Rubem,
Há tanto quero dizer-lhe algumas coisas. Há tantas coisas a dizer-lhe. O espaço é pequeno, limito-me a escrever sobre os abismos dos quais sua teologia nos salvou a mim e a geração com quem tenho conspirado desde os anos 1980, sobre a hermenêutica bíblica que você inaugurou, da sua libertadora distinção entre as narrativas históricas e estóricas e, por ultimo, dos pastores de olhos tristes de Bergman. O fio que une estes motivos de gratidão é, por paradoxal que pareça, a igreja. Essa mesma que desfigurou e ao mesmo tempo fez nascer o maior teólogo protestante brasileiro de todos os tempos: você.
Você se comovia ao ler o poema crepuscular do Vinicius “ O haver” , poema no qual o poetinha inventariava as sobras do seu passado. Na crônica “Resta” ( ALVES, 2012) você pede licença a ele e faz algo parecido. Peço, pois, de empréstimo esta primeira palavra com que o poetinha e você iniciaram suas estrofes de “O haver” e “ Resta”, respectivamente, para nestas poucas páginas narrar o que ficou da sua teopoética no meu corpo.
Então...
Resta uma profunda gratidão por você ter dado a nós teólogos e teólogas do período pós ditatorial um repertorio vocabular para uma fé que tinha tudo para apagar-se nos absolutismos fundamentalistas , esconder-se amedrontada num dos dialetos das ciências humanas, ou mesmo afogar-se nas águas mornas de pastorados medíocres. Você nos deu uma fortuna vocabular que, no dizer paulino, nos tornou capazes de não sentirmos vergonha do mistério que habita o mundo.
Nós esperávamos as suas crônicas publicadas na Revista Tempo e Presença como um navegante espera o mapa que o fará enfrentar o desconhecido. A poesia, a psicanálise, a visão desconcertante do fenômeno religioso para além dos reducionismos psico-sociológicos, a teologia como teia de palavras nascidas das entranhas humanas e lançadas sobre o abismo do mundo para torna-lo um lugar de beleza e verdade...
Todos essas cacos que você, desde os anos 60 se propôs a juntar eram uma brisa no deserto do desplante gerado pelas demandas dos sonhos de liberdade individuais e coletivos que desaguam nos anos 1980. (CERVANTES-ORTIZ, 2005). Se a teologia antiga salvou da morte e do medo; se a teologia medieval salvou da culpa e suas consequências; se a teologia reformada da lei e suas ansiedades ; se a teologia liberal da irrelevância do crer no mundo do ousa saber; sua teologia, Rubem, nos salvou da vergonha: a vergonha do corpo, a vergonha do amor, a vergonha de erguermos altares num mundo sem deuses.
Você nos ensinou a brincar com os símbolos da nossa tradição, jamais a jogá-los fora. Tais símbolos que antes foram resposta às anomias inevitáveis advindas das visitações do caos, aos poucos tornaram-se gaiolas, mortalhas para uma fé que não tinha olhos para os trapézios da poesia , apenas para o solo firme dos dogmas e certezas absolutas.
Você nos ensinou a brincar com esses símbolos. Mesmo o inferno, que segundo você, é o eixo sobre o qual a teologia cristã está construída, e deveria ser mandado para o limbo do esquecimento, reconfigurou-se na sua hermenêutica bíblica, como um nome para um estado da alma dominada pelo remorso, como aparece na leitura que você fez da parábola do rico e Lazaro ( ALVES, 2002).
Resta, portanto, uma hermenêutica que, anunciada ao final de sua tese de doutorado, fundamentada teoricamente em A gestação do futuro, obra seminal nascida nos corredores do Union Theological Seminary, aparece ao viés dos meus olhos com intensidade desconcertante no tópico E não nos faças passar pela prova, de sua originaria interpretação do Pai Nosso. (ALVES, 1987)
Para falar da esperança nascida do fogo e da prova, você busca no imaginarío bíblico a estória do sacrifício de Isaque. Na sua visão Rubem, a angustia da fé não tem aparição no literalismo bíblico, cujo reverso é a ferramenta histórica critica em seu afã de mostrar que o texto é um grito contra o sacrifício de crianças. Você viu em Abraão o viço kierkegaardiano da esperança. Quanto tempo o patriarca esperou a visita da alegria. Sofreu e amou nesta espera. Quando Isaque chegou, despediu-se da esperança, não era mais necessária . O riso chegara . A ausência tornara-se presença, o ícone fizera-se ídolo. O realismo dispensara a utopia.
