Tempo e Presença Digital - Página Principal
 
RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Meus encontros com Rubem Alves
Por: Paulo Nogueira
Data: 22/10/2015

Senti-me muito honrado quando recebi o convite do Zwinglio para escrever sobre Rubem Alves neste número de Tempo & Presença. Mas também confesso que não me sinto merecedor dessa lembrança como um dos amigos do Rubem. Por falta de sabedoria, por achar que a vida das pessoas que amamos tem uma duração infinita, perdi muitos dos meus velhos, achando que os cultivaria melhor algum dia. O tempo, no entanto, é impiedoso e colhe as pessoas que amamos sem nos avisar e fazer concessões. No meu lugar talvez devessem estar escrevendo aqui a Inês Bento, o Luiz Carlos Ramos, e, principalmente, o Ezequiel Laco, que acompanhou o Rubem até os últimos dias. Era ele quem me dava as últimas notícias dele e me preparava para a despedida.
Posso dizer, no entanto, que tive encontros marcantes com o Rubem, que sempre começavam com gozações dele, carequinha, à minha calvice precoce, seguidas depois por perguntas sobre como andava a vida, os filhos, o trabalho, e um “você anda sumido...”

Narrarei brevemente alguns desses encontros.

1. Um início frustrante.
Era início dos anos 80 e eu cursava meu primeiro ano de teologia no Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas. Eu havia me ajuntado a um grupo de seminaristas do Rio de Janeiro que tinha feito um pacto de ler e discutir textos filosóficos, na tentativa de superar a formação conservadora que recebíamos ali. Certo dia, o Wilson chegou ao grupo e disse todo orgulhoso: “Colegas, consegui marcar um encontro nosso com o Rubem Alves. Será na casa dele”. Essa notícia era muito excitante para esse grupo de seminaristas curiosos com o mundo e com o saber. Afinal, no Seminário o Rubem era considerado um heresiarca, uma mistura de comunista com nihilista, com pitadas de liberalismo e evangelho social. No dia marcado nos dirigimos à casa dele, onde fomos recebidos por um professor extremamente gentil e sedutor. Perguntou o que gostaríamos que ele fizesse por nós. Nós lhe pedimos que nos orientasse como um grupo de estudos. Ele então nos perguntou pelos nossos interesses, e uma de nossas respostas, que muito o agradou por sinal, foi que queríamos estudar Freud e a
_________________________
*Teólogo e escritor.  Especialista em literatura bíblica. Prof. no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da UMESP, SP.

psicanálise. Foi então que ele nos disse: “Leiam a biografia de Freud, de Regis de Morais. Depois voltem a me contatar para agendarmos um novo encontro”. Saímos todos muito ofendidos daquele encontro. Nós, jovenzinhos abelhudos, que já tínhamos lido textos de Freud na coleção “Os Pensadores”, não desceríamos ao nível de ler uma biografia introdutória. Esse grupo nunca mais se encontrou com o Rubem em sua casa. Hoje me pergunto quantas coisas nós perdemos. O quanto da experiência de ter lido Freud com o Rubem, naquele momento inicial, poderia ter mudado nossas perspectivas de entender a religião e o mundo? Esse Freud teria sido uma porta de entrada para que questões? São perguntas que me faço até o dia de hoje.

2. O abridor de portas.

No ano de 82 minha trajetória como seminarista no Seminário Presbiteriano do Sul estava chegando ao fim. Os dirigentes do seminário já estavam identificando esses alunos que questionavam o mundo, que se posicionavam politicamente e não repetiam as doutrinas e enredos tradicionais. Eu já tinha percebido que para seguir estudando teologia tinha que buscar novos espaços. Naquele ano eu já frequentava a Comunidade Filadelfia, da antiga FENIPE, hoje IPU. Entre seus líderes estavam nada menos que Gerson e Romélia Meyer, Rev. Francisco Alves e o Rubem. Era um espaço de inovações litúrgicas e de sermões alternativos. Eles me receberam, um jovem de 18 anos, com carinho, e ouviam com atenção de meu desejo de estudar Teologia com liberdade. No mês de outubro daquele ano fui expulso do seminário, acusado de heresia, rebeldia, etc. Lembro-me do Rev. Francisco Alves ter me dito: “Só tentam quebrar os vertebrados, menino”. E o Rubem me dizer: “Aguarde! Vou fazer alguns contatos!”

