Logo que vi o título da crônica que me foi pedida me veio à
lembrança a conhecida frase do escritor espanhol Antonio Machado: “caminhante
não há caminhos, se faz caminho ao andar”. Estranhas associações
da mente ligadas às inesperadas associações da vida!
Mas, dirão vocês nada lhe foi pedido sobre o caminho dos caminhantes.
Trata-se dos caminhos de Deus. E é sobre Deus que é preciso escrever.
E de Deus em um lugar preciso, na América Latina! Tarefa difícil
para uma pequena crônica!
As perguntas surgiram sem dó em minha cabeça. Como saberei dos
caminhos de Deus? Como terei certeza se os indicados são de fato seus
caminhos, suas veredas, seus passos, suas marcas? Quem os definiu? Quem os identificou?
Quem os reconheceu? Quem os proclamou? Quem os acolheu? Quem os ensinou?
Como ousarei falar deles? A partir de que critérios? A partir de que
imagens?
Seriam caminhos de mulheres? De homens? De jovens, de idosos, de crianças?
Seriam caminhos indígenas, negros, amarelos, brancos ou misturados?
Caminhos do Deus de quem? Do meu? Do papa? De Pinochet? De Bush?
Fica cada vez mais claro que se Deus não é múltiplo ao
menos tem caras múltiplas! Já não se pode mais falar de
Deus como se fosse alguém de um rosto único. Por isso temos que
perguntar: quem é mesmo Deus? Qual a sua identidade, sua importância,
seu lugar, sua autoridade para que me decida a buscar os seus caminhos e não
os meus?
Por que esses caminhos teriam mais importância do que os de Seu Cícero
que acabei de encontrar puxando sua carroça de papelão e jornais
velhos? Ou os caminhos de Dona Conceição, quase paralítica,
sentada à beira de sua cama com a porta aberta para a rua, comendo pão
doce e café sob os olhos vigilantes de seu cão protetor? Ou os
caminhos de Severina, mocinha de 15 anos arrastando o irmão para a escola?
Ou os caminhos da avó Madalena de mãos dadas com três netos
levando-os para o centro da cidade para mendigar nas paradas de ônibus?
Destes personagens que vivem nas redondezas de minha casa conheço algo
de seu caminho, algo de sua dor e alegria, algo de seu cotidiano, algo de sua
vida. Conheço também algo de minha vida, de minhas buscas de meus
caminhos e descaminhos. Mas, de Deus, não conheço nada. Por isso
me pergunto como seria o caminho de Deus? Como seria seu cotidiano? Como seria
seu espaço e seu tempo? Ou seria sem tempo e sem espaço?
Por que insistimos em buscar-lhe o caminho como se quiséssemos esquecer
os nossos caminhos, como se pensássemos que há alguém cujo
caminho é mais interessante e mais verdadeiro do que qualquer outro caminho?
Por que buscar no desconhecido, no oculto, no misterioso, na Bíblia orientação
ou modelo para nossos caminhos? Por que buscamos a perfeição do
caminho quando somos apenas finitude e imperfeição? Por que buscamos
o amor infinito quando só experimentamos as finitudes do amor?
No fundo já não entendo bem o que se quer quando se pergunta
pelos caminhos de Deus na América Latina! Houve um tempo em que eu pensava
que entendia.
Só sei que hoje experimento a falta de avenidas, a falta de boas estradas,
a falta de grandes direções, de grandes orientações,
de grandes caminhos para os caminhantes sedentos de justiça e de beleza.
As teologias já não convencem mais, as homilias e catequeses parecem
repetir o mesmo e perder o pouco interesse que talvez ainda pudessem ter. As
grandes assembléias religiosas nacionais e internacionais perdem-se nas
belas palavras, nos bons propósitos, nas avaliações, nas
projeções, nas demonstrações, nas elucubrações
sem ações.
Caminhos de Deus? Que Deus?
Por que queremos conhecer os caminhos de Deus? Não seria pretensão?
Ambição? Justificação? Ou seria apenas uma linguagem
simbólica para falar da busca múltipla dos caminhos do bem, da
igualdade e da justiça?
Ah! Estes caminhos, que dizemos buscar, que ansiamos encontrar e que dificilmente
os encontramos! E por que não encontramos? Por que não os identificamos?
Não seria porque os procuramos fora de nós? Não seria por
que imaginamos que alguém que denominamos DEUS e que sabe de tudo, teria
as respostas para a justiça que não sabemos viver, para a partilha
do pão que não queremos fazer, para a ganância da qual não
queremos abrir mão, para o lucro que não queremos diminuir, para
a paz que não queremos viver?
