Poemas “desentranhados de alguns livros seus, por Carlos Rodrigues Brandão”* e raros poemas escritos pelo próprio Rubem Alves
As maçãs eram sacramentos
Comendo o mundo
aquelas maçãs estavam cheias de outono,
de folhas amarelas, de folhas vermelhas,
de geada, de cheiro de folhas no chão.
De nostalgia.
Dentro de cada maçã havia um mundo,
o mundo deles.
Comendo a maçã, eles comiam
também o mundo que havia nela.
As maçãs eram sacramentos.
as minhas maçãs eram sacramentos
de um outro mundo,
ainda que estivessem na mesma cesta.
A maçã, 14
E Deus entrou na dança
E esse caracol de sons foi enrolando tudo,
tomando a forma de um homem e uma mulher
que se abraçavam e se separavam,
por vezes entravam um dentro do outro
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*Antropólogo, Prof. Emérito da UNICAMP, psicólogo e poeta. Especialista em educação e religiosidade popular com vários livros publicados. Amigo de longa data de Rubem Alves.
de tal forma que nem era possível saber qual era qual,
e Deus entrou na dança. Os corpos nus
e achavam bonita a nudez porque eram crianças
que brincavam uma com a outra,
o corpo da mulher era brinquedo para o homem,
o corpo do homem era brinquedo para a mulher,
e de vez em quando eles desapareciam
numa explosão de cores e perfumes,
e Deus se viu refletido pela primeira vez nos olhos deles,
duas crianças, homem e mulher...
E do seu amor surgiram
as primeiras palavras a serem faladas.
Perguntaram-me se acredito em Deus, 32
Deus é o nome que dou
Deus é o nome que dou
a um vazio imenso
que mora na minha alma.
Vazio onde voam os meus desejos
na esperança de encontrar, no futuro,
as coisas amadas
que o tempo me roubou.
O melhor de Rubem Alves (omdra) 69
Perguntaram-me se acredito em Deus
Perguntaram-se se acredito em Deus.
Respondi com versos do Chico:
“Saudade é o revés do parto.
É arrumar o quarto
para o filho que já morreu”.
Sou um construtor de altares.
Construo altares à beira
de um abismo escuro e silencioso.
Eu os construo com poesia e música.
Os fogos que neles acendo
iluminam o meu rosto e me aquecem.
Mas o abismo permanece
escuro e silencioso.
Fé, um morango
Fé é um morango
que se come pendurado num galho
à beira do abismo,
pelo gosto bom que tem,
sem nenhuma promessa
de que ele nos fará flutuar
quando o galho se quebrar...
omdra, 126
As aves do céu, os lírios dos campos
Tudo o que vive é pulsação do sagrado.
As aves dos céus, os lírios dos campos...
Até o mais insignificante grilo
no seu cricri rítmico,
é uma música do Grande Mistério.
É preciso esquecer os nomes de Deus
que as religiões inventaram
para encontrá-lo sem nome
no assombro da vida.
omdra, 75
E a alma pode então
Por vezes, nas minhas fantasias,
eu entro para um mosteiro.
Protegidos por seus muros de pedras,
seus jardins e fontes falam de calma,
do tempo vagaroso e nostálgico dos sinos,
que pontuam com música sempre igual
a presença da eternidade.
Separado da loucura dos homens
o corpo se acalma.
E a alma pode então se entregar à alegria
dos pensamentos mansos.
Pelas manhãs os monges leem seus breviários,
as mesmas palavras sagradas
que vão atravessando os séculos.
Conversas sobre política, 71
A branda fala da morte
A branda fala da morte
não nos atemoriza
por nos falar da morte.
Ela nos aterroriza
por nos falar da vida.
Na verdade a morte
nunca fala sobre si mesma.
Ela sempre nos fala
sobre aquilo que estamos
fazendo com a própria vida,
as perdas, os sonhos
que não sonhamos
os riscos que não tomamos
os suicídios lentos
que perpetuamos.
O quarto do mistério, 221
Sagrado
Sagrado
é aquilo que mesmo
depois de morrer,
volta sempre
chamado pela voz da saudade.
Deus existe
para nos curar da saudade.
omdra, 105
A proximidade da morte ilumina a vida
A proximidade da morte ilumina a vida.
Aqueles que contemplam a morte nos olhos
veem melhor, porque ela tem o poder
de apagar do cenário
tudo aquilo que não é essencial.
Os olhos dos vivos,
tocados pela morte, são puros.
Eles só veem aquilo
que o amor tornou eterno.
A morte nunca fala sobre a morte,
Ela só fala sobre a vida.
E ela sempre nos pergunta:
“o que é que você está esperando”
omdra, 204
Deus é como os olhos
Deus nunca foi visto por ninguém.