Alguns meses depois eu já morava num quartinho no fundo de uma casa do Jardim Guanabara, duas quadras de distância do seminário e da casa do Rubem. Também tinha conseguido um emprego numa agência bancária perto dali e estava inscrito no curso de Filosofia da PUC. Eu estava lendo no meu quartinho numa tarde de verão, e começaria a trabalhar na tal agência no dia seguinte, quando chega o Rubem com um papelzinho na mão. Era um telegrama de um presbitério da PCUSA, dizendo que enviaria o dinheiro requisitado para me pagar uma bolsa de estudos. Rubem me disse: “Você tem o dinheiro para ir estudar no ISEDET, em Buenos Aires!” Eu olhei para ele e respondi: “Mas Rubem, já estou inscrito no curso de Filosofia da PUC, amanhã começo em meu novo emprego, nem sei se quero voltar a estudar teologia e religião”. Ele me olhou com severidade e disse: “Você tem que decidir isso sozinho. E até amanhã”. E foi embora. Voltei para o quarto e comecei a ouvi música, tentando achar uma resposta em meu interior. Depois de algum tempo me dei conta de que estava ouvindo a Paixão Segundo São Mateus de J. S. Bach. Fui até a casa dele e lhe contei isso. Ele me disse: “Sua trajetória com a Teologia ainda não terminou. Prepare-se para ir para Buenos Aires”.

3. Um pastor com conselhos pessimistas.

Quando eu tinha meus 33 anos, após meus estudos na Argentina, doutoramento na Alemanha e tendo iniciado minhas atividades na Universidade Metodista de São Paulo, eu me encontrava numa profunda crise existencial. Nada me fazia sentido naquele tempo. O Rubem me recebeu em sua na casa, em seu consultório (ele atuava nesse tempo como psicanalista). Ele me mostrou seu altar, com imagens e símbolos que amava. E do nada me disse: “Não há cura pra isso que você sente. Não tem sentido mesmo. É como uma ferida que não cicatriza. Você vai ter que bordar um pano pra colocar em cima da ferida, para escondê-la. Esse bordado é a poesia”. Fiquei atônito. Ele insistiu: “Você conhece Fernando Pessoa? Comece com Pessoa. Faça da poesia parte da sua vida”. Eu o fiz, intensamente. Pessoa, Bandeira, Cecília, Adélia, entre outros. Ainda hoje eu pergunto aos meus alunos: “Vocês conhecem Fernando Pessoa? Já devoraram a obra dele?”. Eles me olham como se eu fosse um marciano.

4. Um pastor otimista.

Numa segunda crise, anos depois, eu o procurei novamente. E já comecei com um lamento: “Puxa, Rubem, essa tal ferida que não tem cura... Isso é muito triste!” Para surpresa minha ele disparou: “Eu lhe disse isso, não foi? Pois bem. Não acredito mais em nada disso. Tem cura sim. Está no amor. Faça análise. Quer que eu seja seu analista? Não sou ortodoxo!”. Claro que não aceitei que ele fosse meu analista. Mas iniciei sim uma longa análise. Tinha me reencontrado com Freud, o Freud do Rubem, mas uns vinte anos depois.

5. A viagem.

Procurávamos um nome de peso para fazer a conferência de abertura de semestre na Pós-Graduação em Ciências da Religião, na Metodista. Foram levantados alguns, mas sempre surgia a ressalva: “Este e aquele cobram caro”. Falei de convidar o Rubem. Essa mesma objeção foi levantada. Fiz o convite a ele. E ele me impôs uma única condição: “Que você venha me buscar em casa, que viajemos juntos, aí vamos conversando”. Conversamos sobre poesia, teologia, J. S. Bach, criar filhos, rupturas na vida, entre tantos outros assuntos. A conferência foi um grande sucesso. Na viagem de volta ele ficou surpreso quando lhe falei que ele receberia um pequeno pro-labore da Universidade. Ele não me perguntou o valor e agradeceu.

6. Aplausos de despedida.

Era o ano 1996, reunião do Presbitério de Jundiaí, da IPU, em Indaiatuba. Apesar de ser meu aniversário, fui à reunião. Eu era considerado membro ativo do presbitério por exercer atividade considerada como pastoral, por ser professor de Teologia na Metodista. Era até membro da mesa diretiva, como segundo secretário. Nunca soube o que um segundo secretário fazia, mas eu era assíduo às reuniões. No decorrer da reunião, no plenário, um pastor se levantou, pediu a palavra e passou a relatar que tinha visitado o Rubem (membro emérito do presbitério) para pedir que ele desse um relatório sobre como “servia à igreja e ao Reino de Deus”. Em seguida, eu e outro membro da mesa perguntamos ao reverendo com que raios de autorização ele teria ido importunar o Rubem com perguntas tão elementares. Pois bem, o estrago já estava feito. O Rubem havia enviado uma carta ao presbitério, a qual fora lida em seguida no plenário. Gentilmente ele agradecia o fato de ter sido tolerado pelos seus ilustres membros, dizia que de fato não trabalhava mais com igrejas e teologia, ainda que ele estivesse constantemente envolvido com religião, educação e poesia. Ele pedia o desligamento do presbitério. Antes que pudéssemos reverter a situação, um grupo considerável de pastores se levantou e aplaudiu a solicitação, aceitando prontamente o pedido de desligamento do Rubem. Levantei-me e fiz um discurso que resumidamente dizia: “Há muitos presbitérios no mundo que se sentiriam honrados em ter o Rubem como membro emérito. Este aqui quer entrar na história pelo fato de ter aplaudido o pedido de desligamento dele?” Aí um dos respeitáveis reverendos disse: “Está bem assim, afinal ele não é um pastor como nós”. Eu e mais um jovem pastor dissemos: “Nós também não somos e tampouco queremos ser pastores como vocês”. Foi a última vez em que pisei nesse presbitério.

