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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Rubem Alves: Humanista da Esperança
Por: Antônio Vidal Nunes
Data: 22/10/2015

Antônio Vidal Nunes-UFES

Rubem Alves é um dos mais importantes humanistas brasileiros. No centro de suas reflexões o homem sempre esteve presente. Ainda que, em sua trajetória intelectual, possamos pontuar momentos diversos, estilos  gráficos distintos, nunca se distanciou de sua temática central. Em nenhum momento tratou o homem de forma abstrata e a-histórica, sempre o concebeu de forma concreta e contextualizada. Não se pode falar dele senão desde sua circunstância e singularidade. É assim que o compreende, começando pelo seu labor intelectual da juventude, momento específico de sua atividade cognitiva, que se inicia logo após a sua formação teológica em 1957, no Seminário Presbiteriano da cidade de Campina-SP, até sua partida para o exílio sete anos depois.

Naquele momento histórico, início da década de 1960, parte da intelectualidade brasileira nutria a expectativa de que a nação brasileira poderia trilhar um caminho novo, de autonomia e liberdade em relação ao jugo colonialista vivido por séculos. Rubem Alves acompanhava de perto o esforço reflexivo que pretendia repensar o Brasil e a situação do homem pátrio 1. Enquanto teólogo buscava renovar o pensamento religioso, trazendo para o advento de novos tempos uma teologia atualizada, com a expectativa de que a mesma pudesse contribuir com os processos sociais, culturais e políticos pelo qual passava o país. Era preciso que a teologia voltasse sua atenção para o mundo, que levasse em conta a situação dos mais sofridos e explorados. As estruturas injustas e desumanizadoras precisavam ser transformadas para que na terra a equidade viesse a existir e os habitantes de nossa pátria pudessem repensar o seu futuro de forma soberana e livre2 .

*Filósofo e teólogo. Prof. da Univ. Federal do Espírito Santo. Além de amigo um estudioso da obra de Rubem Alves. Autor e org. do livro O que eles pensam de Rubem Alves e de seu humanismo na religião, na educação e na poesia. S. Paulo: Paulus, 2007

É preciso considerar que no interior da instituição religiosa da qual Alves fazia parte ele não estava só. Havia um grupo de pessoas (professores, pastores, estudantes, etc.) que se encontravam identificados quanto à necessidade de um engajamento dos cristãos na transformação do mundo.  Por sua capacidade reflexiva, o jovem teólogo acabou se tornando um dos porta vozes deste grupo, que postulava uma teologia libertária encarnada no mundo e sensível aos seus problemas.

A primeira elaboração acadêmica de Rubem Alves foi realizada nos Estados Unidos, no Union Theologycal Seminary de Nova Iorque, em 1963, onde  havia recebido uma bolsa de estudos para aprofundar os seu trabalho investigativo. Infelizmente, sua dissertação só foi publicada no Brasil trinta anos depois, e se tornou obra importante para uma compreensão mais adequada do itinerário reflexivo do autor 3. Com razão, Alves apresenta assim seu livro:

O significado deste texto, eu penso, não se encontra no seu conteúdo, já realmente ultrapassado. Ele vale pela sua função biográfica. Como se fosse uma velha fotografia num álbum de retrato [...] Assim ninguém poderá, com base neste texto, dizer o que o Rubem pensa hoje. Entretanto vendo o que fui e vendo o que sou é possível imaginar o caminho percorrido pelo seu pensamento, a sua história. E vendo a história é possível imaginar a vida, porque o pensamento nasce da vida (ALVES, 2004, p. 21).

O otimismo de Alves em relação a um país possível entra em colapso com o golpe militar de 1964. Fato que ele toma conhecimento ainda em terras americanas, quando preparava o seu retorno para o Brasil. Momento de ansiedade, que se intensifica quando é informado do destino de alguns amigos com os quais tinha identificação. Mesmo assim, ele retorna à sua pátria, pois ali havia deixado mulher e filhos. Teria que enfrentar a situação, não obstante o medo e a insegurança.

