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ECUMENISMO E DIREITOS
Ano 1 - Nº 2
Dezembro de 2006
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Elementos de Identidades para a atuação do Serviço Social em Territórios Negros


JMArruti/Acervo KOINONIA
Benedito Leite e outros integrantes da comunidade de Alto da Serra/RJ

Por: Estela Martini Willeman
Data: 21/12/2006

Elementos de Identidades para a atuação do Serviço Social em Territórios Negros
Desde antes da formação dos Quilombos, até as subversivas rodas de capoeira, o culto dos Orixás, a Umbanda e os atuais remanescentes de Quilombos percebemos processos que envolvem lutas pelo resgate e pela manutenção de uma cultura composta de identidades privilegiadamente afro-brasileiras visando, de alguma forma, a sobrevivência à tentativa civilizatória etnocêntrica ocidental.

Ao longo de alguns anos pesquisando sobre os processos de formação de identidades positivas, seja pelo resgate de uma tradição, seja pela invenção ou re-invenção da mesma ou por algum outro mecanismo, este processo se dá necessariamente por meio de trocas, portanto pressupõe a existência do outro.
Dado que aqui tratamos de um processo de formação de identidade de um grupo, entendemos ser este um processo coletivo de uma comunidade que é concreta e simbólica no mesmo ato, posta a existência concreta e histórica deste grupo e a dimensão política de tal processo. Ao local onde ocorre esta reunião concreta de pessoas e este processo político com um objetivo comum, denominamos território.

Baseados em Santos (2001) entendemos que a classificação do território se dá em função do uso que se dá ao mesmo, portanto um território, no momento em que se destina ao processo de formação de identidades negras positivas, à busca de uma tradição para a formação das mesmas ou à re-invenção destas, é objetiva e simbolicamente um território negro.

No mesmo sentido, Haesbaert (2002) dá para estes tipos de território uma classificação: chama-os de “territórios alternativos”. Autores como Bauman (2003) chamarão os espaços onde se constroem alternativas de segurança na sociedade contemporânea de “comunidade”. Este último, em sua obra do mesmo nome, identifica como a Revolução Industrial transformou trabalhadores – outrora “comunidade” – em “massa” e insinua que a modernidade precisou destruir as comunidades para se instituir. Segundo ele, as certezas dos elos que uniam as pessoas em comunidades simbólicas foram perdidas e apenas o que restou foram incertezas cada vez mais catalizadas pelos sentimentos de individualismo e insegurança que se alimentam mutuamente no bojo de uma contemporaneidade fortemente marcada pelas relações de produção.

Outrossim, entendemos que os grupamentos humanos, uma vez entrando em um consenso sobre o que é importante para o grupo podem, sistematicamente, forjar locais de relativa segurança; não propriamente a utópica e modelar “comunidade” original de Bauman, mas os “territórios”, onde os laços não são tácitos – posta a impossibilidade natural destes - mas negociados em busca de objetivos comuns, num processo político democrático e de afirmação das liberdades individuais e coletivas.

Neste contexto, apresenta-se-nos como fundamental a figura (para nós, ideal) do Assistente Social enquanto agente interventor tal qual a idéia gramsciana do “intelectual orgânico” (Gramsci, 1968) na perspectiva de sua ação sempre pautada no resgate e na manutenção de direitos através de processos de conscientização e formação de “contra-hegemonias” (idem, ibidem) para o alargamento de possibilidades dos sujeitos individuais e coletivos.
De acordo com a perspectiva de Hannah Arendt (2001), na esfera do público, só se pode conferir caráter real a algo quando há, muito embora se considerando a singularidade de cada um na esfera do privado, uma consonância de objetivos, uma pluralidade. Visto deste ponto, o esforço dos movimentos negros de constituírem espaços públicos de reflexão e de exposição da problemática a qual identificam como não resolvida ou a ser “explorada” parece-nos uma maneira bastante fértil de tirar do âmbito privado questões que passaram a fazer parte do interesse político e social de toda a sociedade, passando a se formar, resgatar ou re-significar identidades coletivas.

Sabemos que à época da colonização brasileira foram lançadas idéias de que era necessário se fazerem profilaxias, preservando-se a identidade do “nós” (brancos, cristãos, civilizados, economicamente prósperos, etc) em contraposição a todos os tipos de “outros”. Articularam-se, assim, atitudes estigmatizadas em torno da alteridade através de práticas do medo e de autoritarismo ainda que em alguns momentos camuflados, que, negando a existência dos diversos grupos étnicos se vê a si própria, se assume e é compreendida como uma expressão “regeneradora”. O que está subjacente não é somente uma suposta inferioridade de um grupo, mas a alteridade ameaçadora da homogeneidade e sua resistência à assimilação.

