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ECUMENISMO E DIREITOS
Ano 1 - Nº 2
Dezembro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Crônica de Porto Alegre (A propósito da IX Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas)


Crédito © Igor Sperotto/WCC
Atividade do Mutirão

Por: Manuel Quintero Perez
Data: 21/12/2006

Um elefante pode ser uma árvore, uma serpente ou uma parede. Uma antiga fábula originária da Índia relata o encontro de seis cegos com um paquiderme. Cada um explica o que é um elefante em função da parte do animal que conseguiu tocar com suas mãos: uma perna, a tromba ou o enorme ventre. A parábola adverte sobre o risco da generalização a partir de uma visão fragmentada da realidade. Perece-me, também, ensinar que existem fatores que fazem com que nossa avaliação de um mesmo fato possa ser radicalmente diferente da apreciação feita por outros. Como seres humanos valorizamos um mesmo acontecimento de forma muito diferente em razão de fatores como a idade, a experiência, o gênero, a sensibilidade, a etnia e a cultura. Por isso o que segue deve ser entendido como uma leitura parcial e personalíssima de um evento sumamente amplo e complexo: a Nona Assembléia Geral do Conselho Mundial de Igrejas realizada no mês de fevereiro em Porto Alegre, Brasil, sob o lema: “ Deus, em tua graça, transforma o mundo.”

Um fórum ecumênico mundial

Uma boa maneira de começar esta leitura é dedicar um parágrafo ao cenário: a cidade sulista de Porto Alegre. A capital do Estado do Rio Grande do sul, no coração do país gaúcho, é uma cidade de um milhão e meio de habitantes fundada por imigrantes das ilhas dos Açores em 1742. Tradicionalmente é reconhecida como um dos centros comerciais e industriais mais importantes do Brasil e, também, pela qualidade de suas carnes e os apetitosos churrascos. A cidade ganhou fama em 2001 com a celebração, ali, do primeiro Fórum Social Mundial, essa extraordinária, romântica e colorida reunião de “altermundistas” (do francês altermondialistes), termo que significa “partidários de uma mundialização diferente”, gente que se opõe à globalização (ou mundialização) de signo neoliberal. Naquela ocasião a cidade desfrutava do quarto mandato de um Prefeito do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciado em janeiro de 1989 e terminado, inesperadamente, em dezembro de 2004, quando a vitória do candidato do Partido Popular Socialista (PPS) pôs fim a dezesseis anos consecutivos de predomínio do PT.

Os quase quatro mil participantes – entre eles uns 690 delegados oficiais – de todos os rincões do planeta viajaram à cidade que, desde princípios deste século encarnou a vontade de ser diferente, de contradizer o “sentido comum” neoliberal e munir-se de mecanismos de participação e tomada de decisões realmente democráticos. Reviveriam, em dez intensas jornadas de deliberações, o hoje um tanto apagado espírito do fórum Social Mundial? “Menos barulho”, disse-me um taxista, a quem perguntei como via a nova presença internacional em sua cidade. Nós, ecumênicos, além de sermos menos, somos mais disciplinados.

Porém, esse espírito alternativo se manifestou nos mutirões, palavra usada para designar os cerca de duzentos eventos (oficinas, seminários, representações teatrais e musicais) realizados durante a Assembléia, com alguns títulos bastantes sugestivos: “os cristãos no tempo do império”, “o papel das igrejas na crise haitiana”, “ a dívida ecológica: quem deve a quem?”, “qual desenvolvimento ecumênico para a América Latina?”, “a violência contra as mulheres e o HIV/AIDS”, “o conflito na Palestina”, “entendendo Deus como mulher”..... Lamentavelmente não houve uma interação suficiente entre os mutirões e a própria Assembléia: ambos processos correram por vias paralelas, com o que esta rica dinâmica participativa e de conteúdos veio a ter uma influência mínima nas deliberações e resultados daquela. É, certo, no entanto, que os participantes dos mutirões levaram consigo, de regresso a suas igrejas e comunidades, a excepcional riqueza das conversações e debates ocorridos em muitas oficinas sobre temas de grande atualidade.