De volta ao Brasil, não demora muito a sofrer as primeiras perseguições. Inicialmente de sua própria igreja, e depois dos novos donos do poder 4. Com a mudança de regime político no país, ocorre também uma virada conservadora no seio da própria Igreja Presbiteriana. Documento elaborado por autoridades religiosas o acusa de subversivo político, herege, modernista, etc. O referido documento não demora a chegar nas mãos dos militares, que inicia investigação sobre o religioso, no período que ele ainda estudava nos Estados Unidos, enquadrando-o na Lei 1802 de 1953, que dizia respeito aos crimes contra o Estado e a ordem social e política 5.
Diante da situação, sem apoio da igreja e indiciado pelos militares, não restou alternativa, senão o exílio. Nem bem chegara e já tinha que partir. Consegue sair do país com ajuda de amigos que, solidarizando-se com ele, provêm os recursos necessários para que ele pudesse, ainda em tempo, deixar o Brasil juntamente com sua família. Foram momentos difíceis, como ele mesmo relata 6.

É no exílio, distante de sua terra natal, que Rubem Alves tem a oportunidade de realizar uma avaliação crítica do que até então esteve a pensar.  A revolução sonhada, tida como certa e inevitável, fora abortada com a intervenção militar. Onde estava o equívoco de suas convicções e pensamentos? De qualquer forma, a desilusão não lhe rouba a esperança e nem lhe retira a crença na capacidade de realização do homem. Entretanto, de alguma maneira essa situação o obriga a renovadas buscas, a uma reflexão que leve em conta as dores vividas, que o conduza também a uma compreensão mais apurada das raízes da própria esperança humana. Uma pergunta colocar-se-á como ponto de partida: o que permite ao homem manter-se íntegro mesmo nas situações mais difíceis e desumanas? Em outros termos: o que permite ao homem não sucumbir diante das adversidades, da dor, da perseguição? Penso que esta interrogação está na base do seu esforço em construir um novo humanismo, uma iniciativa que antes de tudo procurava respostas para sua própria situação existencial. Primeiro vem a vida, depois o pensar. Neste sentido, podemos dizer que o seu pensar torna-se uma extensão do se próprio corpo.

O homem continua sendo sua principal preocupação. Podemos afirmar que, neste momento, o autor mineiro se torna mais filosófico. Já não tem em vista apenas o homem brasileiro, mas todo aquele que vive em situação de opressão e deseja caminhar para a libertação. Uma de suas pretensões é descobrir as raízes da esperança, sem a qual o homem não vive. E esperança não se identifica com otimismo. Uma coisa é você caminhar rumo ao futuro com base, ou se apoiando, nas evidências encontradas no presente; basta algumas operações racionais para que as possibilidades possam ser estabelecidas. No entender de Rubem Alves, assim procedem os otimistas. Todavia, com quem tem esperança a postura é outra. Os esperançosos acreditam em um futuro possível, a despeito das evidências do presente. Assim fizeram os profetas do Antigo Testamento, pelos quais ele sempre teve um grande apreço.

Alves amplia, assim, suas interlocuções. Novos pensadores são acrescidos à lista daqueles com os quais havia dialogado: Marx, Vieira Pinto, Shaull, Barth, Tillich, Niebuhr, Josué Castro. Agora surge Freud, Norman Brown, Bloch, Wittegenstein, Feuerbach, Agostinho, Kierkeggard, Nietzsche, etc, sem esquecer alguns poetas. É com eles, suas dores e seus sonhos, que seu humanismo começa a ser tecido. As várias interlocuções o ajudarão, de maneira criativa e original, a articular as múltiplas contribuições. Alves não foi um pensador que ficou a realizar exegese de nenhum autor. Apropriou-se daquilo que julgou mais importante em cada pensador, em função de criar uma roupagem simbólica para revestir as intuições que emergiam da sua relação com sua realidade. Afirmará ele, eu fui “catando fragmentos , um aqui, outro ali. Com coisas roubadas aos conquistadores eu queria fazer uma flauta que tocasse a melodia dos derrotados (ALVES, p.1986).