A partir dessa lógica, as chamadas identidades sociais minoritárias, resistentes à assimilação são consideradas secundárias, “irremediavelmente particularistas” e, principalmente, “atrasadas” em oposição às culturas dos grupos classificados como universalistas. As culturas “diferentes” são consideradas como entraves ao progresso e às “culturas superiores”, o que re-situa o tema da hierarquia, onde, como mito, a “hierarquia natural” deposita na cultura a instância decisiva de classificação, organização e controle das relações sociais, fato que merece destaque, na medida em que amplia o alvo dos processos de dominação-exploração a todos os considerados “desviantes” da cartilha determinada.

Se por um lado, a partir do nefasto – porém largamente difundido – e quase consenso sobre a idéia de democracia racial atribui-se à contribuição das três “raças” a formação da nacionalidade, por outro, deu-se ao branco papel central dessa formação, onde coube ao branco contribuir com a razão e ao negro e ao nativo brasileiro são admitidas “pequenas contribuições” no campo da emoção, do folclore e do exótico. Isso, sem dúvida, até hoje dificulta a formação sócio-psicológica dos negros, pois nega já às crianças negras a auto-estima tão necessária à formação de qualquer pessoa, conforme demonstra Lovell (2000) em seu estudo norte-americano sobre evasão e aproveitamento escolar correlatos ao concreto aproveitamento no mercado de trabalho. A aplicabilidade de suas hipóteses para o caso brasileiro parece bastante razoável.

Talvez não exista nada que conteste com maior freqüência a democracia racial do que a própria situação visivelmente desfavorável do negro brasileiro na sociedade contemporânea. Sobretudo, muitas vezes, quem combate o racismo é visto como racista.

Nesta lógica, entendemos que nos atuais “tempos hipermodernos” (Lipovetsky, G., 2004) a secessão dos bem-sucedidos figura como uma fuga da comunidade. Em época de hiper consumismo, hiper hedonismo, e diversos outros hiper, não há espaço para compromissos duradouros e o comunitarismo figura como a filosofia dos fracos, posto que este formato de sociedade precisa do individualismo para sobreviver. O princípio da “comunidade” desestabiliza as bases dela e relativiza sua eficácia na obtenção da satisfação e felicidade humanas. Nesta lógica a negação da comunidade e constituição de movimentos dão uma esperança ilusória de redistribuição. Os “novíssimos movimentos”(Abramo, P. 2001) sociais representam apenas uma gota d’água que é incapaz de saciar a sede do povo, mas o mínimo suficiente pra apagar o pavio de dinamite que sua organização representaria.

Partindo deste cenário, trabalhamos com o conceito de território que é inicialmente objetivado pela geografia e, posteriormente incorporado por outras disciplinas a partir de uma abordagem, como a de Milton Santos (2001) e Zilá Mesquita (1995) e que este não se limita em espaços físicos determinados. Na perspectiva destes autores (e nossa) o território é definido pelas práticas que nele se dão e que, em alguma medida, influenciarão e serão impactadas na construção/resgate/re-significação de um conjunto simbólico e/ou concreto orientado baseado nas identidades individuais e coletivas que engendram a noção de pertencimento. Não obstante, conforme afirma Lipovetsky (op. cit.), na contemporaneidade haja um movimento (hipermoderno - como ele mesmo diz) de individualismo exacerbado, um hiperindividualismo, também há, paradoxalmente, um movimento de busca de “raízes” e de pertencimentos.

Este movimento global está consubstanciado na dinâmica da sociedade moderna e é importante fazer vistas para a existência do mesmo ao perceber que é justamente a noção de um esvaziamento da dimensão política nos termos de Arendt (op.cit) que irá implicar na reflexão que dimensiona a importância da ressignificação dos territórios não apenas como questão ideológica ou política, mas da própria existência de grupos humanos.

Conforme Mesquita (1995), o território é um espaço selecionado para a vida e sobrevivência de um sistema, onde a identidade é definida “pela e na relação com o outro” (Vinagre Silva, 1999) e é consubstanciado na dinâmica sócio-histórica. Entendemos, então, que “a criação de uma identidade racial negra positiva implicará então um processo constante de identificação do eu ao redor do outro em relação ao eu” (Silva, J. 2000 pp.48-49 apud D’Adesky, J. 1997.p.33). A criação de territórios negros torna-se imperativa quando se pretende uma recriação/elaboração de uma identidade positiva como forma de pertencimento social e como direito individual à diferença que a coletividade vai assegurar, dando uma leitura especial à idéia de cidadania.