Consenso e Oração

Duas novidades nesta Assembléia foram: a prática, pela primeira vez, do método do consenso para a tomada de decisões e o novo estilo da celebração cúltica. Nos anos recentes duas igrejas ortodoxas abandonaram o Conselho e outras expressavam seu mal-estar porque “as pressuposições teológicas, a estrutura organizacional e o ethos do
CMI provinham, em grande medida, da experiência dos cristãos do Ocidente”, e porque esta perspectiva ocidental tinha se tornado “a norma ecumênica” segundo o relatório apresentado ao Encontro Ortodoxo Pré-Assembléia que se reuniu em Rhodes, na Grécia, em janeiro de 2005. Em conseqüência, assinalava dito documento, “as convicções e perspectivas ortodoxas eram consideradas, inevitavelmente, como as críticas de uma minoria, usualmente respeitadas ou, pelo menos, toleradas, mas sem afetar ou mudar a perspectiva normativa da maioria.”(1) As críticas ortodoxas se centravam numa série de elementos da vida cúltica do CMI que seriam “incompatíveis” com a tradição apostólica: o uso de uma linguagem inclusiva para se referir a Deus; a direção de cultos por mulheres ordenadas; a introdução de elementos sincréticos. (2)

Para responder a esta situação uma comissão especial criada pela VIII Assembléia Geral de Harare (1998) recomendou uma série de mudanças na estrutura, estilo e ethos do Conselho, entre elas o abandono da tomada de decisões por votação e maioria simples e a adoção do método do consenso. Mais que um recurso técnico, o Secretário Geral do CMI, Rev. Sam Kobia, exortou os delegados e delegadas a fazerem do método de consenso “um processo de discernimento espiritual”. Outra mudança se produziu na designação das celebrações litúrgicas nos eventos do Conselho que, daqui para adiante são chamadas de “orações confessionais ou interconfessionais” e não “cultos”. Os serviços confessionais de caráter eucarístico poderão ser anunciados publicamente, mas
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(1) Report of the Orthodox Pre-Assembly Meeting, Rhodes, 10-17 January, 2005, Final Adopted version.
(2) Cf.: “Theological Convergences and Differences between the Orthodox and other Traditions in the World Council of Churches”, Report of Sub-Committee III which met in Chania, Crete from 22 to 24 august 2000. Uma clara demonstração de sincretismo, segundo a perspective ortodoxa, foi a intervenção, na Assembléia de Camberra, da teóloga coreana Chung Hyun Kyung, que em sua apresentação no plenário invocou os espíritos dos mortos que tinham sofrido injustiças no passado dizendo que “a não ser que escutemos o clamor desses espíritos não poderemos ouvir a voz do Espírito Santo.”


não fazer parte do programa oficial do evento. Estas recomendações foram aprovadas pelo Comitê Central do CMI em sua reunião de agosto/setembro de 2002, provocando que algumas vozes advertissem sobre uma possível perda de capacidade do Conselho para assumir posições proféticas. (3)

Em que se diferenciaram as “Orações” de Porto alegre e os “Cultos” de Camberra – a outra Assembléia do CMI em que participei em 1991? Em Camberra um grupo de nativos australianos com suas vestimentas tradicionais (talvez demasiadamente escassos de roupa, para o gosto de alguns) tiveram um papel destacado no culto de abertura, dançando e tocando seus instrumentos musicais na plataforma principal (o “altar”) da tenda onde se celebraram os cultos. Nos outros cultos houve uma combinação de elementos litúrgicos e culturais de diferentes tradições e um uso significativo de estilos verbais e musicais que, em certa medida, poderiam ser qualificados de experimentais. Em Porto Alegre, embora as “Orações” tenham sido na prática celebrações cúlticas – porque não apenas se orava: também se cantava, se lia a Bíblia e se recitavam os Credos – essa experimentação foi menos perceptível. As celebrações seguiram um padrão mais sóbrio que incluía os elementos litúrgicos de diferentes tradições aceitos hoje por muitas igrejas, como o Kyrie Eleison (“Senhor, tem misericórdia”). Em Porto Alegre, à diferença de Harare, a presença e participação ortodoxa nessas “orações” foi visível e ativa, embora não isenta, em si mesma, de contradições. (4)

Vinho novo em odres velhos?

