Um elefante pode ser uma árvore, uma serpente ou uma parede. Uma antiga
fábula originária da Índia relata o encontro de seis cegos
com um paquiderme. Cada um explica o que é um elefante em função
da parte do animal que conseguiu tocar com suas mãos: uma perna, a tromba
ou o enorme ventre. A parábola adverte sobre o risco da generalização
a partir de uma visão fragmentada da realidade. Perece-me, também,
ensinar que existem fatores que fazem com que nossa avaliação de
um mesmo fato possa ser radicalmente diferente da apreciação feita
por outros. Como seres humanos valorizamos um mesmo acontecimento de forma muito
diferente em razão de fatores como a idade, a experiência, o gênero,
a sensibilidade, a etnia e a cultura. Por isso o que segue deve ser entendido
como uma leitura parcial e personalíssima de um evento sumamente amplo
e complexo: a Nona Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas realizada
no mês de fevereiro em Porto Alegre, Brasil, sob o lema: “ Deus, em
tua graça, transforma o mundo.”
Um fórum ecumênico mundial
Uma boa maneira de começar esta leitura é dedicar um parágrafo
ao cenário: a cidade sulista de Porto Alegre. A capital do Estado do
Rio Grande do sul, no coração do país gaúcho, é
uma cidade de um milhão e meio de habitantes fundada por imigrantes das
ilhas dos Açores em 1742. Tradicionalmente é reconhecida como
um dos centros comerciais e industriais mais importantes do Brasil e, também,
pela qualidade de suas carnes e os apetitosos churrascos. A cidade ganhou fama
em 2001 com a celebração, ali, do primeiro Fórum Social
Mundial, essa extraordinária, romântica e colorida reunião
de “altermundistas” (do francês altermondialistes), termo
que significa “partidários de uma mundialização diferente”,
gente que se opõe à globalização (ou mundialização)
de signo neoliberal. Naquela ocasião a cidade desfrutava do quarto mandato
de um Prefeito do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciado em janeiro de 1989
e terminado, inesperadamente, em dezembro de 2004, quando a vitória do
candidato do Partido Popular Socialista (PPS) pôs fim a dezesseis anos
consecutivos de predomínio do PT.
Os quase quatro mil participantes – entre eles uns 690 delegados oficiais
– de todos os rincões do planeta viajaram à cidade que,
desde princípios deste século encarnou a vontade de ser diferente,
de contradizer o “sentido comum” neoliberal e munir-se de mecanismos
de participação e tomada de decisões realmente democráticos.
Reviveriam, em dez intensas jornadas de deliberações, o hoje um
tanto apagado espírito do fórum Social Mundial? “Menos barulho”,
disse-me um taxista, a quem perguntei como via a nova presença internacional
em sua cidade. Nós, ecumênicos, além de sermos menos, somos
mais disciplinados.
Porém, esse espírito alternativo se manifestou nos mutirões,
palavra usada para designar os cerca de duzentos eventos (oficinas, seminários,
representações teatrais e musicais) realizados durante a Assembléia,
com alguns títulos bastantes sugestivos: “os cristãos no
tempo do império”, “o papel das igrejas na crise haitiana”,
“ a dívida ecológica: quem deve a quem?”, “qual
desenvolvimento ecumênico para a América Latina?”, “a
violência contra as mulheres e o HIV/AIDS”, “o conflito na
Palestina”, “entendendo Deus como mulher”..... Lamentavelmente
não houve uma interação suficiente entre os mutirões
e a própria Assembléia: ambos processos correram por vias paralelas,
com o que esta rica dinâmica participativa e de conteúdos veio
a ter uma influência mínima nas deliberações e resultados
daquela. É, certo, no entanto, que os participantes dos mutirões
levaram consigo, de regresso a suas igrejas e comunidades, a excepcional riqueza
das conversações e debates ocorridos em muitas oficinas sobre
temas de grande atualidade.