Então, por um momento, Abraão percebe-se tomado pela visão de que Isaque é era bolha de sabão, um vento que passa, um partida que se adia. Isaque era um outro. E Abraão se entristece, o mundo se transfigura, a angustia de ver-se vazio, desprovido, despossuído, desterrado, se apossa do pai da fé.
Abraão então percebe na sua angustia que Isaque não lhe pertence. Que maldito é o pai que quer perpetuar-se no filho, que quer nele realizar-se. O céu anuvia, o vermelho descortina-se no horizonte e Abraão percebe que Isaque é, no fundo, o que sempre fora: uma promessa, uma dadiva, um presente, uma despedida que se renova a cada dia.
Ante tal experiência, Abraão renova-se ao aceitar que Isaque não pode levar o futuro nas costas, ele é apenas uma dádiva do presente. Pura graça. Nem o passado com suas bagagens, nem o futuro com seus ideais. Apenas o (um) presente. E Abraão volta a sorrir porque Isaque pode se o que é ( um riso passageiro como são as crianças)
Resta também Rubem, como você mesmo disse, os cacos da Escritura esperando um visão de beleza que os transforme em obra de arte ( ALVES , 2007). Eles não são bonitos nem feios. São apenas cacos esperando um compositor que os organize de tal forma que sejam capazes de dizer algo. São cacos de traições , de paixões, de tragédias, de anúncios da paz, de poemas eróticos, de bem aventuranças, eventos sangrentos e etc. Lá estão eles esperando um artista que os faça dizer algo para cada tempo histórico.
Muitos confundem os cacos com histórias. Reduzem-nos, como você disse, em sua tese de doutorado, a fatos brutos, acontecidos no passado e que nunca mais se repetirão. Iuri Andréas Reblin (2014), um dos que se debruçaram sobre sua teopoética percebeu com clareza a diferença entre o que você chamou de história e estória. No final do livro Gandhi: política dos gestos poéticos ( 1990) você resume seu método de juntar cacos estóricos ao narrar a vida de Gandhi.
Foi isto que tentei fazer. Contei estórias sem respeitar o tempo e sem respeitar o espaço. Juntei coisas que aconteceram longe e pus no mesmo tempo a meninice e a velhice. Assim é o mundo da estória, parecido com os sonhos, arte do inconsciente: lá não existe nem espaço nem tempo. Só o espaço e o tempo da saudade, coisa do desejo... ( ALVES, 1990, p. 97)
E mais: História é contar seguido, alinhavado... Aí aparecem as tais coisas sem importância. Pois não é o contador que escolhe o assunto da sua fala. São as coisas mesmas. A história é a fala de um contador de casos que esqueceu que ele existe. Na história as coisas vão marchando feito me parada, ao ritmo dos tambores do tempo, presas da contiguidade espacial. Uma depois da outras, uma junto da outra... ( ALVES, 1990, p. 98)
Mas as estórias são tecidas sobre uma trama de fios invisíveis. Os olhos são magicamente transformados pelas palavras, e começam a ver o que ninguém mais vê. A estória é uma relato de amor, seu objetivo é sentir saudade, apontar para ausências, seduzir... A estória é uma violência que o desejo faz sobre a história, com vistas a uma mágica metamorfose. E não será isto que esse encontra detrás de toda intenção poética? ( ALVES, 1990, p. 98)
Desculpe Rubem por esse desvio de percurso, por voltar aos anos 90 a procura de um fio que reaparece nos cacos bíblicos juntados por Benjamin, o contador das estórias bíblicas que ajudaram você a responder a velha e recorrente pergunta feita aos hereges: você acredita em Deus? Benjamin lembrou que as estórias bíblicas eram contadas oralmente no passado, antes de serem escritas. A vantagem de serem registradas escrituristicamente é que continuaram a existir mesmo depois da morte do contador de estórias. A desvantagem: quando transformadas em textos escritos perdeu-se a figura do contador de estória. Assim, textos estóricos passaram a ser lidos como história. ( ALVES, 2007)
As leituras bíblicas, tanto em sua face literalista quanto em sua face histórico critica, parecem padecer de uma mesma miopia: a Palavra transformada em Escritura. Raimond Panikar disse o cristianismo se desfigurou muito quando deixou de ser a religião da palavra para ser a religião do livro. Você Rubem, descreveu como ninguém as filigranas desse empobrecimento.
As estórias biblicas, como disse o seu mestre Benjamim, são contadas no passado, mas sua força está no presente. Quando as ouvimos, rimos, choramos, amamos, odiamos – embora elas nunca tenham acontecido. A “historia” é criatura do tempo. As “estórias” são emissárias da eternidade. Estas sim, capazes de construir altares à beira dos abismos.