A reconfiguração do movimento ecumênico foi tema de amplos debates desde que o CMI lançou, em 1998, por ocasião da VIII Assembléia Geral em Harare, um documento intitulado Para um entendimento e uma visão comuns do Conselho Mundial de Igrejas. Este documento, fruto de oito anos de trabalho e debates teológicos pelas igrejas membros e várias estruturas do Conselho, é uma reflexão sobre a natureza e propósitos do movimento ecumênico em geral, e sobre a razão de ser e a particular vocação do CMI como parte desse movimento. No documento se analisam as grandes mudanças na realidade mundial dos últimos cinqüenta anos e seu impacto nas estruturas ecumênicas e se propõe o desafio de “ampliar o movimento ecumênico” mediante a incorporação das igrejas “evangelicais” e pentecostais.
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(3) O descontentamento levou a Bispa luterana alemã Margot Kasemann a renunciar a seu posto no Comitê Central e a declarar que o problema de fundo está na questão fundamental “quem é a Igreja”. Nas discussões dessa reunião do Comitê Central do CMI, um líder ortodoxo se dirigiu a Bispa Kasemann com estas palavras: “Você tem que compreender que, afinal, vocês são heréticos para nós. Vocês não são a igreja e, por tanto, não podemos aceitar o seu batismo. Mas agora os conhecemos melhor e podemos conversar com vocês.” Cf.: Kasemann Margot: “A voice of dissent: questioning the conclusions of the Special Commission on Orthodox Participation in the WCC”, The Ecumenical Review, January 2003.
(4) Seguindo a recomendação de um grupo de altos prelados ortodoxos que se reuniram na Grécia em abril de 1998, os delegados das igrejas ortodoxas não participaram das orações comuns nem dos cultos ecumênicos da VIII assembléia do CMI em Harare. Em Porto Alegre, frente às duas liturgias eucarísticas previstas para o domingo 19 de fevereiro, uma no estilo grego e a outra no estilo russo, a organização que agrupa os jovens ortodoxos das diferentes tradições, Syndesmos, propôs a celebração de uma única liturgia eucarística no rito bizantino. Apesar de algumas personalidades ortodoxas terem apoiado esta iniciativa, a proposta de uma única celebração eucarística não prosperou.
Essa reconfiguração do movimento ecumênico foi tratada numa das intervenções centrais da Assembléia: o relatório do Moderador do CMI, Católicos Aram I: “Entramos num novo período da história ecumênica. A paisagem ecumênica está mudando radicalmente: as instituições ecumênicas tradicionais estão perdendo sua motivação e seus interesses; emergem novas formas e modelos ecumênicos; formam-se novas alianças e associações; e se estabelecem novos programas ecumênicos”, assinalou. Aram I pediu aos delegados para trabalharem na direção de um ecumenismo centralizado no povo que responda às realidades mutantes de nosso tempo, que seja integrador e visionário e que leve em conta o surgimento de novo modelos ecumênicos, chamando a atenção dos jovens, para que se tornem “pioneiros de uma nova ordem ecumênica.”

Uma pergunta que muitos se fazem, cinqüenta anos depois da fundação do CMI, é quando a Igreja Católica Romana dará o grande passo histórico para integrar a membresia do conselho, convertendo-o na expressão mais ampla e representativa do caminhar ecumênico da cristandade. Mas este passo não está próximo, como explicou a voz autorizada do Cardeal Walter Kasper, presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos. Kasper reafirmou o “compromisso irreversível” de sua igreja com o ecumenismo, mas destacou que o caráter “universal” da Igreja Católica Romana torna mais difícil sua membresia no CMI. Não obstante, disse, “temos um espaço de diálogo que consideramos essencial”.

Outra pergunta, mais recente, em resposta ao enorme crescimento do Pentecostalismo em escala mundial, é se e quando as igrejas pentecostais juntarão suas vozes às que hoje integram o CMI. Numa conferência de imprensa, representantes de igrejas “evangelicais” e pentecostais falaram sobre suas relações com o CMI e o movimento ecumênico. O apóstolo Michael Ntumy, da Igreja de Pentecostes de Ghana, disse que pentecostais, ecumênicos e católicos poderiam se constituir “num colosso espiritual” quando se deixarem “cobrir pelo Espírito Santo”. Por sua parte o Dr. Norberto Saracco, da Igreja Evangélica Boas Novas, da Argentina, asseverou que a América Latina está caminhando para uma era “post-pentecostal”, o que criará melhores condições para o diálogo ecumênico, em novas modalidades que, infelizmente não precisou. Segundo Saracco, a unidade para as igrejas evangélicas não está baseada no reconhecimento de uma autoridade hierárquica, nem sequer em acordos teológicos ou alianças entre instituições.(5) “Temos de aceitar que essa forma de fazer ecumenismo não pode ir mais longe”, afirmou.