Consenso e Oração
Duas novidades nesta Assembléia foram: a prática, pela primeira
vez, do método do consenso para a tomada de decisões e o novo
estilo da celebração cúltica. Nos anos recentes duas igrejas
ortodoxas abandonaram o Conselho e outras expressavam seu mal-estar porque “as
pressuposições teológicas, a estrutura organizacional e
o ethos do
CMI provinham, em grande medida, da experiência dos cristãos do
Ocidente”, e porque esta perspectiva ocidental tinha se tornado “a
norma ecumênica” segundo o relatório apresentado ao Encontro
Ortodoxo Pré-Assembléia que se reuniu em Rhodes, na Grécia,
em janeiro de 2005. Em conseqüência, assinalava dito documento, “as
convicções e perspectivas ortodoxas eram consideradas, inevitavelmente,
como as críticas de uma minoria, usualmente respeitadas ou, pelo menos,
toleradas, mas sem afetar ou mudar a perspectiva normativa da maioria.”(1)
As críticas ortodoxas se centravam numa série de elementos da
vida cúltica do CMI que seriam “incompatíveis” com
a tradição apostólica: o uso de uma linguagem inclusiva
para se referir a Deus; a direção de cultos por mulheres ordenadas;
a introdução de elementos sincréticos. (2)
Para responder a esta situação uma comissão especial criada
pela VIII Assembléia Geral de Harare (1998) recomendou uma série
de mudanças na estrutura, estilo e ethos do Conselho, entre elas o abandono
da tomada de decisões por votação e maioria simples e a
adoção do método do consenso. Mais que um recurso técnico,
o Secretário Geral do CMI, Rev. Sam Kobia, exortou os delegados e delegadas
a fazerem do método de consenso “um processo de discernimento espiritual”.
Outra mudança se produziu na designação das celebrações
litúrgicas nos eventos do Conselho que, daqui para adiante são
chamadas de “orações confessionais ou interconfessionais”
e não “cultos”. Os serviços confessionais de caráter
eucarístico poderão ser anunciados publicamente, mas
__________
(1) Report of the Orthodox Pre-Assembly Meeting, Rhodes, 10-17 January, 2005,
Final Adopted version.
(2) Cf.: “Theological Convergences and Differences between the Orthodox
and other Traditions in the World Council of Churches”, Report of Sub-Committee
III which met in Chania, Crete from 22 to 24 august 2000. Uma clara demonstração
de sincretismo, segundo a perspective ortodoxa, foi a intervenção,
na Assembléia de Camberra, da teóloga coreana Chung Hyun Kyung,
que em sua apresentação no plenário invocou os espíritos
dos mortos que tinham sofrido injustiças no passado dizendo que “a
não ser que escutemos o clamor desses espíritos não poderemos
ouvir a voz do Espírito Santo.”
não fazer parte do programa oficial do evento. Estas recomendações
foram aprovadas pelo Comitê Central do CMI em sua reunião de agosto/setembro
de 2002, provocando que algumas vozes advertissem sobre uma possível
perda de capacidade do Conselho para assumir posições proféticas.
(3)
Em que se diferenciaram as “Orações” de Porto alegre
e os “Cultos” de Camberra – a outra Assembléia do CMI
em que participei em 1991? Em Camberra um grupo de nativos australianos com
suas vestimentas tradicionais (talvez demasiadamente escassos de roupa, para
o gosto de alguns) tiveram um papel destacado no culto de abertura, dançando
e tocando seus instrumentos musicais na plataforma principal (o “altar”)
da tenda onde se celebraram os cultos. Nos outros cultos houve uma combinação
de elementos litúrgicos e culturais de diferentes tradições
e um uso significativo de estilos verbais e musicais que, em certa medida, poderiam
ser qualificados de experimentais. Em Porto Alegre, embora as “Orações”
tenham sido na prática celebrações cúlticas –
porque não apenas se orava: também se cantava, se lia a Bíblia
e se recitavam os Credos – essa experimentação foi menos
perceptível. As celebrações seguiram um padrão mais
sóbrio que incluía os elementos litúrgicos de diferentes
tradições aceitos hoje por muitas igrejas, como o Kyrie Eleison
(“Senhor, tem misericórdia”). Em Porto Alegre, à diferença
de Harare, a presença e participação ortodoxa nessas “orações”
foi visível e ativa, embora não isenta, em si mesma, de contradições.
