(1) A cidadania moderna, conforme assinala T.H. Marshall (1967), é um status compartilhado. Com ela, na Europa Moderna, foi superada a estrutura fragmentada de soberania, direitos e obrigações da sociedade medieval, integrando todas as pessoas num mesmo sistema de direitos, ainda que, num primeiro momento, limitado à sua dimensão civil. Abria-se,
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*Ignacio Godinho Delgado é Professor Titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), nas áreas de História e Ciência Política, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED), e colabora com a Revista Escuta. Doutorou-se em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1999, e foi Visiting Senior Fellow na London School of Economics and Political Science (LSE), entre 2011 e 2012.
contudo, um espaço de disputa que vai pavimentar a expansão da cidadania as
suas outras dimensões, política e social. Como se sabe, foram agentes decisivos de tal expansão os trabalhadores e suas organizações, presentes em diferentes figurações que impulsionaram a conquista do sufrágio universal, da liberdade de associação e dos direitos sociais, esses materializados nos distintos formatos que encobriram a emergência do Estado de Bem-Estar Social.
(2) Os Estados Nacionais delimitaram o espaço de disputa aludido acima. No limite, eles tendem a se consolidar como a articulação entre as modernas burocracias públicas e a ordem política democrática (Bendix, 1996), ambiente institucional em que se afirmam e pactuam os atores que concorrem para a expansão da cidadania. A Naçãoé sua dimensão subjacente, o elemento não contratual da cidadania, historicamente construído. Certa feita, Weber (1984) assinalou que a Nação é uma comunidade de sentimento, que aspira construir um Estado. Para além de laços de consanguinidade, territoriais ou linguísticos, o que define fundamentalmente a Nação é a disposição das pessoas de viverem juntas sob um mesmo Estado, ainda que muitas vezes tal disposição seja caudatária de processos impositivos da autoridade estatal, que se desenrolam na longa duração.
(3) As conexões entre os Estados Nacionais e as grandes empresas, nascidas e sediadas no espaço territorial em que aqueles exercem sua soberania, representaram uma memorável aliança (Weber, 1968), que permitiu tanto o alcance de certa homogeneidade normativa e jurídica para a operação das firmas no espaço nacional, quanto sua projeção externa. Por seu turno, conquanto associada também a outros fatores, a propensão de tais empresas à inovação tecnológica foi impulsionada pela resposta empresarial à pressão dos trabalhadores atuantes no espaço nacional comum (Furtado, 1979), conduzindo à elevação dos salários e da produtividade e conferindo suporte material aos provimentos vinculados à expansão dos direitos sociais.
(4) Uma vez que a garantia dos direitos como franquias e provimentos (Dahrendorf, 1992), exige a presença de instituições com capacidade de enforcement, não se vislumbra em futuro próximo a substituição do Estado Nacional como locus da cidadania. É possível e razoável pensar em instituições supranacionais que definam (com a noção de direitos humanos, por exemplo) limites à atuação dos Estados Nacionais, bem como imaginar processos hodiernos de construção de novas comunidades de sentimento, que sustentem a disposição de viver sob arranjos erguidos a partir da renúncia deliberada a soberanias parciais, como pareceu estar ocorrendo, por certo tempo, com a União Europeia. Todavia, nada no horizonte aponta, hoje, para a constituição de instituições supranacionais com capacidade de tornar homogênea e efetiva, no espaço territorial que abarcam, a operação dos direitos da cidadania.
(5) Na trajetória da cidadania no Brasil, o êxito da colonização portuguesa, e dos grupos que controlaram o Estado após a Independência, na manutenção da unidade linguística e territorial do Brasil, foi importante para a constituição de laços identitários entre as pessoas que nele habitam. Tais laços, todavia, não têm sido suficientes para eliminar – na comunidade de sentimento insinuada pela convivência em um espaço comum – as fissuras derivadas da monumental desigualdade e segmentação da sociedade brasileira, em seu percurso autocrático-burguês (Fernandes, 1975) do escravismo colonial (Gorender, 1980) ao capitalismo dependente. Assim, em sequência diversa daquela apontada por Marshall, a cidadania afirmou-se, no Brasil, de forma regulada e incompleta (Santos, 1979 e 1993; Carvalho, 2002; Fleury, 1994).