Em Porto Alegre não se ouviram propostas claras e definidas a respeito de quais seriam esse novos modelos, nem sobre o que é necessário fazer para “deixar-se cobrir pelo Espírito Santo”, como desejaria o apóstolo Ntumy. O chamado Fórum Cristão Mundial, uma iniciativa lançada na Assembléia de Harare para explorar as possibilidades de relacionamento com as igrejas não membros do CMI, ofereceu resultados pouco satisfatórios depois de seis anos de existência e várias consultas de caráter regional e internacional. Embora os participantes desses eventos tenham coincidido em destacar a importância do fórum, as grandes organizações pentecostais – principalmente a Comunidade Pentecostal Mundial e a Assembléia de Deus Mundial – declinaram do convite para participar. Nas reuniões havidas as discussões não foram além dos
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(5) Entretanto, em algumas dessas igrejas existe uma nova autoridade hierárquica: o “apóstolo”. São líderes que se arrogam o direito de interpretar corretamente a doutrina cristã e de possuir uma visão inspirada do Espírito Santo.
intercâmbios preliminares sobre a compreensão da igreja e de sua missão. O relatório apresentado à Assembléia de Porto alegre advertia o seguinte: “Pode se esperar que quando temas mais polêmicos venham à mesa será mais difícil permanecer juntos.”

Talvez o modelo “diversidade reconciliada”, proposto por Konrad Raiser em seu livro Ecumenismo em transição seja uma resposta a este dilema. Para Raiser o ponto de partida não é uma unidade que já existe, mas a diversidade, tanto confessional como nas diferentes formas sociais que a igreja assumiu ao longo dos séculos. É a partir dessa diversidade que a unidade deve ser alcançada e restaurada.(6) Raiser fala de “fraternidade” ou de “comunhão” como conceitos bíblicos mais apropriados do que o de “unidade”. O modelo ecumênico que se deriva deste enfoque tem que ver mais com o diálogo, o compartilhar, a hospitalidade e a solidariedade entre as diferentes igrejas cristãs do que com acordos doutrinais.

A hora da América Latina

Um dia da Assembléia foi dedicado integralmente à América Latina, o continente anfitrião. Nessa jornada um bem estruturado material audiovisual apresentou a história do continente nos últimos quinhentos anos com uma ênfase especial nas lutas reivindicativas pelos direitos humanos, a justiça e a democracia. Este material foi complementado com música e canções de conteúdo social e uma representação teatral que dramatizou a luta secular pela justiça no continente. Em seu conjunto foi uma apresentação efetiva que serviu para educar a muitos delegados de outras regiões do planeta sobre a realidade latino-americana.

Se algo faltou nessa apresentação foi a ausência de uma análise conjuntural: o que está acontecendo na América Latina hoje. Foi especialmente conspícua a ausência de alguns processos que estão se configurando como uma nova dinâmica geopolítica no continente: os alcances e limitações da experiência brasileira sob um governo de esquerda; a Venezuela de Hugo Chavez com sua revolução bolivariana e sua política exterior de enfrentamento aos Estados Unidos. O histórico triunfo de Evo Morales na Bolívia; a ascensão ao poder de uma coalizão de esquerda no Uruguai; o prolongado conflito na Colômbia; a possível construção de uma estratégica base militar dos Estados Unidos no Paraguai (7); os acordos bilaterais para o livre comércio entre países latino-americanos e os Estados Unidos; os avatares das propostas integracionistas (Mercosul, Comunidade sul-americana de Nações); os fluxos migratórios; o novo campo religioso latino-americano... A ausência desta reflexão sobre a problemática atual e a falta de propostas concretas de acompanhamento, podem ter incidido no fato desta Assembléia não ter deliberado sobre iniciativas e a realização de programas específicos para América Latina, como ocorreu com a região africana na Assembléia prévia em Harare.