Resta finalmente uma lufada de vento fresco sobre o pastorado. No livro Rubem Alves: o sapo que queria ser príncipe (2009), você narra as agruras do pastorado, essa doença que se apossou de você, que o afastou de Debora, seu primeiro amor, que o afastou dos sonhos dos seus pais que o queriam médico, que fez com que as palavras de Benjamim, o menino que o chamou de ridículo nos corredores do colégio Andrews, se tornassem uma maldição que acompanhou por toda vida. Benjamim atirara em sua pobreza, acertara em seu destino.
Você reconheceu que, formalmente, desligou-se do pastorado após a ida para Princeton. Num evento do lançamento do livro Perguntaram se acredito em Deus, um professor da Unicamp que você conhecia de vista mas não de nome pediu-lhe a permissão para corrigir a afirmação de que você deixara de ser pastor há 35 anos. O Senhor continua a ser pastor, disse ele. O que o senhor escreve são o seu cajado e sua flauta. Você disse que ficou comovido, Rubem. ( ALVES, 2009, p. 150)
Poeticamente a figura do pastor ou pastora é descrita por você como o ser humano capaz de se enternecer diante do sofrimento dos fracos. Mas roubada da poesia, tal figura designa um funcionário que distribui e vende bens espirituais: a paz, o amor, as certezas, o entusiasmo, a alegria. Para resumir: o pastor é um funcionário de uma instituição a quem deve servir e que paga o seu salário. Você recusou essa profissão Rubem, mas nunca conseguiu fugir da imagem poética do pastor.
De onde viria tal imagem poética? De um trauma infantil? Você chega mesmo a ventilar a hipótese de ter sido seduzido pela imagem do pastor para fazer frente às humilhações sofridas na escola, do desamparo sofrido à sanha dos lobos representados pelo menino Benjamin. Entretanto, de que adiantaria tal diagnostico? Haveria cura para esse trauma? Curada a ferida, a arte do pastoreio deixaria de existir?
Você nunca deixou de ser pastor Rubem. Mudaram-se as paisagens do pastoreio, mas seu amor pelos mais frágeis só fez crescer. Pastoreou-os com as próprias mãos em Lavras, e mais tarde com o núcleo duro de sua profética produção teológico-filosofica, que tem na pergunta O que é preciso fazer para que a vida seja mais humana, o fio condutor do seu trabalho.
Mais a frente, pastoreou sua pequena Raquel, oferecendo a ela e à criança que mora em nós um universo simbólico de uma riqueza ainda a ser descrita. Emprestou suas letras, tais como as notas do piano de Nelson Freire, aos frágeis do presente, àqueles que velam pela alegria do mundo. Não pastoreou-se a si mesmo. O seu canto teológico era para os outros, não para você mesmo. Você gostava de dizer que pela poesia buscava o que não tinha. Em linguagem religiosa, pregava o que não vivia. Assim são os poetas, vivem de uma falta, de uma ausência, de uma fome. Você Rubem, foi como personagem de Bergman: um pastor de olhos tristes.
Resta, pois, finalmente a (des) ventura de sermos pastores de olhos tristes alimentados pela sua teologia. Num prefacio que você fez ao livro de um pastor amigo seu, contemporâneo no Seminário Presbiteriano do Sul, Jonas Rezende, aparece a figura do pastor de olhos tristes. Em 1967 Jonas escreveu um trabalho literário chamado O Gigolô, premiado em 1970 pela União Brasileira dos Estudantes. Reescreveu-o em 1980 sob o titulo Colarinho de Padre (REZENDE, 1980)
Estou certo Rubem que você abjugaria a forma como prefaciou o livro de Jonas, tal como você esconjurou a linguagem com que escreveu sua tese de doutorado ao escrever o prefácio Sobre deuses e caquis, quando da tradução do seu trabalho para o português, vinte anos após sua publicação nos Estados Unidos. Talvez você nem se lembre desse prefácio que dedicou ao livro do Jonas. Para mim, trata-se de uma obra prima ao final da qual você sugere que o trabalho literário de Jonas Rezende seja a primeira expressão literária e o primeiro tratamento psicológico de uma dimensão da experiência protestante no Brasil. ( REZENDE, 1980, p. 16)
Você diz compreender as razoes porque Bergman escolheu a figura do pastor protestante como um lugar central no seu cinema. Bergman o fez menos pela figura do pastor em si, e mais pela densidade simbólica que ele evoca. O pastor de Bergman é aquele que apascenta a vida e a morte e as chama pelo nome. Seus olhos estão sempre tristes porque frequentam os caminhos kierkegaardianos do desespero e da angustia.
