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RECORDANDO E CELEBRANDO A VIDA E A OBRA DE RUBEM ALVES
Ano 10 - Nº 29/30
Outubro de 2015
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Rubem Alves e o Prazer
Por: Leopoldo Cervantes-Ortiz
Data: 22/10/2015

“Não quero novidades. Não vou comprar apartamentos  ou
terrenos. Não  quero  viajar  por  lugares que  desconheço.
Eliot: ‘E ao final de nossas longas explorações chegaremos
finalmente  ao lugar de  onde partimos  e  o conheceremos
então  pela primeira vez...’É isso. Voltar às minhas origens,
às coisas de Minas que tanto amo... a cozinha, os jardins de
trevo,  a malva,  as romãs e  os manacás, as  montanhas,  os
riachinhos, as caminhadas...” (1)    R.A.

 

Panorama pessoal

No dia 15 de setembro de 2013, Rubem Alves completou 80 anos. Para comemorar o acontecimento vários de seus leitores/as e amigos de diversos países organizamos uma pequena homenagem (http://issuu.com/lcervortiz/docs/homenaje-80 ; por seu lado a revista Brasilis publicou uma série de fotografias pessoais de Rubem Alves em http://revista.brasil.gov.br/personagens/rubem-alves, sitio dedicado pelo governo brasileiro para divulgar a vida e a obra de personagens relevantes do país). Algo  semelhante fizemos em outra ocasião, frente a qual Rubem reagiu com enorme surpresa ao advertir que em muitas igrejas evangélicas latino-americanas seu nome não era estranho e que ele era lido com admiração e muito proveito. Isso porque, depois do seu “afastamento institucional” do protestantismo se supunha que tinha ficado à margem de qualquer contato com ditas comunidades. Mas, afortunadamente, não foi isso que aconteceu, pois seus seguidores somam legiões em vários espaços e até existem vários grupos nas redes sociais que compartilham seus textos e seus livros, demonstrando de que maneira “o novo Alves”, não necessariamente o que foi um dos pioneiros da chamada “teologia da libertação”, em sua faceta de “cronista”, os quais  continua alimentando com seu libérrimo e sumamente criativo estilo literário.

Isto porque longe ficaram os anos nos quais este pensador e sábio escrevia de uma maneira chata, como ele mesmo disse, pois chegou um momento em que decidiu abrir-se à literatura e a poesia em particular, para descobrir-se como um autor renovado, disposto a falar das coisas da vida com uma simplicidade e uma beleza que nunca tinha imaginado. Porque nos anos sessenta Rubem Alvessonhava em “fazer a revolução” e a essa utopia dedicou grande parte de seus escritos e ilusões. Em 1974, como parte de um processo de forte introspecção que o levou inclusive ao divã da psicanálise elaborou um texto que o libertou, para sempre, de todas as cargas ideológicas e morais que  o mantiveram submetido durante tanto tempo. “Do Paraíso ao Deserto” é  o título dessas reflexões autobiográficas onde descreve, sem entrar necessariamente,

______________________
*Pastor e teólogo da Comunidade de Igrejas Reformadas do México. Escritor prolixo, poeta e médico.
Mestre em Teologia pela Univ. Bíblica Latino-americana da Costa Rica. Autor de “A teologia de Rubem Alves: poesia, brincadeira e erotismo”: Ed. Papirus, 2005.

 

em detalhes concretos, essa experiência pela qual passou e que o preparou para que, quase dez anos depois, em 1983, descobrisse por fim as bondades do lúdico, do corpo e a beleza, embora seja preciso dizer que a partir de seus  primeiros livros já se anunciava o rumo que tomaria  sua reflexão e sua vida.

Sem nunca renegar sua tradição protestante, a qual dedicou vários textos memoráveis reunidos em Dogmatismo e Tolerância (S. Paulo: Paulinas, 1982) nos quais explorou as luzes e sombras dessa herança, manteve-se a boa distância das igrejas  mas continuou fazendo uma teologia que não admitia limites nem fronteiras,  porque fundamentada na liberdade da imaginação. Suas palavras são diáfanas: “Sou protestante. Hoje muito diferente do que fui. Não há retorno. Tão diferente que muitos me contestarão, recusando-me cidadania no mundo da Reforma. Alguns me denunciarão como espião ou traidor. Outros permitirão minha presença, mas exigirão o meu silêncio. O que me faz duvidar de mim mesmo e suspeitar que, quem sabe, eu seja de fato um apóstata. Mas aí protestantes de outros lugares me confirmam, ouvindo-me, dando-me as mãos, o pão e o vinho...” (2) Poder-se-ia dizer que, agora, levou a teologia da libertação até suas últimas consequências assim que se converteu em um “distribuidor de felicidade” graças à “antropofagia literária” que praticou e promoveu e aos sacramentos textuais que repartiu  por toda parte e pelos quais continuará entrando em comunhão com milhões de pessoas.