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(6) Raiser, Konrad, Ecumenism in transition: A Paradigm shift in the Ecumenical Movement? WCC Publications, Geneva, 1991.
(7) Embora os governos dos EE.UU. e do Paraguai tenham negado que essa base seria construída em solo paraguaio crescem as especulações a respeito nos meios de imprensa e organizações de Direitos Humanos. Segundo o diário boliviano El Deber a base está sendo construída na localidade de Mariscal Estigabrríbia, no Chaco paraguaio a uns 250km da fronteira com a Bolívia. As tropas estariam acantonadas atualmente nesse lugar onde existe uma pista de aterrisagem e um acampamento para albergar mais de 16.000 soldados. Cf. Benjamin Dangl, “Alerta pela presença militar dos EE.UU.”, Notícias Aliadas, agosto de 2005.
Um resultado significativo para América Latina foi a eleição do pastor e teólogo Walter Altmann, presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, como Moderador do CMI. Outra destacada líder ecumênica, a pastora Ofélia Ortega, da Igreja Presbiteriana de Cuba, foi eleita uma das presidentas do Conselho, em representação do Caribe. (8)

A agenda pública

Se a unidade é um requisito fundamental “para que o mundo creia”, a credibilidade das igrejas se joga também na esfera pública, em função de suas posições e respostas aos dilemas que acossam o mundo contemporâneo. Por isso toda Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas discute e adota uma série de “declarações públicas” que, sem comprometer nem exercer autoridade sobre as igrejas membros, expressa uma voz profética comum para o resto da sociedade.

Duas declarações foram aprovadas já no penúltimo dia de reuniões sobre a água e as armas nucleares, respectivamente. A chamada Declaração sobre a água para a vida chama a atenção para uma situação que exige medidas urgentes: a sobrevivência de um bilhão e duzentos milhões de pessoas que se encontram atualmente em perigo por falta de serviços suficientes de saneamento. “O acesso desigual à água causa conflito entre as pessoas, comunidades, regiões e nações”, expressa a declaração, fazendo-se eco do desafio de proporcionar água em quantidade e qualidade suficientes para sustentar todas as formas de vida no planeta frente às demandas de uma população sempre crescente e os problemas causados às fontes pela deteriorização ambiental. A declaração exorta as igrejas a adotar as medidas necessárias para conservar este recurso como parte integrante do direito à vida, e protegê-lo do consumo excessivo e da contaminação.

Também foi aprovada pela Assembléia uma Nota sobre a eliminação das armas nucleares, na qual se exorta às Igrejas membros do CMI a que pressionem os governos de seus respectivos países para lutar pela eliminação desse tipo de armamento. Nessa declaração se conclama também as Igrejas para que continuem trabalhando “para apoiar e fortalecer as zonas livres de armas nucleares, que estão estabelecidas na América Latina e no Caribe, no Pacífico Sul, no Sudeste da Ásia e da África, e que se projetam para outros lugares habitados da Terra”.

Com relação ao tema do terrorismo, de particular importância na agenda política mundial, as igrejas do Conselho declararam que “o terror, como ato indiscriminado de violência contra civis desarmados, seja por razões políticas ou religiosas, não pode jamais ser justificado legalmente, teologicamente e nem eticamente.” A Declaração sobre o terrorismo, a luta contra o terrorismo e os Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia em sua última jornada, assinala, ainda, o perigo criado pela “guerra contra o terrorismo” que “redefiniu o conceito de guerra e relativizou a lei internacional e as normas e padrões dos Direitos Humanos.” “Existe o perigo de que estes instrumentos sejam feridos em resposta ao terror”, acrescenta o documento, exortando a comunidade internacional a fortalecer a Corte Penal Internacional como instrumento
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(8) Os outros membros latino-americanos do novo Comitê Central são: o Pastor Héctor Petrecca, Igreja Cristã Bíblica (pentecostal da Argentina); Pastor Carlos Duarte, Igreja Evangélica do Rio da Prata (Argentina); Bispo Carlos Poma, Igreja Evangélica Metodista da Bolívia; Dra. Magali Nascimento Cunha, Igreja Metodista (Brasil).

idôneo para responder aos atos terroristas, afirmando, ao mesmo tempo, que “o terror só poderá ser erradicado por uma comunidade internacional que afirme o respeito à dignidade dos seres humanos e ao império da lei.”