Como o filósofo concebe o homem? Primeiramente como um ser histórico. Com isso queria dizer que o homem se faz no tempo e com o tempo. Não tem uma ideia abstrata e a-histórica do homem que possa valer para todos os lugares e momentos históricos. Essa era sua concepção de homem já antes do exílio, mas agora, nesse novo momento, deu mais densidade e consistência ao que já havia postulado. E foi nesses termos que iniciou sua tese de doutorado em Princeton:

O homem é um ser histórico. Ele não nasce no mundo das coisas, das pessoas e do tempo como um produto acabado. Seu ser não preexiste à história. Torna-se o que é através da história de suas relações com o meio ambiente. Não é, por conseguinte, apenas um ser no mundo: torna-se ser com o mundo [...] O homem se modifica por não ser uma mônada: ele é aberto. Por ser aberto é capaz de responder, ao invés de simplesmente reagir. O reagir é um ato que se localiza na esfera do biológico. O responder, contudo, pertence à esfera da liberdade (ALVES, 1996, p.45).

A realização da história só pode ocorrer no reino da liberdade, mas ela não joga um papel absoluto, uma determinação inflexível; outros fatores estão presentes neste processo. E um deles é o desejo. O homem é um ser de desejo, também se encontra impulsionado pela imaginação e pelos sonhos. No processo histórico não se pode excluir elementos de ordem afetiva. Tal como a aranha que constrói sua teia com o que extrai de seu corpo, o homem constrói mundos desde os desejos que brotam de suas entranhas, na busca de uma ordo amoris, de uma ordem que possa estar mais próxima dos seus anseios de felicidade. Trata-se, em suas palavras, do poder do corpo, que quer trocar as estradas batidas por veredas desconhecidas. Utopia não é o nunca será, mas o ainda não. O que acontece quando nos encontramos diante de uma realidade que é negadora da vida? Neste caso,

A imaginação emigra da realidade, aliena-se, torna-se estranha ao mundo, recusa o veredito dos fatos, começa a explorar possibilidades ausentes, a montar fantasias sobre o jardim que poderia existir, se o amor e o trabalho transformassem a realidade. A imaginação voa e o corpo cria. A imaginação são as asas do corpo. O corpo, a força da imaginação. O desejo e o poder se interpenetram para dar à luz a esperança (ALVES, p. 45).

Como bem diz Alves, o gemido dos sacrificados é o anuncio de um futuro possível, que se apresenta inicialmente como nostalgia, como paraíso perdido. Talvez alguém possa questionar: não são os nossos sonhos produzidos em massa pelas novas tecnologias, manipuladoras do comportamento humano? Isto foi muito bem percebido por nosso autor, já nos primórdios da década de 1970, em seu livro Tomorrow´s Child, traduzido muitos anos depois no Brasil com o titulo Gestação do Futuro 7. De qualquer forma, nos assevera o pensador mineiro, que são os desejos que nos movem. Não somos reprimidos unicamente pelas ideias que temos, mas antes de tudo, pela paixão que está subjacente às mesmas. Quando estamos apaixonados por uma causa, só a morte ou o banimento torna-se o remédio para a manutenção do status quo. No seu entender, não ocorrem mudanças senão impulsionados pelo desejo. Trata-se de um constituinte fundamental que está na base de todas as possibilidades de mudança. É a forma como o homem se afirma na história, como homo creator.
Alves assinala também um outro aspecto importante de sua antropologia: o símbolo. O homem é um ser simbólico. Ele mora nos símbolos. Com a linguagem entramos no mundo humano, nos apropriamos do legado conquistado pelos nossos antepassados, nos comunicamos, nomeamos as novas possibilidades que emergem dos novos anseios e desejos 8.

O pensador mineiro construiu o seu humanismo, cujas ideias básicas aqui apenas indicamos, e a partir dele tentou pensar as várias dimensões da experiência humana.

A religião. Ela não diz respeito a uma realidade distante e transcendente do mundo, mas aos anseios e sonhos mais profundos que o homem tem em seu coração. Alves postula que Deus é um outro nome para a esperança humana. Sem recusar por completo as contribuições de Marx, Feuerbach e Freud, as quais submeteu a uma avaliação crítica, olha a religião numa perspectiva positiva. Não necessariamente é ópio, ou resposta para o desamparo humano, ela pode, no entanto, contribuir na realização de uma ordem social e política mais justa e humana.