Visando a preservação desta cidadania, e portanto, a garantia concreta de direitos nos espaços público e privado, entendemos que precisam estar enraizadas nas práticas e relações humanas determinadas regras de sociabilidade. Não seria excessivo colocar em relevo que este processo passa pela ordem legal e institucional dependendo, sobretudo, de uma cultura pública democrática que se abra ao reconhecimento da legitimidade das lutas pela formação de identidades e territórios alternativos como meios de conquista desta cidadania.

Neste contexto, vemos que os paradigmas norteadores do projeto profissional do Serviço Social explícitos no Código de Ética Profissional a partir de 1993; na Lei de Regulamentação da Profissão (866/93); e na Proposta de Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço Social, tornando regra dentre a categoria profissional os compromissos e valores a serem concretizados nos espaços sócio-institucionais (territórios mais diversos), através de mediações. Afirma-se, com destaque, no Código de Ética, diversos compromissos e poderíamos citar uma profusão deles, mas é suficiente saber que o Assistente Social é comprometido com: “a ampliação da liberdade – concebida como autonomia, emancipação e pleno desenvolvimento dos indivíduos”; “a defesa intransigente dos direitos humanos contra todo tipo de arbítrio e autoritarismo” e a “defesa, aprofundamento e consolidação da cidadania e da democracia”. (CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL, p.16.).

Sendo assim, percebemos um intercâmbio entre as noções de formação de identidades, de territórios e o conceito de sociedade inclusiva, na qual a demanda por direitos tem o sentido da construção/resgate/re-significação de identidade e da inclusão de grupos ou segmentos sociais minoritários, em situação de exclusão e/ou subordinação, objetos prementes da intervenção ativa do Serviço Social como profissão necessariamente comprometida ideologicamente com as minorias. Tal direcionamento é parte substancial do Projeto Ético-Político do trabalho do Serviço Social enquanto profissão, que, pela dimensão ética, convoca os profissionais a refletirem sobre os valores que orientam as suas ações e, pela dimensão política e interventiva visa à construção de estratégias no campo democrático popular, para estabelecer mediações nos territórios do cotidiano.

Estela Martini Willeman - Assistente Social pela UFRJ; mestranda em Serviço Social pela PUC- Rio; consultora convidada do projeto GLC – global language center - pela diversidade na educação; consultora convidada do projeto AYV – ampliando vozes pela educação.

BIBLIOGRAFIA
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abr, maio 2001.

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Forense Universitária.
Rio de Janeiro, 2001.

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade- a busca por segurança no mundo atual. Tradução: Plínio
Dentzien. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003.

CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL. Assistente Social: ética e
direitos. Coletânea de leis e resoluções. Cress 7ª Região – Rio de Janeiro, 2003

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura, Rio de Janeiro, Civilização.
Brasileira, 1968.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. DP&A, Rio de Janeiro, 2000.

HAESBAERT, Rogério. Territórios alternativos. Niterói: EdUFF, São Paulo, CONTEXTO, 2002.

LIPOVETSKY, Gilles. Tempos Hipermodernos. Tradução: Mário Vilela. Barcarola, SP, 2004.

LOVELL, Peggy A. “Race, gender and development in Brazil”, Latin American Research Review.
In: Estudos Afro-Asiáticos. nº. 38 Rio de Janeiro, 1994, publicado em Dec. 2000.

MESQUITA, Zilá. Territórios do cotidiano: uma introdução a novos olhares e experiências. Ed.
Universidade/UFRGS/UNISC, Porto Alegre, 1995.

SILVA, Joselina da. O clube dos negros. In: Revista Interseções, Ano 01, nº 01, UERJ – Rio de
Janeiro, 2000.

SANTOS, Milton. O Brasil: Território no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001.

VINAGRE SILVA, Marlise. Conjugalidade e violência: retratos em multicolor. Tese de doutorado.
PUC-SP, São Paulo, 1999.


1 - Principalmente a partir do surgimento da “teoria da democracia racial” de Freyre, foram paulatinas e gradualmente fortalecidas as idéias de que a colonização portuguesa, em relação a outras práticas de escravidão, foi uma colonização que, grosso modo, não maltratou tanto o negro. E quando isso acontecia, as punições eram justas. Florescia assim, a teoria da harmonia entre negros e brancos no Brasil, o que implicava, e implica ainda hoje, na perda de sentido das discussões das questões raciais: “somos um país moreno”.