Depoimento de uma filha que, encantada com a beleza do olhar que lhe foi ensinado, tenta brincar de roda com a alma do pai

Eis uma pergunta que sempre me faço... Por que sempre queremos homenagear Rubem Alves?

Ele está muito além de um escritor que escreveu coisas belas. Coisas bonitas muitos escrevem. Ele transformou vidas, falou daquilo que está guardado dentro da alma das pessoas sendo que nem mesmo elas conseguem exprimir. Sua existência revolucionou a educação e fez respirar  a teologia. Colocou poesia onde as palavras duras dominavam e encantou o mundo por onde passou.  Transformou Deus em objeto de degustação “Provai e vede que Deus tem gosto bom.”  Trouxe beleza para dentro de nós.

Minha memória é um fenômeno estranho. Tem vontade própria. É como uma cômoda cheia de gavetas. Tudo no seu devido lugar. Meio bagunçado mas dentro de uma lógica que o coração entende. Digo que ela tem vontade própria pois, muitas vezes, tento a todo custo abrir uma gaveta que se recusa a abrir. Outras vezes, sem que eu queira, as gavetas se abrem e as memórias saltam de dentro delas livremente.

Completamos um pouco mais de 1 ano do encantamento de Rubem Alves – ou Pássaro Encantado se escolhermos chamá-lo pelo seu nome poético. Nesses meses que se passaram desde a última vez que o abracei muitas gavetas se abriram me enchendo de doces lembranças. E ele, que me ensinou sobre os encantamentos da saudade  escrevendo-me “A Menina e o Pássaro Encantado” faz com que eu - menina, fique brincando com a imaginação tentando escolher a cor mais adequada para as plumagens do Pássaro Encantado  que agora sobrevoa sobre mares desconhecidos, nunca antes revelados. Num desses momentos de colorir com a imaginação, uma gaveta se abriu e subitamente a memória me veio, numa cena prontinha.

Eu como filha arquiteta sempre fui incumbida de decorar as casas onde ele morou. Depois de arrumar o apartamento todinho dele – eu e meu irmão penduramos os quadros que ele mais amava, com ele nos acompanhando, direcionando e aprovando. Meu coração estava feliz, finalmente tinha arrumado estética para tantos quadros que ele fazia questão de ter todos expostos. Finalmente ele deveria ficar satisfeito e parar de reclamar que o apartamento dele não era bonito como gostaria. Ele estava feliz e eu feliz por isso. Poucos dias depois, entrei em seu escritório para dar-lhe um beijo e me deparo com um papel sulfite, amassado, surrado, colado com cola na parede! Instantaneamente parei de raciocinar e fiquei furiosa...  E ele docemente se desculpou e me explicou: “Eu gostei da paisagem”... Eu só havia visto o papel amassado e pensado na cola grudada na parede. Não tinha sequer reparado na paisagem que estava impressa nele.

É por isso que homenageamos Rubem Alves.  Ele nos fala àquilo que gostaríamos muito de fazer  mas não temos coragem... Ele fala sobre olharmos para a nossa essência, colocando isso acima de tudo. Acredito que o Ser Humano é belo pela sua natureza. Dentro de cada um há uma alma que pulsa, clamando por beleza. Mas nós, mergulhados no dia a dia, insistimos em olhar mais para a cola, o papel amassado e pensar na parede. Na realidade, todos nós gostaríamos só de olhar para as paisagens bonitas e esquecer o resto. Afinal uma vida que não se cerca pela beleza não se faz tão doce. Compete a nós  encontrá-la pelos caminhos onde  passamos. Não é preciso muito; apenas enxergar além do papel surrado.

E ele, tal qual um mestre que soube ouvir a sua alma, dedicou-se a alimentá-la olhando apenas para a paisagem deixando o papel e a cola de lado. Inverteu corajosamente os nossos valores, colocando a beleza da vida em primeiro plano e as questões práticas em segundo. Transformou-se por amor à beleza.

Te reverencio pai. Você será um eterno mestre. Um mestre que de tão simples e belo tocou a alma da humanidade. Não, eu não te reverencio. Nós te reverenciamos! Pois através de você e do seu legado reconhecemos o Sagrado que habita dentro de nós... Se eu pudesse voltar no tempo, com o que a tua partida me ensinou, apreciaria seu quadro novo junto com você.  

Raquel Alves  17/09/2015
___________________________
*Arquiteta paisagista. Filha de Rubem Alves