Vive ele um duplo estrangulamento. Para quem o vê de fora ele é um ser inibidor do riso e da irreverencia. Para os de dentro ele é o altruísta, amado e desejado. Quando olha para fora, sua palavra se desmancha num universo do qual não veio, que não o gerou, que não o amou. Quando olha para dentro, descobre-se também sem lugar, porque a palavra que lhe sai da boca é paga pelo salário que todo mês recebe.
Empregado de uma congregação quer, antes de tudo, sobreviver. A receita para seus sermões é clara: que emocione, que entusiasme, que provoque o riso e faça chorar. Que moralmente seja puro e evite os riscos. Que tome cuidado com as reverberações sociais de sua predica. Eis o duplo estrangulamento a que está submetido: os de fora não ouvem sua voz. Os de dentro só ouvem os ecos do seu silencio.
Sua teopoética Rubem, alimentou pastores que ousaram contrariar eclesialidades para serem fieis à comunhão de Jesus de Nazaré e dos profetas malditos. Alimentou-nos como nos alimentou a estética existencial e escrituristica de Jonas Rezende, que você soube descrever tão bem na figura do pastor de Bergman. Você alimentou os que ousaram respirar o ar puro das praças ao ar mofado das catedrais, os que não trocaram o amor por uma prato de lentilhas do poder.
Resta por ultimo Rubem, um pedido de perdão. Você me pediu para escrever um texto para o livro O que eles dizem de Rubem Alves, obra organizada pelo professor Antonio Vidal. Me escondí atrás de justificativas de ordem pratica, mas confesso que menti. Não me achava digno de falar sobre você. Os cacos de suas contas de vidro me encantavam, mas eu não me sentia capaz de unir as minhas próprias ao fio invisível das suas.
Quando Zwinglio me convidou para escrever esse texto não menti para mim mesmo. Eu escreveria sobre você custasse o que custasse. Não por culpa, nem por remorso. Por graça, pura gratidão. Me pergunto por que foi necessário que você partisse para que eu começasse a compor o colar de cacos com as pobres peças do mundo de culpas, receios, arrependimentos e indigência espiritual.
Você não cansava de repetir o poema de Fernando Pessoa que ele dirigiu a um outro poeta que, segundo você, era ele mesmo.
Cessa o teu canto!
Cessa, que, enquanto
O ouvi, ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Com que o teu canto
Vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas a cantar.
E a melodia
Que não havia,
Se agora a lembro,
Faz-me chorar.
Agora, no seu silencio Rubem, posso ouvir com clareza o canto que vinha dos interstícios com que o seu canto desde os anos 1980 chegava até nós. Os olhos continuam tristes, as limitações crescentes, mas o coração lateja de esperança. A ponto de se animar a escrever sobre você, sua teologia, seu pastoreio. Eu achava que seu canto era tão bonito, que não caberia nenhuma dissonância vinda das vozes taquarais pastorais, mesmo aquelas que se considerassem suas bem intencionadas ovelhas.
Por isso ousei cantar meu pobre canto ao ouvir o canto do Mistério que seu canto fez ecoar. Como não faz muito sentido para mim, como também para você, a imagem de um Deus narcísico, cioso de si, que se considera o único objeto digno de fruição em todo o mundo (você sempre tão agostiniano, com exceção nesse ponto) quero confessar a alegria e gratidão que o seu canto trouxe e continua trazendo ao meu coração. Estou certo de que o Grande Mistério não ficará enciumado, pois a fina flor da mensagem bíblica parece sugerir que ele quer ser amado não em si mesmo, mas no amor e gratidão que temos uns pelos outros.
Obrigado Rubem!
Fontes:
ALVES, Rubem. Gandhi: politica dos gestos poéticos, São Paulo: FTD, 1990.
____________ Transparências da eternidade, Campinas: Verus, 2002.
____________ Pai Nosso: meditações, São Paulo: CEDI/Paulinas, 1987.
____________ Perguntaram-me se acredito em Deus, São Paulo: Planeta: 2007.
____________ Pimentas: para provocar um incêndio não é preciso fogo, São Paulo: Planeta, 2012.
____________ Rubem Alves: O sapo que queria ser príncipe, São Paulo: Planeta, 2009.
CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira, erotismo. Campinas: Papirus, 2005.
REBLIN, Iuri Andreas, A contribuição de Rubem Alves para o estudo da teologia na arte sequencial: anotações de um fragmento de mosaico misturadas com biografia, in Revista Reflexus, Ano VIII, n. 12, 2014/2. Acesso em 01/10/2015.
REZENDE, Jonas. Colarinho de padre, Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1980.