7. Poesia entre amigos.

Nos últimos anos de vida o Rubem passou a reunir um grupo de pessoas amigas, para celebrar a amizade com pão, vinho e poesia. Ali estavam Zé Lima, sua esposa Nádia, Esequiel Laco e a filha Ester, Luiz Carlos Ramos com Vasti e Lucas, Padre Paulino, eu, com Luciana, minha esposa, e meus filhos André e Marina. Na mesa ele contava coisas sobre a vida, repetia suas estórias. Aliás, essas estórias eram boas porque estavam sendo repetidas. Elas criavam elos com encontros em que já haviam sido repetidas antes. Sempre achei fundamental que o Rubem repetisse suas estórias. Estabeleciam uma grande comunhão no tempo. Num desses encontros o Rubem estava triste, ferido pela vida, aí passou a nos recitar os poemas que o ampararam na angústia, seus velhos companheiros: Pessoa, Vinícius, Adélia, Cecília, Bandeira... Ele estava retomando a costura do bordado sobre a ferida.

Houve vários desses encontros. Um dos últimos desses encontros deveria ter acontecido na minha casa, na Grande São Paulo. Para cá vieram todos esses amigos e outros mais. A mesa estava farta e a tarde era bonita. Mas aí chega o Ezequiel sozinho de Campinas. O Rubem não estava bem.

8. Companheiro de jornada.

Sempre tive medo de visitar meus velhinhos na hora da despedida. Sou medroso de despedidas, como o Alexander, de Bergman. Escondo-me debaixo da mesa e de lá não saio. “Um dia vou visitar”, eu dizia. Na despedida do Rubem eu tinha uma desculpa: eu estava fazendo uma viagem com um grupo de pesquisadores na Turquia, visitando as cidades da Ásia Menor, onde o cristianismo havia estado presente desde o século primeiro. Nas ruinas eu perguntava por esses cristãos anônimos, inventivos, que organizavam suas vidas em torno de uma nova fé que vinha do oriente, a qual falava de um messias crucificado pelos romanos. Gente estranha e corajosa. Durante cada acesso à internet, no ônibus, entre um sítio arqueológico e outro, ou no hotel, eu recebia as notícias do Rubem da Inês e do Ezequiel. Havia algo pavoroso em abrir e-mails naqueles dias. No único dia de descanso que tivemos, em Bodrum, antiga Halicarnasso, alugamos um barco para rodear a ilha grega de Kos. A beleza da paisagem não me sossegou, havia algo de morte naquela bonança. Ao chegar ao hotel, no fim do dia, vejo a notícia da passagem dele num website. Em seguida Ezequiel me consola por e-mail: “Alguns vão antes. Logo vamos nós também”. Rubem estava viajando comigo naquelas terras atávicas.

9.  Rubem para o futuro.

Prometi contar alguns encontros. Mas termino com o que ainda não aconteceu. No mundo da teologia Rubem é um incompreendido. Ele passou por pai da teologia da libertação. No entanto já foi levantada a crítica: como é que alguém é teólogo da libertação e não é marxista? Trocou o marxismo pela psicanálise? Os acadêmicos de plantão ainda dirão: mas ele passou a escrever crônicas, estorietas, coisas pouco sérias. Deixou de ser teólogo? Pois é aí que aposto minhas fichas: é nos gêneros das estórias infantis, das memórias e das crônicas que Rubem será lembrado como teólogo no futuro. Precisamente nesses gêneros e não em seus esforços sistemáticos iniciais, por mais brilhantes que fossem. Ao escrever sobre a poesia, sobre os quintais, caquis, lembranças de infância, sobre sua filha Raquel, sobre seus autores preferidos, sobre jequitibás, J. S. Bach, Mozart, Minas, jogos de contas de vidro, caleidoscópios, feridas que não cicatrizam, o envelhecer, as escolas, as crianças, e tantos outros temas. Ele será inserido no rol dos teólogos novamente, ainda que estrategicamente se autodenominasse educador, escritor, psicanalista. Mas não o será por nossa geração, idólatra do grande poder, dos projetos majoritários, das mediações duras, dos sociologismos, dos conceitos claros e distintos, das práticas e doutrinas retas, verdadeiras e funcionais. Uma geração que valorize a estética, a dos quintais e dos entardeceres, essa redescobrirá o Rubem. Um dia as crônicas aposentarão as dogmáticas. E as estórias infantis serão assunto dos estudantes de teologia. “Quem não se tornar como uma criança...” Esse tempo ainda não chegou.

Cultivemos por enquanto nossas memórias.