(4)
Vinho novo em odres velhos?
A reconfiguração do movimento ecumênico foi tema de amplos
debates desde que o CMI lançou, em 1998, por ocasião da VIII Assembléia
Geral em Harare, um documento intitulado Para um entendimento e uma visão
comuns do Conselho Mundial de Igrejas. Este documento, fruto de oito anos de
trabalho e debates teológicos pelas igrejas membros e várias estruturas
do Conselho, é uma reflexão sobre a natureza e propósitos
do movimento ecumênico em geral, e sobre a razão de ser e a particular
vocação do CMI como parte desse movimento. No documento se analisam
as grandes mudanças na realidade mundial dos últimos cinqüenta
anos e seu impacto nas estruturas ecumênicas e se propõe o desafio
de “ampliar o movimento ecumênico” mediante a incorporação
das igrejas “evangelicais” e pentecostais.
__________
(3) O descontentamento levou a Bispa luterana alemã Margot Kasemann
a renunciar a seu posto no Comitê Central e a declarar que o problema
de fundo está na questão fundamental “quem é a Igreja”.
Nas discussões dessa reunião do Comitê Central do CMI, um
líder ortodoxo se dirigiu a Bispa Kasemann com estas palavras: “Você
tem que compreender que, afinal, vocês são heréticos para
nós. Vocês não são a igreja e, por tanto, não
podemos aceitar o seu batismo. Mas agora os conhecemos melhor e podemos conversar
com vocês.” Cf.: Kasemann Margot: “A voice of dissent: questioning
the conclusions of the Special Commission on Orthodox Participation in the WCC”,
The Ecumenical Review, January 2003.
(4) Seguindo a recomendação de um grupo de altos prelados ortodoxos
que se reuniram na Grécia em abril de 1998, os delegados das igrejas
ortodoxas não participaram das orações comuns nem dos cultos
ecumênicos da VIII assembléia do CMI em Harare. Em Porto Alegre,
frente às duas liturgias eucarísticas previstas para o domingo
19 de fevereiro, uma no estilo grego e a outra no estilo russo, a organização
que agrupa os jovens ortodoxos das diferentes tradições, Syndesmos,
propôs a celebração de uma única liturgia eucarística
no rito bizantino. Apesar de algumas personalidades ortodoxas terem apoiado
esta iniciativa, a proposta de uma única celebração eucarística
não prosperou.
Essa reconfiguração do movimento ecumênico foi tratada numa
das intervenções centrais da Assembléia: o relatório
do Moderador do CMI, Católicos Aram I: “Entramos num novo período
da história ecumênica. A paisagem ecumênica está mudando
radicalmente: as instituições ecumênicas tradicionais estão
perdendo sua motivação e seus interesses; emergem novas formas
e modelos ecumênicos; formam-se novas alianças e associações;
e se estabelecem novos programas ecumênicos”, assinalou. Aram I
pediu aos delegados para trabalharem na direção de um ecumenismo
centralizado no povo que responda às realidades mutantes de nosso tempo,
que seja integrador e visionário e que leve em conta o surgimento de
novo modelos ecumênicos, chamando a atenção dos jovens,
para que se tornem “pioneiros de uma nova ordem ecumênica.”