Educador de tempo integral, com o passar dos anos decantou suas observações para derivar a uma escritura lúdica, cem por cento dedicada a explorar os interstícios da vida em todas as suas manifestações e a salpicar de poesia tudo o que viveu e lhe interessou. Uma amostra disso é o seu Livro sem fim (2002) que em uma nova e magnífica edição com o título Variações sobre o prazer. Santo Agostinho, Nietzsche, Marx e Babette  me trouxe meu amigo Ismael Ortega em meio às celebrações do 80º aniversário de Alves. ?Pessoalmente, depois de acompanhar seu trabalho durante mais de 15 anos, me parece que este livro é um dos mais representativos porque reflete a liberdade que ele alcançou como escritor e reúne muitos dos temas que, obcessivamente, reuniu durante esses trinta anos que também comemoram seu renascimento como pessoa e como fabulador de mundos imaginários, mas certos, pois tal como reza a citação de Paul Valery, que nunca cansou de repetir: “Que seria der nós sem a ajuda das coisas que não existem?”

No prefácio explica as razões porque produziu este livro tão pessoal, cheio de citações nas margens e até com uma bibliografia final que lembra seus anos de juventude, quando já demonstrava uma arte elegante, provocadora e sem concessões. Alves diz que Variações sobre o prazer é fruto da consciência do fim, da certeza de que seu tempo se acaba e de que é necessário e até obrigatório colocar-se frente à linguagem e obrigá-la a dizer “as coisas da alma”, as que sempre estiveram aí e esperam por sair. “Senti, então, que não gostaria que aquilo que eu havia escrito ficasse enterrado. Afinal de contas, o que escrevo é parte de mim mesmo. Mas sabia, ao mesmo tempo, que meus esforços para terminar o livro seriam inúteis. Brinquei, então, com a ideia de publicar o livro do jeito que estava, não terminado. Nisso ele se pareceria com a vida. Ela termina sempre sem que tenhamos escrito o último capítulo.” (pg. 13) E assim, este grande mestre que  na plenitude de suas faculdades desliza suas ideias no tempo e no espaço “abandonou”  este exercício lúcido e  lúdico para deixar constância de sua fidelidade à escritura que lhe ensinaram seus poetas e autores de cabeceira.

E assim foi que este Livro sem Fim ficou inconcluso, com tudo o que,  em suas mais de 180 páginas, brota do alento de alguém que acerta contas com seus autores favoritos e suas influências mais profundas, tal como o anuncia no subtítulo: Santo Agostinho (apesar dos pesares), Nietzsche (o autor permanente da mesa de cabeceira, sempre à mão porque esse The portable Nietzsche, de Walter Kaufmann o acompanhou sempre), Marx (a quem leu e releu de uma maneira sumamente particular; para prova-lo está este outro volume: O que é a Religião, que não envelhece com o passar do tempo) e Babette, a cozinheira francesa que abriu outras janelas vitais àquelas mulheres luteranas...Um livro sem o menor desperdício, um Alves que se mostra sincero com todos e que invade a memória com variações de teologia (em primeiro lugar), filosofia, economia e a arte culinária, outra de suas grandes predileções.

Uma transubstanciação literária

 

                                               As  ideias do  eu pensante  são aves engaioladas – pertencem
ao eu que faz com elas o que deseja. As ideias que moram no
corpo  são  aves  selvagens – só  vêm  quando  desejam. Elas
tem vontade e ideias próprias. (3)  R.A.

