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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Gratidão e Saudade
Por: J.F. Regis de Morais
Data: 22/10/2015

J. F Regis de Morais, PhD*

Nosso mundo é rico de colecionadores.  Há os que colecionam selos, os que colecionam moedas, aqueles que ajuntam objetos antigos e tantos outros.  Quanto a mim, sempre colecionei – e com que prazer! – encontros humanos.  E, nestas mais de sete décadas, a vida me tem sido pródiga em me enfeitar os salões da memória com esses apaixonantes companheiros de viagem.  Que luminosos caminhos de existência.
Pouco mais que adolescente, na inaugurante primeira juventude, dois professores que tive marcaram-me fundo a vida: o doce professor Roberto Coimbra, em língua e literatura luso-brasileira, das mais belas figuras que a vida bondosamente ofereceu-me em convívio; e o, ao mesmo tempo, vulcânico e brilhante professor Rubem Alves, que então era pastor presbiteriano em Lavras (Oeste de Minas) – este último com apenas 26 anos de idade, naquela ocasião.

Por dez anos (de 1962 a 1972) estive, ao de longe embora, acompanhando a trajetória de Rubem Alves com todas as decepções absurdas que o meio eclesial lhe impôs.  Como jamais acreditei em coincidência ou propriamente má sorte, desde aquela ocasião achei que seu autoimposto exílio de estudos nos Estados Unidos (Nova Iorque e Princeton), embora vivido com os sofrimentos de distância familiar, era coisa que acabaria construtiva para a sua história.  Hoje não é difícil mesmo percebermos que realmente foram devidos caminhos de sua existência.

Como já anotei, voltamos a bom convívio a partir de 1972.  Pude voltar a ouvi-lo tocar piano, a contar histórias de sua convivência com Nelson Freire, e, sobretudo, gravei notáveis exposições suas sobre evolução do pensamento ocidental, as quais arquivei com o apelido-rótulo de “rubonianas”

Em minha primeira juventude eu escrevia poemas e os mostrava ao pastor Rubem Alves, sendo que deste recebi os mais importantes estímulos para a então minha incipiente literatura.  Ainda o ouço dizer: “Você ainda tem o que caminhar, Regis, mas a ‘alma poética’ já está em suas páginas”.  Isto era-me música aos ouvidos, pois que então – aos meus 18 anos – Rubem era o único adulto que lia atenciosamente meus poemas.
Bem depois fui seu aluno de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ali fui seu orientando – e que brilhante orientação, marcada em diálogos críticos e sem imposições.

Quando de sua aposentadoria (na Unicamp), éramos colegas de departamento.  Rubem disse aos colegas que enviar-nos-ia uma carta de agradecimento em razão das relações amistosas; e sublinhou: “Daqui para a frente não escreverei mais texto algum de talhe acadêmico!”  De um lado, achei boa sua decisão, de vez que ele sempre foi brilhante literato; estilista fluido e de uma imagística muito rica; mas, de outro ângulo, intimamente lamentei, pois seus livros considerados os melhores foram os da época acadêmica.  Hoje percebo que tive razão em minha dupla percepção.

Rubem foi um amigo precioso durante 48 anos.  Quando olho para dentro de mim, para minha galeria de encontros humanos, sempre me vejo envolto em saudade.  Assim, espiritualista que sempre fui, rogo às forças maiores que, onde quer que meu bom amigo esteja, receba as melhores bênçãos e atenções da Inteligência Suprema e Criadora.

Certa vez, – há mais de 40 anos – dei-lhe uma tela que eu pintara com a seguinte dedicatória: “Só damos nossos filhos a quem amamos”.  Pois, passados 12 anos, Rubem deu-me um exemplar do seu primeiro livro publicado nos Estados Unidos da América.  Entregou-me seu livro com a dedicatória: “Regis: só damos nossos filhos a quem amamos!”

São, as presentes linhas, manancial de gratidão e saudade.

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*Prof. aposentado da UNICAMP. Filósofo da educação, escritor e poeta com vários livros publicados. Amigo de longa data de Rubem Alves.