Uma pergunta que muitos se fazem, cinqüenta anos depois da fundação
do CMI, é quando a Igreja Católica Romana dará o grande
passo histórico para integrar a membresia do conselho, convertendo-o
na expressão mais ampla e representativa do caminhar ecumênico
da cristandade. Mas este passo não está próximo, como explicou
a voz autorizada do Cardeal Walter Kasper, presidente do Conselho Pontifício
para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Kasper reafirmou
o “compromisso irreversível” de sua igreja com o ecumenismo,
mas destacou que o caráter “universal” da Igreja Católica
Romana torna mais difícil sua membresia no CMI. Não obstante,
disse, “temos um espaço de diálogo que consideramos essencial”.
Outra pergunta, mais recente, em resposta ao enorme crescimento do Pentecostalismo
em escala mundial, é se e quando as igrejas pentecostais juntarão
suas vozes às que hoje integram o CMI. Numa conferência de imprensa,
representantes de igrejas “evangelicais” e pentecostais falaram
sobre suas relações com o CMI e o movimento ecumênico. O
apóstolo Michael Ntumy, da Igreja de Pentecostes de Ghana, disse que
pentecostais, ecumênicos e católicos poderiam se constituir “num
colosso espiritual” quando se deixarem “cobrir pelo Espírito
Santo”. Por sua parte o Dr. Norberto Saracco, da Igreja Evangélica
Boas Novas, da Argentina, asseverou que a América Latina está
caminhando para uma era “post-pentecostal”, o que criará
melhores condições para o diálogo ecumênico, em novas
modalidades que, infelizmente não precisou. Segundo Saracco, a unidade
para as igrejas evangélicas não está baseada no reconhecimento
de uma autoridade hierárquica, nem sequer em acordos teológicos
ou alianças entre instituições.(5) “Temos de aceitar
que essa forma de fazer ecumenismo não pode ir mais longe”, afirmou.
Em Porto Alegre não se ouviram propostas claras e definidas a respeito
de quais seriam esse novos modelos, nem sobre o que é necessário
fazer para “deixar-se cobrir pelo Espírito Santo”, como desejaria
o apóstolo Ntumy. O chamado Fórum Cristão Mundial, uma
iniciativa lançada na Assembléia de Harare para explorar as possibilidades
de relacionamento com as igrejas não membros do CMI, ofereceu resultados
pouco satisfatórios depois de seis anos de existência e várias
consultas de caráter regional e internacional. Embora os participantes
desses eventos tenham coincidido em destacar a importância do fórum,
as grandes organizações pentecostais – principalmente a
Comunidade Pentecostal Mundial e a Assembléia de Deus Mundial –
declinaram do convite para participar. Nas reuniões havidas as discussões
não foram além dos
__________
(5) Entretanto, em algumas dessas igrejas existe uma nova autoridade hierárquica:
o “apóstolo”. São líderes que se arrogam o
direito de interpretar corretamente a doutrina cristã e de possuir uma
visão inspirada do Espírito Santo.
intercâmbios preliminares sobre a compreensão da igreja e de sua
missão. O relatório apresentado à Assembléia de
Porto alegre advertia o seguinte: “Pode se esperar que quando temas mais
polêmicos venham à mesa será mais difícil permanecer
juntos.”
Talvez o modelo “diversidade reconciliada”, proposto por Konrad
Raiser em seu livro Ecumenismo em transição seja uma resposta
a este dilema. Para Raiser o ponto de partida não é uma unidade
que já existe, mas a diversidade, tanto confessional como nas diferentes
formas sociais que a igreja assumiu ao longo dos séculos. É a
partir dessa diversidade que a unidade deve ser alcançada e restaurada.(6)
Raiser fala de “fraternidade” ou de “comunhão”
como conceitos bíblicos mais apropriados do que o de “unidade”.
O modelo ecumênico que se deriva deste enfoque tem que ver mais com o
diálogo, o compartilhar, a hospitalidade e a solidariedade entre as diferentes
igrejas cristãs do que com acordos doutrinais.