(6) Não se erigiu, ademais, no espaço econômico doméstico, um elenco expressivo de grandes empresas nacionais, com disposição para inovar e propensão à projeção externa. De certa forma, isso decorreu da perspectiva que orienta as decisões relativas à aceleração do processo de industrialização, cujo propósito mais destacado foi a produção interna de bens típicos da pauta de consumo das sociedades europeias e de sua extensão norte-americana, para atendimento à demanda dos segmentos mais endinheirados da população (Furtado, 1979). Entre esses, o sentimento de pertencimento à comunidade nacional brasileira sempre rivalizou com a percepção de que eram, na verdade, filhos desterrados das regiões centrais do capitalismo.
(7) O esforço de equiparação do Brasil às economias centrais, tal como o de outros países que vieram depois, foi liderado pelo Estado (Castro, 2012). Proteção e estímulos diversos se somaram à criação de um significativo sistema de ciência e tecnologia e à atuação das empresas estatais, cujas inversões asseguravam forte ritmo de crescimento, além de concentrar o rarefeito ímpeto inovador do capitalismo no país. O apelo precoce às multinacionais para acelerar o processo de industrialização, todavia, não favoreceu a geração de mecanismos de estímulo à inovação no conjunto da economia brasileira. Entre as multinacionais, as atividades inovadoras mantinham-se fundamentalmente nos países sedes. Entre as empresas brasileiras, desenvolvia-se uma modalidade passiva de aprendizado tecnológico, inibindo iniciativas de pesquisa e desenvolvimento e reforçando o apego ao trabalho barato, sustentado no enorme contingente de população rural que se dirigia às cidades e na limitação do espaço de atuação sindical e política dos trabalhadores.
(8) Se outro caminho era possível, quando buscado não foi capaz de soldar coalizões suficientemente fortes para deter o processo de internacionalização progressiva do espaço econômico doméstico, apesar da ocorrência de momentos marcados por grande energia cívica nacional em favor da construção de um país soberano e justo. Proposições nacionalistas eram torpedeadas pelo discurso cosmopolita de parcelas majoritárias das elites econômicas e da classe média, sob a batuta das corporações familiares da mídia, sempre acompanhado da sabotagem mais ou menos aberta à operação da ordem democrática. O sentimento de pertencimento à Nação brasileira dissociou-se, pois, de suportes econômicos, além de conectar-se fracamente à democracia, manifestando-se em boa medida apenas como o compartilhamento de certos estilos, símbolos e práticas culturais.
(9) O fim da ditadura militar foi um desses momentos de manifestação de expressiva energia cívica, indicado acima. Contemporâneo da conclusão do processo de industrialização substitutiva e da transição rural-urbana, com o fortalecimento do peso e da presença política dos trabalhadores e de todos os de baixo, assistiu ao alinhamento e atualização concentrados das três dimensões da cidadania, expressas na Carta de 1988. Por seu turno, embora com ímpeto menor que as demandas de expansão da cidadania, emergiram também inclinações nacionalistas tardias, como a anunciar, mesmo fora da ordem e num espaço econômico já profundamente internacionalizado, a possibilidade de articulação entre a construção da cidadania, a afirmação da Nação e a promoção do desenvolvimento. O que os economistas liberais chamaram de a década perdida, de fato representou a possibilidade de um novo começo, em que as fissuras na comunidade de sentimento (até então só prometida pela existência de uma identidade brasileira) poderiam ser finalmente superadas, com a democracia e o desenvolvimento, de modo a gerar as bases materiais necessárias para prover os direitos civis, políticos e sociais previstos no pacto firmado pela Constituição Cidadã.
(10) Na década de 1990, contudo, em meio às pressões do ambiente internacional e ao alinhamento majoritário das elites econômicas contra o risco de ascensão da esquerda à direção do Estado, instaurou-se mais um ciclo de internacionalização, acompanhado de esforços para reduzir o alcance dos direitos sociais inscritos na Carta de 1988, e da anacrônica pretensão de firmar a competitividade das empresas no rebaixamento do custo do trabalho, incongruente com a conclusão da transição rural-urbana já vivida pelo país.
(11) As inconsistências do arranjo neoliberal à escala global, expressas nas recorrentes crises financeiras, a resistência dos de baixo, bem como a frustração do que restou de empresariado nacional com a promessa de um novo ciclo de desenvolvimento (assentado no tripé abertura econômica/atração de capitais externos/ redução do custo Brasil), impediram a plena efetivação da distopia internacionalizante neoliberal.