Por volta de 1981 Alves decidiu mudar para sempre seu estilo de escrita e indagar sobre os assuntos da vida de uma maneira diferente da teologia que tinha aprendido e que desenvolveu muito bem (é preciso dizer), decantou seu estilo e se renovou continuamente graças a uma imersão infatigável em seus abismos pessoais e em tudo o que o rodeava. Uma pessoa contribuiu para que essa transformação se realizasse de modo mais formal: seu amigo Jether Pereira Ramalho o convidou, nesse mesmo ano, para que escrevesse sobre temas livres para a revista ecumênica TEMPO & PRESENÇA. O primeiro artigo ali publicado seria o ponto de partida que se concretizaria em Dogmatismo e Tolerância, depois do feroz ajuste de contas com a Igreja Presbiteriana do Brasil que foi Protestantismo e Repressão (1979; novo título: Religião e Repressão, 2005). (4) Longe de qualquer vingança ou ressentimento, Alves se transfigurou num escritor que pouco a pouco alcançaria uma prosa impactante e concisa, pessoal e penetrante, ao mesmo tempo.  Esse oficio o levou a incorporar-se a Academia Campinense de Letras, destino similar de  seu colega Gustavo Gutierrez ( o fundador católico da teologia latino-americana da libertação), membro, por sua vez, da Academia Peruana da Língua.

Poucos anos depois, ele mesmo deu fé de sua transformação, embora, todavia sem a clareza e a certeza que lhe permitiriam alcançar suas leituras de autores como William Blake, T.S. Eliot, Fernando Pessoa, Ludwig Wittgenstein, Cecília Meireles, Gaston Bachelard, Octavio Paz ou Adélia Prado, para citar apenas alguns. Os anos noventa foram o cenário do novo desenrolar narrativo e reflexivo do sempre teólogo (para seu pesar)  que agora se movia como peixe na água, já livre das amarras doutrinais que, em outro tempo, atenazavam sua criatividade. O “Livro sem Fim”, renomeado como “Variações sobre o prazer” é uma porta de acesso a sua “oficina íntima de produção escritural” porque exibe sem pudor nem arrependimento a maneira pela qual as ideias que brotam de seu corpo o possuem por meio de uma inspiração nada etérea, sensível, mas que permanece sem uma explicação necessariamente lógica.

Depois de explicar, de modo divagante, o que havia acontecido em seu interior e em sua experiência quando surgiu  o desejo de escrever este volume, Alves mistura, em seu novo método de pesquisa, todos os elementos que lhe serviram para avançar na escrita. Assim, juntam-se numa mesma página Tales de Mileto e Nietzsche, os quais, junto a outros autores bombardeiam o leitor/a  à partir das margens  para estimular sua imaginação com múltiplos rumos de interação e busca. O primeiro capítulo, uma ampla digressão,  proscrita nos textos acadêmicos,  o mostra de corpo inteiro: “Textos de saber proíbem que os autores se entreguem a confissões sobre os caminhos e descaminhos dos seus pensamentos antes de atingir o seu destino de conhecimento. O que se exige de um texto de saber é que o autor faça uma assepsia rigorosa nos seus materiais. Tudo aquilo que não diz respeito ao caminho em linha reta, que leva do problema inicial à conclusão, deve ir para a lixeira.” (5)

Com este pano de fundo, Alves processa a transubstanciação literária de tudo o que tinha assimilado por ser um antropófago consuetudinário  que, num esforço quase religioso, converte em novo sacramento o que brota de sua pluma. A isto se refere o segundo e breve capítulo “Hoc est corpus meum”, isto é, as palavras sacramentais de Jesus de Nazaré. O autor agora escrevia com seu sangue e sua própria pessoa, e cada texto o retratou ante o olhar do leitor: “As coisas que digo, tal como nas telas de Arcimboldi e na escritura de Borges, traçam as linhas de meu rosto.” (6) A arte se torna bem clara, “busca de comunhão”. Sua carne e seu sangue nos são entregues num ato estético-litúrgico que atualiza a vida de quem procedem os textos. Cada leitura é um ato de degustação. E novamente acontece o “ritual antropofágico”, tudo isso dito numa linguagem que vem do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, do já distante1928, nos anos do surgimento da vanguarda poética brasileira.