A hora da América Latina
Um dia da Assembléia foi dedicado integralmente à América
Latina, o continente anfitrião. Nessa jornada um bem estruturado material
audiovisual apresentou a história do continente nos últimos quinhentos
anos com uma ênfase especial nas lutas reivindicativas pelos direitos
humanos, a justiça e a democracia. Este material foi complementado com
música e canções de conteúdo social e uma representação
teatral que dramatizou a luta secular pela justiça no continente. Em
seu conjunto foi uma apresentação efetiva que serviu para educar
a muitos delegados de outras regiões do planeta sobre a realidade latino-americana.
Se algo faltou nessa apresentação foi a ausência de uma
análise conjuntural: o que está acontecendo na América
Latina hoje. Foi especialmente conspícua a ausência de alguns processos
que estão se configurando como uma nova dinâmica geopolítica
no continente: os alcances e limitações da experiência brasileira
sob um governo de esquerda; a Venezuela de Hugo Chavez com sua revolução
bolivariana e sua política exterior de enfrentamento aos Estados Unidos.
O histórico triunfo de Evo Morales na Bolívia; a ascensão
ao poder de uma coalizão de esquerda no Uruguai; o prolongado conflito
na Colômbia; a possível construção de uma estratégica
base militar dos Estados Unidos no Paraguai (7); os acordos bilaterais para
o livre comércio entre países latino-americanos e os Estados Unidos;
os avatares das propostas integracionistas (Mercosul, Comunidade sul-americana
de Nações); os fluxos migratórios; o novo campo religioso
latino-americano... A ausência desta reflexão sobre a problemática
atual e a falta de propostas concretas de acompanhamento, podem ter incidido
no fato desta Assembléia não ter deliberado sobre iniciativas
e a realização de programas específicos para América
Latina, como ocorreu com a região africana na Assembléia prévia
em Harare.
____________
(6) Raiser, Konrad, Ecumenism in transition: A Paradigm shift in the Ecumenical
Movement? WCC Publications, Geneva, 1991.
(7) Embora os governos dos EE.UU. e do Paraguai tenham negado que essa base
seria construída em solo paraguaio crescem as especulações
a respeito nos meios de imprensa e organizações de Direitos Humanos.
Segundo o diário boliviano El Deber a base está sendo construída
na localidade de Mariscal Estigabrríbia, no Chaco paraguaio a uns 250km
da fronteira com a Bolívia. As tropas estariam acantonadas atualmente
nesse lugar onde existe uma pista de aterrisagem e um acampamento para albergar
mais de 16.000 soldados. Cf. Benjamin Dangl, “Alerta pela presença
militar dos EE.UU.”, Notícias Aliadas, agosto de 2005.
Um resultado significativo para América Latina foi a eleição
do pastor e teólogo Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana do Brasil, como Moderador do CMI. Outra destacada
líder ecumênica, a pastora Ofélia Ortega, da Igreja Presbiteriana
de Cuba, foi eleita uma das presidentas do Conselho, em representação
do Caribe. (8)
A agenda pública
Se a unidade é um requisito fundamental “para que o mundo creia”,
a credibilidade das igrejas se joga também na esfera pública,
em função de suas posições e respostas aos dilemas
que acossam o mundo contemporâneo. Por isso toda Assembléia do
Conselho Mundial de Igrejas discute e adota uma série de “declarações
públicas” que, sem comprometer nem exercer autoridade sobre as
igrejas membros, expressa uma voz profética comum para o resto da sociedade.
Duas declarações foram aprovadas já no penúltimo
dia de reuniões sobre a água e as armas nucleares, respectivamente.