A Assembléia se pronunciou sobre outro assunto sumamente polêmico: a responsabilidade da comunidade internacional para proteger as populações vulneráveis em risco. O problema tem duas faces: por um lado, a realidade de trágicas e espetaculares falhas do sistema internacional para proteger do genocídio amplos setores da população de um país, como aconteceu em Rwanda e está ocorrendo agora no Sudão; por outro, que, com freqüência, a chamada “intervenção humanitária” tem sido utilizada para descrever uma intervenção militar externa nos assuntos internos de um Estado soberano.

Sobre esta temática foi adotada uma Declaração sobre populações vulneráveis em perigo: a responsabilidade de proteger, que é fruto de um processo de estudo e consulta de vários anos que tomou para si o conceito de Responsabilidade de Proteger adotado pela “Comissão Internacional sobre a Intervenção e a Soberania dos Estados” da ONU em seu relatório de 2001. Este conceito redefine a soberania como responsabilidade e não como poder absoluto, o que lhe permite a declaração advertir que “os Estados já não podem se esconder atrás do pretexto da soberania para perpetrar violações aos Direitos Humanos de seu cidadãos e viver em total impunidade.” A ênfase, entretanto, é colocada na prevenção antes que no uso da força, porque, de acordo com a declaração “ como igrejas não cremos no exercício da força letal para alcançar uma nova ordem de paz e segurança.” Por meio da prevenção se pretende uma percepção prévia das condições de insegurança que se podem dar num país ou numa região –incluindo a exclusão econômica, social e política – constituindo-se em caldo de cultivo favorável para a emergência de conflitos que colocariam em perigo as populações vulneráveis.

O CMI depois de Porto Alegre

Frente a um Conselho que muitas vezes mostrou propensão para envolver-se numa ampla gama de projetos e programas, em Porto Alegre dominou um espírito diferente, persuasivamente manifesto na consigna de “fazer menos, mas fazer bem”. Uma redução programática que corresponde ao período de “vacas magras” que, há vários anos, vivem tanto o CMI como o movimento ecumênico em geral, e do qual parece não haver uma saída a curto e nem a médio prazo. Esse fazer menos e fazê-lo bem deverá traduzir-se numa maior coerência no trabalho de seus diferentes departamentos, comissões e programas.

Um Conselho mais centrado na reflexão e no debate doutrinal seria outro dos frutos desta XI Assembléia. Responderia assim às reivindicações provenientes tanto da Igreja Católica Romana como de algumas igrejas membros, para fortalecer e integrar o trabalho da Comissão de Fé e Constituição na agenda do Conselho. Isto permitiria abordar o que um documento programático definiu como “as agudas questões eclesiológicas” levantadas pela Comissão Especial sobre a Participação Ortodoxa no CMI, além de capacitar o Conselho para ser “uma voz ética forte e crível”. Esse mesmo documento assinala que o Conselho deve articular “uma base teológica clara” para todo o seu trabalho, destacando a estreita relação entre unidade, espiritualidade e missão. Embora missão e evangelização tenham sido temas notavelmente ausentes nos grandes debates desta Assembléia, no final, se pediu ao Conselho que seu futuro trabalho na missão e na evangelização busque comprometer as igrejas na procura de “novas formas de experimentar a fé cristã”.

Em seu esforço diaconal o CMI disporá recursos para que suas igrejas membros possam responder à pandemia do HIV/AIDS, prestar atenção às vítimas do racismo e outros tipos de discriminação (dalits na Índia (9), povos indígenas, pessoas de descendência africana) e estabelecer pastorais especializadas para pessoas com deficiências.

Outra área de concentração será a do diálogo inter-religioso, que, provavelmente, irá além do debate doutrinal para articular ações educativas práticas e de acompanhamento às igrejas que vivem em países e regiões em conflito. Em seu relatório à Assembléia o Secretário Geral do Conselho, Dr. Sam Kobia, expressou a necessidade de se fortalecer o testemunho comum das Igrejas e o diálogo inter-religioso para o enfrentamento conjunto dos problemas que afetam a comunidade humana, destacando a “urgência da ação inter-religiosa” com uma visão ampla e inclusiva. Sublinhou ainda que “os contactos entre crentes de diferentes religiões, estabelecidos por meio de um paciente diálogo durante tempos de paz podem impedir que, em tempos de conflitos, a religião seja utilizada como arma.”