“Caminheiros não há caminhos”. Quem o constata é
porque vive a falta de caminhos, mas caminhos para onde? Caminhos que levam
onde?
Ah! Sim, caminhos para Deus, caminhos de Deus, caminhos com Deus. São
esses os que temos que buscar segundo o título de minha crônica!
Mas, como seriam eles hoje? Quem os está buscando?
Há os convencidos de que os caminhos de Deus estão aí,
diante de nós, à nossa frente: caminhos da Bíblia, caminhos
das igrejas, caminhos das direitas, das esquerdas, dos centros, dos pregadores,
dos doutores, dos bispos.
Há os éticos da opção pelos pobres que continuam
a afirmar que Deus está no meio dos pobres e que optou pelos pobres.
Há os políticos que estão convencidos que Deus entregou
seus segredos à esquerda, a democrática, única capaz de
emitir sinais de seu Reinado.
Há os universalistas que crêem que Deus está em toda parte
e, manifesta-se nos pequenos e humildes gestos de amor.
Há os legalistas que estão convencidos que Deus é um justo
juiz com o código de direito sempre à mão para julgar os
vivos e os mortos.
Há os espiritualistas convencidos de que os caminhos de Deus nada têm
a ver com este mundo, sobretudo com economia e política.
Há os que cantam as glórias divinas e seu poder supremo como forma
de esquecer as inglórias humanas e a falta de poder para imaginar algo
novo.
Todos parecem crer nos caminhos de seu Deus, mas desconhecem os caminhos para
encontrar sua própria humanidade!
Sua humanidade, seu verdadeiro deus, rejeitado, cuspido, desacreditado, crucificado,
desprezado, amordaçado!
Sua humanidade, seu deus abafado, sepultado, esquecido, trocado por outros deuses
de aparência mais forte.
Sua humanidade, seu deus faminto de pão, de terra, de casa e de ternura.
Sua humanidade, seu deus feminino, masculino; seu deus ar, terra, água,
floresta agora queimada, poluída, destruída.
Sua humanidade seu deus, sem valor, sem andor, sem louvor.
Humanidade deus ou Deus sem humanidade!
Há que esquecer estas divindades frágeis, passageiras e mortais.
Há que crer no Deus Pai todo poderoso, Senhor do céu e da terra,
das coisas visíveis e invisíveis, dos exércitos e das potestades,
dos vivos e dos mortos, dos ricos e dos pobres, dos príncipes e dos miseráveis.
Deus para todos e para ninguém.
Há que crer em sua capacidade infinita de saber e de poder. Há
que crer em seus insondáveis desígnios e em sua vontade poderosa
e eficaz. Há que crer em seu amor infinito e em sua paternidade ilimitada!
Caminheiros não há caminhos de Deus, só há os caminhos
das Maria, dos Francisco, das Ana e dos José. Só há estradas
empoeiradas, asfaltos esburacados, ladeiras e montanhas escorregadias e algumas
alamedas arborizadas, alguns pastos verdes, alguns oásis nos desertos,
alguma água pura escondida... Só há tremores de terra,
vulcões em irrupção e alguns por de sol cheios de beleza
e nostalgia... Só há ervas e pedregulhos e algumas flores nascidas
ao acaso dos caminhos. Tudo na vida cotidiana, tudo da vida cotidiana. Tudo
ordinário no extraordinário da vida. E é também
nela que o sorriso acontece, a amizade irrompe, o beijo se dá, a boca
come, a lágrima cessa, a esperança se nutre, a poesia se faz.
É nela que um campo é semeado, que uma mulher engravida, que um
velho se lembra do caminho percorrido, que o abraço esperado enfim acontece,
que o mistério é ternamente vislumbrado. Não seria isso
tudo apenas o caminho humano, o misterioso caminho humano? Não seria
esta a misturada beleza de nossa finitude? Então, não seria melhor
deixar estes caminhos apenas como caminhos do humano e deixar Deus em paz com
seu misterioso caminho? Não seria melhor que o Mistério de muitos
nomes, a força que tudo atravessa e sustenta fosse apenas MISTÉRIO?
Ivone Gebara
Camaragibe, Outubro de 2005.
esse artigo foi escrito para a revista sobre a América Latina, publicada
(Artigo escrito especialmente para distribuição entre os delegados
da IX Assembléia Geral do Conselho mundial de Igrejas).