(12) Os governos inaugurados em 2003 propuseram um novo pacto nacional, circunscrito pelos limites herdados da trajetória pregressa do país. Assim, ao mesmo tempo em que apostaram na constituição de um mercado de massas (com crescimento dos salários e políticas de transferência de renda) e na adoção de políticas ativas para estimular a disposição de inovar das empresas brasileiras, mantiveram os arranjos macroeconômicos estabelecidos no período anterior, que minavam o impacto de boa parte das políticas encaminhadas. Por seu turno, se na política externa e em políticas setoriais apontava-se para a projeção soberana do país no cenário internacional e para o fortalecimento e emergência de agentes econômicos nacionais, tais iniciativas não foram acompanhadas de efetiva disputa política e ideológica para cimentar as coalizões que dessem sustentação ao pacto proposto.
(13) Sem alterações de relevo no sistema político, mantida intocada a estrutura oligárquica e familiar da mídia brasileira, diante dos impasses gerados pelas turbulências da economia global e desacertos na condução política e econômica do governo, em 2013, verificou-se a deserção ao pacto proposto, dez anos antes, de parte importante do empresariado brasileiro, mais uma vez seduzida pela reacionária perspectiva de elevação da competitividade com a erosão dos ganhos e direitos do trabalho. O protagonismo e autonomia da presença política brasileira no cenário global e a orientação nacionalista de algumas políticas, como a do Pré-Sal, incomodavam círculos empresariais e políticos dos EUA, somando-se à insatisfação do capital financeiro, internamente, com as ações para derrubada da taxa de juros, apontadas como voluntaristas. Assim, sob comando da mídia, secundada pelo viralatismo empedernido de grande parte da classe média, desencadeou-se o processo de desestabilização política do governo Dilma Rousseff, que se acentuou em 2015 e 2016, culminando na instalação do processo de impedimento da presidenta.
(14) O golpe de 2016 representa o eterno retorno do Brasil a um passado que teima em não desaparecer. Não mais a Nação. Não mais a cidadania. Não mais o desenvolvimento. O horizonte do governo de ocupação nacional que se estabeleceu em 17 de abril, além da desconstrução dos já frágeis arranjos de proteção social existentes no país, é a constituição de um espaço econômico plenamente internacionalizado. Tal configuração só conduziu à combinação de dinamismo econômico e bem-estar social em países pequenos, convertidos a plataformas de exportação de empresas multinacionais. Nos países médios e grandes, em território e população, a presença de um elenco expressivo de empresas nacionais inovadoras foi decisiva à ocupação de posições centrais ou à superação de posições inferiores na economia global (Amsden, 2009). Ela é, também, elemento nuclear nas configurações que sustentam o círculo virtuoso que conecta inovação tecnológica, valorização do trabalho e bem-estar social. Pretender outro caminho não é, como afirma o discurso pedante da capitulação nacional, absorver a melhores práticas ou participar da convergência que derivaria do processo de globalização. Não há convergência. Não há precedentes. O horizonte do governo golpista, de todos os golpistas, é único, singular, é mais uma jabuticaba brasileira. Sem sabor, sem sentimento, sem nação. É a renúncia ao Brasil.
Referências:
AMSDEN, A. (2009) A Ascensão do ‘Resto”. São Paulo: Editora da UNESP
BENDIX, R. (1996). Construção Nacional e Cidadania. São Paulo: EDUSP
CARVALHO, J. M. (2002) Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
CASTRO, A.B. (2012) Brasil: Desenvolvimento Renegado. In: Ana Célia Castro e Lavínia Barros de Castro (org) Do Desenvolvimento Renegado ao Desafio Sinocêntrico – Reflexões de Antônio Barros de Castro sobre o Brasil. Rio de Janeiro/ São Paulo: Elsevier /Campus.
DAHRENDORF, R. (1992) O Conflito Social Moderno Rio de Janeiro: Zahar, 1992
FERNANDES, F. (1975) A Revolução Burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar
FLEURY, S (1994). Estado sem Cidadãos. Rio de Janeiro: Fiocruz.
FURTADO, C. (1979). Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico. São Paulo: Companhia Editora Nacional
GORENDER, J. (1980) O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática.
MARSHALL, T. H (1967). Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar.
SANTOS, E. G (1993) As Razões da Desordem. Rio de Janeiro: Rocco.
SANTOS, V. G. (1979) Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus
WEBER, M (1968) História Geral da Economia. São Paulo: Editora MestreJou.
WEBER, M.(1984) La “nacion”. In M. Weber, Economia y sociedad. Mexico: Fondo de Cultura Economica.
Crédito de imagem: Acervo do Museu da República/IBRAM/MinC.
(Artigo publicado primeiramente por “ESCUTA – Revista eletrônica de Política e Cultura” )