No quadro da Década para Superação da Violência a Assembléia recomendou que o Conselho prepare uma convocação internacional ecumênica pela paz que marque a sua culminação em 2010. Com isso retomava, de certo modo, a proposta do teólogo mártir Dietrich Bonhoeffer que, nos anos trinta do século passado sonhou com a realização de um grande concílio das igrejas cristãs em favor da paz. Embora esta Assembléia não tenha se lembrado de maneira especial do centenário de seu nascimento (04 de fevereiro de 1906), sua teologia se fez presente, de algum modo, em suas deliberações, particularmente a sua denúncia da “graça barata” e suas reflexões em favor de um discipulado que exige dos cristãos o pagamento de um alto preço, às vezes, o da própria vida.

A Graça que transforma

Depois das angústias de Harare, Porto Alegre foi como um grande suspiro de alívio para o CMI. As ameaças de ruptura por parte das igrejas ortodoxas que se expressaram com muita força na assembléia africana, tornaram-se coisa do passado nesta Nona Assembléia. O Conselho pode felicitar-se por ter deixado para trás este espinhoso problema, embora as questões eclesiológicas levantadas pela Comissão Especial ainda tenham de ser consideradas com suas possíveis implicações para vida futura deste organismo.

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(9) Embora a Índia tenha alcançado, há mais de meio século, sua independência e seja comumente chamada de “a maior democracia do mundo” isto não mudou muito a triste sorte dos “intocáveis” – pessoas marcadas por seu nascimento a serem consideradas impuras pelo sistema de castas --. Mahatma Gandhi as chamou de Harijan, “filhos de Deus”, num esforço para integrá-las à sociedade. Estes discriminados adotam o nome de dalits ou “deprimidos”. Estima-se que vivem hoje na Índia 160 milhões de dalits aos que não é permitido beber água dos mesmos poços, assistir aos mesmos templos ou usar calçado na presença de pessoas de uma casta superior. Os dalits são relegados aos trabalhos mais duros e pior remunerados e vivem no temor constante de serem humilhados publicamente, atacados ou violados fisicamente pelos hindus de uma casta superior.


Há muitas razões, sem dúvida, para se congratular com esta Nona Assembléia, tanto por seus momentos estelares como pela sua inegável afirmação da vocação ecumênica das igrejas que integram o CMI. O documento Chamados a ser uma única Igreja constitui um significativo compromisso destas igrejas para renovar seus esforços para tornar mais visível a unidade ao dar prioridade a temas como a Catolicidade, o Batismo e a Oração. O fruto destes esforços permitiria ao Conselho, e ao movimento ecumênico em seu conjunto, oferecer ao mundo “uma mensagem cristã espiritualmente coerente e cheia de graça” e, talvez, a incorporação de novos atores, uma mais efetiva coordenação de suas respectivas agendas e o aprofundamento da comunhão (koinonia) entre as igrejas.

Em Porto Alegre ouviu-se a voz profética das igrejas em relação aos temas mais críticos de nosso tempo. Da resposta pastoral à pandemia do HIV/AIDS até às iniciativas para promover a paz e se afirmaram as visões e os programas que permitirão ao Conselho continuar sua peregrinação de serviço e esperança num mundo transido pelo sofrimento e o desespero. Depois de quase seis décadas de sua fundação é alentador que essas igrejas continuem reconhecendo a necessidade do Conselho como uma expressão da busca da unidade e da comunhão entre elas; como um instrumento para apresentar uma voz profética e coerente em resposta aos desafios globais e como uma plataforma para o diálogo inter-religioso na procura da paz.

No encerramento do magno evento o Secretário Geral do CMI destacou: “Esta Assembléia afirmou a vitalidade do movimento ecumênico e o compromisso das igrejas com a visão e a meta ecumênica da unidade, assim como com a busca de um mundo mais justo e pacífico.” Atrevo-me a acrescentar que a Assembléia reafirmou também a vontade destas igrejas em sua busca comum do Reino de Deus. Por isso o seu lema foi mais do que uma invocação: as igrejas em Porto Alegre sentiram e expressaram a urgência de cooperar na obra transformadora de Deus para criar um mundo diferente e melhor, no qual se manifeste plenamente a graça recebida em Jesus Cristo.


Manuel Quintero Perez, Jornalista, membro da Igreja Presbiteriana Reformada de Cuba, Diretor do programa Frontier Internship in Mission, com sede em Genebra, Suíça.