A chamada Declaração sobre a água para a vida chama a atenção
para uma situação que exige medidas urgentes: a sobrevivência
de um bilhão e duzentos milhões de pessoas que se encontram atualmente
em perigo por falta de serviços suficientes de saneamento. “O acesso
desigual à água causa conflito entre as pessoas, comunidades,
regiões e nações”, expressa a declaração,
fazendo-se eco do desafio de proporcionar água em quantidade e qualidade
suficientes para sustentar todas as formas de vida no planeta frente às
demandas de uma população sempre crescente e os problemas causados
às fontes pela deteriorização ambiental. A declaração
exorta as igrejas a adotar as medidas necessárias para conservar este
recurso como parte integrante do direito à vida, e protegê-lo do
consumo excessivo e da contaminação.
Também foi aprovada pela Assembléia uma Nota sobre a eliminação
das armas nucleares, na qual se exorta às Igrejas membros do CMI a que
pressionem os governos de seus respectivos países para lutar pela eliminação
desse tipo de armamento. Nessa declaração se conclama também
as Igrejas para que continuem trabalhando “para apoiar e fortalecer as
zonas livres de armas nucleares, que estão estabelecidas na América
Latina e no Caribe, no Pacífico Sul, no Sudeste da Ásia e da África,
e que se projetam para outros lugares habitados da Terra”.
Com relação ao tema do terrorismo, de particular importância
na agenda política mundial, as igrejas do Conselho declararam que “o
terror, como ato indiscriminado de violência contra civis desarmados,
seja por razões políticas ou religiosas, não pode jamais
ser justificado legalmente, teologicamente e nem eticamente.” A Declaração
sobre o terrorismo, a luta contra o terrorismo e os Direitos Humanos, aprovada
pela Assembléia em sua última jornada, assinala, ainda, o perigo
criado pela “guerra contra o terrorismo” que “redefiniu o
conceito de guerra e relativizou a lei internacional e as normas e padrões
dos Direitos Humanos.” “Existe o perigo de que estes instrumentos
sejam feridos em resposta ao terror”, acrescenta o documento, exortando
a comunidade internacional a fortalecer a Corte Penal Internacional como instrumento
__________
(8) Os outros membros latino-americanos do novo Comitê Central são:
o Pastor Héctor Petrecca, Igreja Cristã Bíblica (pentecostal
da Argentina); Pastor Carlos Duarte, Igreja Evangélica do Rio da Prata
(Argentina); Bispo Carlos Poma, Igreja Evangélica Metodista da Bolívia;
Dra. Magali Nascimento Cunha, Igreja Metodista (Brasil).
idôneo para responder aos atos terroristas, afirmando, ao mesmo tempo,
que “o terror só poderá ser erradicado por uma comunidade
internacional que afirme o respeito à dignidade dos seres humanos e ao
império da lei.”
A Assembléia se pronunciou sobre outro assunto sumamente polêmico:
a responsabilidade da comunidade internacional para proteger as populações
vulneráveis em risco. O problema tem duas faces: por um lado, a realidade
de trágicas e espetaculares falhas do sistema internacional para proteger
do genocídio amplos setores da população de um país,
como aconteceu em Rwanda e está ocorrendo agora no Sudão; por
outro, que, com freqüência, a chamada “intervenção
humanitária” tem sido utilizada para descrever uma intervenção
militar externa nos assuntos internos de um Estado soberano.
Sobre esta temática foi adotada uma Declaração sobre populações
vulneráveis em perigo: a responsabilidade de proteger, que é fruto
de um processo de estudo e consulta de vários anos que tomou para si
o conceito de Responsabilidade de Proteger adotado pela “Comissão
Internacional sobre a Intervenção e a Soberania dos Estados”
da ONU em seu relatório de 2001. Este conceito redefine a soberania como
responsabilidade e não como poder absoluto, o que lhe permite a declaração
advertir que “os Estados já não podem se esconder atrás
do pretexto da soberania para perpetrar violações aos Direitos
Humanos de seu cidadãos e viver em total impunidade.” A ênfase,
entretanto, é colocada na prevenção antes que no uso da
força, porque, de acordo com a declaração “ como
igrejas não cremos no exercício da força letal para alcançar
uma nova ordem de paz e segurança.” Por meio da prevenção
se pretende uma percepção prévia das condições
de insegurança que se podem dar num país ou numa região
–incluindo a exclusão econômica, social e política
– constituindo-se em caldo de cultivo favorável para a emergência
de conflitos que colocariam em perigo as populações vulneráveis.