A ciência. Desde os tempos que foi professor de epistemologia na Faculdade de Ciência e Letras da Unicamp, buscou, à luz do seu humanismo, enfrentar questões tanto epistemológicas (vinculadas ao processo de construção do conhecimento humano) 9, como de problemas que diziam respeito ao uso político, social e econômico do saber científico. Aqui entra também a discussão de ordem ecológica, que já no início da década de 1970 fazia parte de sua pauta de discussões. Já nessa época Alves chamava a atenção para os problemas vinculados à exploração desordenada da natureza, e os riscos que daí emergiam.

A educação. Ainda na Unicamp, Alves se transferiu para a Faculdade de Educação, onde tenta pensar a educação considerando sua concepção de homem. Nunca construiu uma filosofia da educação, um sistema coerente sobre o processo de ensino, mas escreveu vários livros nos quais critica os nossos sistemas educacionais, e a educação aí realizada. Nunca negou o papel da transmissão do conhecimento, mas ressaltou a necessidade de uma educação significativa que considerasse a vida como valor maior, e uma reeducação dos sentidos, que pudesse contribuir neste processo. Sobre o assunto, entre outros livros, podemos citar Conversas com quem gosta de ensinar, Alegria de ensinar, Estórias de quem gosta de ensinar, Educação dos sentidos.

Primeiro a vida nos escolhe, depois escolhemos nós. Em determinado momento, ocorre uma metamorfose na vida do pensador mineiro. Ele, que sempre estivera na companhia dos poetas, torna-se um deles. O nascimento de sua filha Raquel, com uma fissura labial, apenas oportunizou o que se encontrava em gestação. O poeta rouba a cena, e passa a orientar o seu discurso. O teólogo e o filósofo se ausentaram, passaram a acompanhar atentamente, e de modo silencioso, o que o poeta tinha a dizer naquelas trilhas que antes eles haviam aberto. O poeta doravante passa a trabalhar no sentido de despertar a beleza adormecida em cada um, para que novos mundos pudessem se tornar possíveis e o sentido erótico da vida fosse levado a sério. Ainda temos muito que aprender com este pastor de sonhos.

Referências.
ALVES, Rubem. Variações sobre a vida e a morte. São Paulo: Paulinas, 1982.
_____________. Suspiro do oprimido. São Paulo: Paulinas, 1984.
_____________. Gestação do futuro. Campinas: Papirus, 1996.
_____________. Da esperança. Campinas: Papirus, 1987.
_____________. Filosofia da Ciência. São Paulo: Ars Poética, 1996.
_____________. O que é religião. São Paulo: Loyola, 2002.
_____________ .  Teologia da libertação em suas origens. Vitória: IFTV-Redes, 2004.
DIAS, Zwiglio. Memórias ecumênicas protestantes. Os protestantes e a Ditadura. Colaboração e Resistência. Rio de Janeiro: Koinonia, 2014.
JUNIOR, Gonçalo. É uma pena não viver. Uma biografia de Rubem Alves. São Paulo: Planeta, 2015.
PINTO, Álvaro Vieira Pinto. Consciência e Realidade Nacional. Rio de Janeiro:ISEB, 1960.

SODRÉ,Nelson Werneck. Introdução à Revolução Brasileira: Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

1 - Cf. SODRÉ,1967.

2 - Cf. ALVES, 2004.

3 - Sua dissertação foi publicada pelo Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória, em 2004, com o título Teologia da Libertação em suas origens. Uma interpretação teológica do significado da revolução no Brasil em 1963.

4 - Sobre a relação entre militares e protestantismo brasileiro, veja DIAS (org)2014.

5 - Cf. JUNIOR, 2015, p. 231-234.

6 - Alves, 1987, p. 31.

7 - Cf. ALVES, 1984, p. 43-554.

8 - Cf. ALVES, 1984, 9-36.

9 - Cf. Alves, 1996.