Os capítulos que seguem, com o título mudado, “As metamorfoses da velhice” (“Depois de velho virei menino” era o anterior); “O esquecimento: Barthes” (Me esqueci do sabido para me lembrar do esquecido”, o mesmo caso) abundam na reinterpretação com as novas ferramentas, dos caminhos recorridos. Em “Dos saberes aos sabores” e “Os saberes do corpo”, reinventa as apreensão do mundo, agora de uma maneira gastronômica e extremamente sensorial, mas sem reduzir a experiência apenas ao sentido do gosto.  Por isso o capítulo seguinte se chama: “O corpo: ele sabe sem saber”(antes: “Por uma pedagogia da inconsciência”). Novamente, como em tempos passados (em Filhos do amanhã e O enigma da religião) analisa a função da linguagem, mas a partir de fontes muito diferentes das de seu amigo Paulo Freire. A educação sempre lhe faltou com o respeito ao corpo, a seus desejos de aprender unicamente o que lhe serve e gosta. Por isso a ciência falhou em impor-se;  depois de tudo, os livros de ciência são livros “de receitas”.

Essa é a origem de “Variações sobre o Prazer” (“A razão serva do prazer”), onde faz uma releitura do Bispo de Hipona, e não se engana: . “A experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio [ “a porta da mística”, eu agregaria]. A teologia de Santo Agostinho  se constrói  sobre esse vazio que segue ao prazer. (Não se esqueceu do poema de Heládio Brito sobre os caquís, fruta gostosa...) Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por algo indefinível.” (7) O prazer não é a mesma coisa que a alegria. Daí que suas “variações” sigam o mesmo rumo:  Santo Agostinho na teologia; Nietzsche, na filosofia; Marx, na economia; e, para encerrar, Babette, a cozinheira, , acompanhada de Tita, a de Como água para chocolate. Esta variação é definitiva, onde tudo se redefine de  maneira quase total: sua aproximação ao saber da cozinheira é enfático. “O banquete se inicia com uma decisão de amor”. Os sabores que elas dominam controlam o mundo porque, a diferença de um nutricionista, amo e senhor das quantidades e das calorias: “ A cabeça da cozinheira funciona ao contrário. Não considera vitaminas, carboidratos e proteínas. Sua imaginação está cheia de sabores. Sonha com os efeitos que os sabores irão produzir no corpo de quem come. Não quer matar a fome. O que ela deseja é fazer amor com quem come, através dos sabores. Quando a fome está satisfeita, o festival de amor chegou ao fim. [...]Gostaria que o texto evangélico fosse outro: ‘bem-aventurados os que têm fome porque eles terão mais fome’. A cozinheira deseja que o seu convidado morra de prazer!” (8)

A paixão de Alves pela cozinha foi estimulada de maneira monumental pelo filme dinamarquês “A festa de Babette” (1987) tanto que  quando empreendeu a aventura de abrir seu próprio restaurante, não foi outro o seu nome. Em outro momento se espraiou sobre o filme com palavras que continuam ressoando por sua perspicácia e empatia: “ Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia o segredo de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. ,De fato a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas...” (9)

Para ele essa é agora a grande metáfora da vida, o saber e o prazer: a cozinha, porque os olhos da cozinheira “são iguais aos olhos de um poeta”.(10) A poesia é culinária, a culinária é filosofia, diz em seguida. A poesia são palavras boas para se comer. O poeta  cabe um universo.” (11) Prazer, sabedoria, poesia e cozinha: espaços para degustar a existência e o tempo. Esse foi e será para sempre o novo Alves, sempre teólogo e poeta.

 

Notas:

(1)Alves, Rubem. “Prefácio. Eu não deveria ter tentado escrever este livro.” In Variações sobre o prazer. Santo Agostinho, Nietzsche, Marx, Babette. São Paulo: Planeta, 2011. Pg. 12

(2)Alves, Rubem. “Confissões de um protestante obstinado.” In Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982. Pg. 9

(3)Alves, Rubem, Variações sobre o prazer...., pg. 22
(4)Campos, Leonildo S., “O discurso acadêmico de Rubem Alves sobre ‘protestantismo’ e ‘repressão’: algumas observações 30 anos depois”. In Religião e Sociedade, vol. 28, nº2. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 2008. www.scielo.br/pdf/rs/v28n2/a06v28n2.pdf

(5)Alves, R., op. cit., pg. 29.

(6)Ibid., pg. 40.

(7)Ibid., pg. 86.

(8)Ibid., pg. 138.

(9)Cf. Alves, R., “A festa de Babette”, in  www.releituras.com/rubemalves_babette.asp.

(10) Alves, R. Variações sobre o prazer, pg. 150.

(11)Ibid., pg.151.

 

                                                                    (Traduzido do espanhol por Zwinglio Dias)