais com evidente recusa da racionalidade filosófica. 
Por meio de intensa manipulação midiática, principalmente televisiva e radiofônica, suas lideranças voltaram-se para a busca do poder político, aliando-se às forças mais retrógadas do espectro político nacional. A chamada “Bancada evangélica” do Congresso nacional já conta com mais de 80 deputados e senadores, todos envolvidos(as) com as tentativas de imposição do modelo econômico neoliberal e defendendo retrocessos no campo dos direitos humanos e das políticas públicas em geral.
Segundo Bittencourt Filho, o crescimento numérico avassalador do neopentecostalismo e “sua extraordinária capacidadede mobilização demonstra que a proposta oferecida está em sintonia com as demandas espirituais da população brasileira de todas as camadas sociais.”
Por outro lado, nem tudo são flores no campo religioso em que nos encontramos. Seja no universo do catolicismo com a eclosão do movimento carismático ou no interior das igrejas evangélicas tradicionais onde grassa a polêmica entre fundamentalismo racionalista e carismatismo ou, ainda, no mundo pentecostal clássico frente à penetração das propostas neopentecostais. A mobilidade religiosa gerada pela desregulação das estruturas institucionais tradicionais e firmada no primado das escolhas individuais gera, também, processos de crítica, de resistência e de concorrência entre indivíduos e grupos, o que provoca um intenso trânsito religioso, uma vez que a adesão das pessoas às propostas oferecidas depende do nível de satisfação que elas possam encontrar ou não.
Ainda que minoritárias e não expostas abertamente ao conhecimento público, estas manifestações de resistência estão, pouco a pouco, ganhando expressão no interior do espaço religioso nacional. Como exemplos citamos as reações negativas de vários setores ao comportamento da Bancada Evangélica na Câmara; críticas fortes à religiosidade televisiva, por parte de setores conservadores do mundo evangélico; crescente e significativa busca de formação teológica acadêmica por parte de jovens pentecostais. É grande o número de estudantes pentecostais nas faculdades de teologia das igrejas evangélicas tradicionais e nas universidades, inclusive nos cursos de pós-graduação em teologia e ciência da religião, além da proliferação de escolas teológicas no interior do pentecostalismo clássico. A Rede Latino-Americana de Estudos Pentecostais tem cada vez mais recebido a adesão de pentecostais brasileiros. Cabe notar ainda o surgimento de comunidades independentes críticas do modelo imperante e voltadas para a preservação da tradição pentecostal e para o atendimento das necessidades imediatas da população envolvente.
Pistas para um novo olhar...
Estamos no meio de um turbilhão civilizacional, onde tudo se move em entre choques os mais disparatados, na economia, na política, nas ciências, na filosofia e na religiosidade! As formulações religiosas, tanto as do passado como as de hoje, respondem, imitam, contestam e se refazem segundo os ritmos próprios das sociedades e culturas onde acontecem. Nossas teologias e percepções religiosas fundadas em preceitos, dogmas e crenças a serem obedecidos ou cridos acabam por sufocar e impedir as manifestações mais sublimes da vivência humana com o sagrado mistério da vida.  O conceito bíblico de fé nada tem a ver com esta ideia de “acreditar em”, mas implica em confiança, esperança, aposta no futuro. Como expressou Rubem Alves num belo e cativante poema:
“Tudo o que vive é pulsação do sagrado.
As aves dos céus, os lírios dos campos...
Até o mais insignificante grilo
no seu cricri rítmico,
é uma música do Grande Mistério.
Preciso esquecer os nomes de Deus
que as religiões inventaram
para encontrá-lo sem nome
no assombro da vida.”

Precisamos recuperar a Graça e a leveza da vida, assinaladas por nossas religiosidades, para além de nossos compêndios dogmáticos, nossas afirmações exclusivistas e excludentes, nossos radicalismos ideológicos. É necessário que abramo-nos para leituras mais metafóricas e sacramentais de nossas experiências, ainda que históricas e fundamentadas nos impasses e desafios de nossa vivência social.
Quero sugerir algumas atitudes que podem nos fortalecer para continuarmos no esforço de humanização nestes tempos tão desumanos:
Colocar a busca pela Justiça como desafio primeiro em todas nossas ações. As flagrantes e escandalosas expressões da injustiça que permeiam as relações entre os humanos de forma alguma podem ser aceitas e muito menos toleradas;.

Buscar o diálogo com todas  as outras manifestações religiosas, partindo da dura realidade dos que sofrem as consequências  das  estruturas de dominação. Pois o diálogo, como diz poeticamente Marco Lucchesi “encarna a virtude maior entre as culturas: a hospitalidade. Pois é preciso abrir as portas da casa, oferecer ao hóspede o quarto mais arejado e luminoso. O diálogo nasce entre dois rostos, entre duas casas, entre duas tradições. E contribui para uma cultura da paz... Não há fórmula ou estratégia anterior ao diálogo. Antes dele, não há nada. Depois dele, tudo começa a tomar forma ou destino.”

Acolher o/a diferente com admiração e respeito, pois nele/a se reflete o Mistério inefável da vida que se reparte entre nós no aprendizado mútuo que o encontro propicia.

Assumir os mitos fundantes de nossas culturas e religiosidades como poemas metafóricos nascidos do assombro dos humanos frente aos inefáveis mistérios da vida ao longo da história.

Entender o mundo e a vida numa dimensão cósmica, pois vivemos totalmente inter-relacionados e somos, conscientes ou não, interdependentes de tudo e de todos, por isso não podemos deixar de cuidar da terra como o lar comum da humanidade,

Ser compassivos e amorosos e cheios de misericórdia no trato das questões que nos separam, pois o Transcendente de todas as manifestações religiosas se ocupa dos humanos com compaixão e amor.

 

 

 

 

Referências:

Santos, M. Por uma outra Globalização, Rio de Janeiro: Record, 2001. Pg. 47

Nogueira, J. C. Pulsões de Morte e Civilização, in Morais, J, F. R. (Org.)Construção       Social da Realidade, S. Paulo: Cortês & Morais, 1978. Pg. 13

Galimbert, U., Rastros do Sagrado, S. Paulo: Paulus, 2003. Pg. 307

Gori, Roland, “Diante do terror o desafio é manter a esperança e pensar no futuro.” In
Carta Maior – o portal da esquerda (www.cartamaior.com.br) 27/07/2016

Savio, Roberto, “Como chegamos a este caos?” InCarta Maior – o portal da esquerda

   (www.cartamaior.com.br)28/07/2016

Boff, Leonardo, “Com esse modelo vamos ao encontro de catástrofes” (entrevista

Eduardo Sá, In Carta Maior – o portal da esquerda (www.cartamaior.com.br) 19/05/16

Cox, Harvey, O Futuro da Fé. São Paulo: Paulus, 2015.

 

Hervieu-Léger, D. O Peregrino e o Convertido – a religião em movimento. Petrópolis:
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Bittencourt Filho, J. Matriz Religiosa Brasileira – religiosidade e mudança social.

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