O CMI depois de Porto Alegre
Frente a um Conselho que muitas vezes mostrou propensão para envolver-se
numa ampla gama de projetos e programas, em Porto Alegre dominou um espírito
diferente, persuasivamente manifesto na consigna de “fazer menos, mas
fazer bem”. Uma redução programática que corresponde
ao período de “vacas magras” que, há vários
anos, vivem tanto o CMI como o movimento ecumênico em geral, e do qual
parece não haver uma saída a curto e nem a médio prazo.
Esse fazer menos e fazê-lo bem deverá traduzir-se numa maior coerência
no trabalho de seus diferentes departamentos, comissões e programas.
Um Conselho mais centrado na reflexão e no debate doutrinal seria outro
dos frutos desta XI Assembléia. Responderia assim às reivindicações
provenientes tanto da Igreja Católica Romana como de algumas igrejas
membros, para fortalecer e integrar o trabalho da Comissão de Fé
e Constituição na agenda do Conselho. Isto permitiria abordar
o que um documento programático definiu como “as agudas questões
eclesiológicas” levantadas pela Comissão Especial sobre
a Participação Ortodoxa no CMI, além de capacitar o Conselho
para ser “uma voz ética forte e crível”. Esse mesmo
documento assinala que o Conselho deve articular “uma base teológica
clara” para todo o seu trabalho, destacando a estreita relação
entre unidade, espiritualidade e missão. Embora missão e evangelização
tenham sido temas notavelmente ausentes nos grandes debates desta Assembléia,
no final, se pediu ao Conselho que seu futuro trabalho na missão e na
evangelização busque comprometer as igrejas na procura de “novas
formas de experimentar a fé cristã”.
Em seu esforço diaconal o CMI disporá recursos para que suas
igrejas membros possam responder à pandemia do HIV/AIDS, prestar atenção
às vítimas do racismo e outros tipos de discriminação
(dalits na Índia (9), povos indígenas, pessoas de descendência
africana) e estabelecer pastorais especializadas para pessoas com deficiências.
Outra área de concentração será a do diálogo
inter-religioso, que, provavelmente, irá além do debate doutrinal
para articular ações educativas práticas e de acompanhamento
às igrejas que vivem em países e regiões em conflito. Em
seu relatório à Assembléia o Secretário Geral do
Conselho, Dr. Sam Kobia, expressou a necessidade de se fortalecer o testemunho
comum das Igrejas e o diálogo inter-religioso para o enfrentamento conjunto
dos problemas que afetam a comunidade humana, destacando a “urgência
da ação inter-religiosa” com uma visão ampla e inclusiva.
Sublinhou ainda que “os contactos entre crentes de diferentes religiões,
estabelecidos por meio de um paciente diálogo durante tempos de paz podem
impedir que, em tempos de conflitos, a religião seja utilizada como arma.”
No quadro da Década para Superação da Violência
a Assembléia recomendou que o Conselho prepare uma convocação
internacional ecumênica pela paz que marque a sua culminação
em 2010. Com isso retomava, de certo modo, a proposta do teólogo mártir
Dietrich Bonhoeffer que, nos anos trinta do século passado sonhou com
a realização de um grande concílio das igrejas cristãs
em favor da paz. Embora esta Assembléia não tenha se lembrado
de maneira especial do centenário de seu nascimento (04 de fevereiro
de 1906), sua teologia se fez presente, de algum modo, em suas deliberações,
particularmente a sua denúncia da “graça barata” e
suas reflexões em favor de um discipulado que exige dos cristãos
o pagamento de um alto preço, às vezes, o da própria vida.