Por acaso a gente vê os próprios olhos?
Quem vê os próprios olhos é cego.
Para ver com os olhos
é preciso não ver os olhos...
Deus é como os olhos.
Não podemos vê-lo
para ver através dele.
Deus é um jeito de ver.
Perguntaram-me... 101
Deus é como o vento
Deus é como o vento.
Sentimos na pele quando ele passa,
ouvimos a sua música
nas folhas das árvores
e o seu assobio
nas gretas das portas.
Mas não sabemos de onde vem
nem para onde vai.
Na flauta o vento
se transforma em melodia.
Deus é uma suspeita
de nosso coração
de que o Universo tem um coração
que pulsa como o nosso.
Suspeita... Nenhuma certeza.
Perguntaram-me..., 54 e 55
POEMAS ESCRITOS POR RUBEM ALVES
Na dor da ausência
Faço meus poemas sobre um Vazio, o meu Vazio.
Não conheço nenhum outro.
Em obediência a um mandamento sacramental:
que o pão fosse comido e o vinho fosse bebido
na dor da Ausência.
A magia não está nem no pão
e nem no vinho
mas nas Palavras que dizem a tristeza da Falta.
O sacramento celebra a Ausência de Deus,
ele enuncia os limites dos espaços da espera que se dilatam
dentro de mim, eroticamente.
É a ausência que me excita.
Da esperança, 17
Teologia é um brinquedo que faço
Teologia é um brinquedo que faço.
É possível plantar jardins,
pintar quadros,
escrever poemas,
jogar xadrez,
cozinhar,
fazer teologia...
Claro que um jogo não exclui o outro.
Alguns dirão que isso não é coisa séria.
Eu os conheço muito bem e já havia advertido o leitor contra eles.
Quem se leva a sério é, no fundo, um inquisidor.
Está só à espera de que a ocasião apareça.
Teologia é um exercício de beleza e humildade.
Brincamos,
como a própria Santíssima Trindade que,
nos jogos intelectuais do venerável Santo Agostinho
só fazia uma coisa,
nas transas intra-trinitárias:
brincar.
Autoerotismo.
Da esperança, 19 e 23
Sonhar Deus de novo
Sonhar Deus de novo, de um outro jeito.
O pedaço arrancado do nosso corpo,
nome não dito da saudade,
satisfação fugaz (como a brisa que passa) do desejo
(inesquecível)
Conspiradores:
companheiros a quem não precisaria explicar coisa alguma,
pois que respirávamos o mesmo ar: com/spirar...
Pois não é assim?
Da esperança, 35
Pai, mãe de olhos mansos
Pai, mãe de olhos mansos,
Sei que estás invisível, em todas as coisas.
Que o teu nome me seja doce.
A alegria do meu mundo.
Traze-me as coisas boas em que tens prazer:
O jardim,
As fontes,
As crianças,
O pão e o vinho,
Os gestos ternos,
As mãos desarmadas,
Os corpos abraçados...
Sei que desejas dar-me o meu desejo mais
fundo desejo que esqueci...
Mas tu não esqueces nunca.
Realiza, pois, o teu desejo, para que eu possa rir.
Que o teu desejo se realize em nosso mundo,
da mesma forma como ele pulsa em ti.
Concede-nos contentamento nas alegrias de
hoje: o pão, a água, o sono...
Que sejamos livres da ansiedade.
Que nossos olhos seja tão mansos para com
os outros como os teus são para conosco.
Porque se formos ferozes não pode-
remos acolher a tua bondade.
E ajuda-nos para que não sejamos enganados
pelos desejos maus, e livra-nos daquele que
carrega a Morte dentro dos
próprios olhos. Amém.
Perguntaram-me..., 154
livros de Rubem Alves
lidos para se encontrar o que se leu
Da esperança
1987, Papirus, Campinas
Retorno e Terno
1995, Papirus, Campinas
O quarto do mistério
1995,Papirus, Campinas
Estórias de quem gosta de ensinar
2000, Papirus, Campinas
Conversas com quem gosta de ensinar
2000, Papirus, Campinas
A alegria de ensinar
2000, Papirus, Campinas
Fomos maus alunos
(Com Gilberto Dimenstein)
2003, Papirus, Campinas
Encantar o mundo pela palavra
(com Carlos Rodrigues Brandão)
2010, Papirus, Campinas
Conversas sobre educação
2003, Verus Editora, Campinas
Conversas sobre Política
2002, Verus Editora, Campinas
Perguntaram-me se acredito em Deus
2007, Planeta, São Paulo
O melhor de Rubem Alves
(organizado por Samuel Lago)
2008, Nossa Cultura, Curitiba