A Graça que transforma
Depois das angústias de Harare, Porto Alegre foi como um grande suspiro
de alívio para o CMI. As ameaças de ruptura por parte das igrejas
ortodoxas que se expressaram com muita força na assembléia africana,
tornaram-se coisa do passado nesta Nona Assembléia. O Conselho pode felicitar-se
por ter deixado para trás este espinhoso problema, embora as questões
eclesiológicas levantadas pela Comissão Especial ainda tenham
de ser consideradas com suas possíveis implicações para
vida futura deste organismo.
_________
(9) Embora a Índia tenha alcançado, há mais de meio século,
sua independência e seja comumente chamada de “a maior democracia
do mundo” isto não mudou muito a triste sorte dos “intocáveis”
– pessoas marcadas por seu nascimento a serem consideradas impuras pelo
sistema de castas --. Mahatma Gandhi as chamou de Harijan, “filhos de
Deus”, num esforço para integrá-las à sociedade.
Estes discriminados adotam o nome de dalits ou “deprimidos”. Estima-se
que vivem hoje na Índia 160 milhões de dalits aos que não
é permitido beber água dos mesmos poços, assistir aos mesmos
templos ou usar calçado na presença de pessoas de uma casta superior.
Os dalits são relegados aos trabalhos mais duros e pior remunerados e
vivem no temor constante de serem humilhados publicamente, atacados ou violados
fisicamente pelos hindus de uma casta superior.
Há muitas razões, sem dúvida, para se congratular com esta
Nona Assembléia, tanto por seus momentos estelares como pela sua inegável
afirmação da vocação ecumênica das igrejas
que integram o CMI. O documento Chamados a ser uma única Igreja constitui
um significativo compromisso destas igrejas para renovar seus esforços
para tornar mais visível a unidade ao dar prioridade a temas como a Catolicidade,
o Batismo e a Oração. O fruto destes esforços permitiria
ao Conselho, e ao movimento ecumênico em seu conjunto, oferecer ao mundo
“uma mensagem cristã espiritualmente coerente e cheia de graça”
e, talvez, a incorporação de novos atores, uma mais efetiva coordenação
de suas respectivas agendas e o aprofundamento da comunhão (koinonia)
entre as igrejas.
Em Porto Alegre ouviu-se a voz profética das igrejas em relação
aos temas mais críticos de nosso tempo. Da resposta pastoral à
pandemia do HIV/AIDS até às iniciativas para promover a paz e
se afirmaram as visões e os programas que permitirão ao Conselho
continuar sua peregrinação de serviço e esperança
num mundo transido pelo sofrimento e o desespero. Depois de quase seis décadas
de sua fundação é alentador que essas igrejas continuem
reconhecendo a necessidade do Conselho como uma expressão da busca da
unidade e da comunhão entre elas; como um instrumento para apresentar
uma voz profética e coerente em resposta aos desafios globais e como
uma plataforma para o diálogo inter-religioso na procura da paz.
No encerramento do magno evento o Secretário Geral do CMI destacou:
“Esta Assembléia afirmou a vitalidade do movimento ecumênico
e o compromisso das igrejas com a visão e a meta ecumênica da unidade,
assim como com a busca de um mundo mais justo e pacífico.” Atrevo-me
a acrescentar que a Assembléia reafirmou também a vontade destas
igrejas em sua busca comum do Reino de Deus. Por isso o seu lema foi mais do
que uma invocação: as igrejas em Porto Alegre sentiram e expressaram
a urgência de cooperar na obra transformadora de Deus para criar um mundo
diferente e melhor, no qual se manifeste plenamente a graça recebida
em Jesus Cristo.
Manuel Quintero Perez, Jornalista, membro da Igreja Presbiteriana Reformada
de Cuba, Diretor do programa Frontier Internship in Mission, com sede em Genebra,
Suíça.