Elementos de Identidades para a atuação do Serviço Social
em Territórios Negros
Desde antes da formação dos Quilombos, até as subversivas
rodas de capoeira, o culto dos Orixás, a Umbanda e os atuais remanescentes
de Quilombos percebemos processos que envolvem lutas pelo resgate e pela manutenção
de uma cultura composta de identidades privilegiadamente afro-brasileiras visando,
de alguma forma, a sobrevivência à tentativa civilizatória
etnocêntrica ocidental.
Ao longo de alguns anos pesquisando sobre os processos de formação
de identidades positivas, seja pelo resgate de uma tradição, seja
pela invenção ou re-invenção da mesma ou por algum
outro mecanismo, este processo se dá necessariamente por meio de trocas,
portanto pressupõe a existência do outro.
Dado que aqui tratamos de um processo de formação de identidade
de um grupo, entendemos ser este um processo coletivo de uma comunidade que
é concreta e simbólica no mesmo ato, posta a existência
concreta e histórica deste grupo e a dimensão política
de tal processo. Ao local onde ocorre esta reunião concreta de pessoas
e este processo político com um objetivo comum, denominamos território.
Baseados em Santos (2001) entendemos que a classificação do território
se dá em função do uso que se dá ao mesmo, portanto
um território, no momento em que se destina ao processo de formação
de identidades negras positivas, à busca de uma tradição
para a formação das mesmas ou à re-invenção
destas, é objetiva e simbolicamente um território negro.
No mesmo sentido, Haesbaert (2002) dá para estes tipos de território
uma classificação: chama-os de “territórios alternativos”.
Autores como Bauman (2003) chamarão os espaços onde se constroem
alternativas de segurança na sociedade contemporânea de “comunidade”.
Este último, em sua obra do mesmo nome, identifica como a Revolução
Industrial transformou trabalhadores – outrora “comunidade”
– em “massa” e insinua que a modernidade precisou destruir
as comunidades para se instituir. Segundo ele, as certezas dos elos que uniam
as pessoas em comunidades simbólicas foram perdidas e apenas o que restou
foram incertezas cada vez mais catalizadas pelos sentimentos de individualismo
e insegurança que se alimentam mutuamente no bojo de uma contemporaneidade
fortemente marcada pelas relações de produção.
Outrossim, entendemos que os grupamentos humanos, uma vez entrando em um consenso
sobre o que é importante para o grupo podem, sistematicamente, forjar
locais de relativa segurança; não propriamente a utópica
e modelar “comunidade” original de Bauman, mas os “territórios”,
onde os laços não são tácitos – posta a impossibilidade
natural destes - mas negociados em busca de objetivos comuns, num processo político
democrático e de afirmação das liberdades individuais e
coletivas.
Neste contexto, apresenta-se-nos como fundamental a figura (para nós,
ideal) do Assistente Social enquanto agente interventor tal qual a idéia
gramsciana do “intelectual orgânico” (Gramsci, 1968) na perspectiva
de sua ação sempre pautada no resgate e na manutenção
de direitos através de processos de conscientização e formação
de “contra-hegemonias” (idem, ibidem) para o alargamento de possibilidades
dos sujeitos individuais e coletivos.
De acordo com a perspectiva de Hannah Arendt (2001), na esfera do público,
só se pode conferir caráter real a algo quando há, muito
embora se considerando a singularidade de cada um na esfera do privado, uma
consonância de objetivos, uma pluralidade. Visto deste ponto, o esforço
dos movimentos negros de constituírem espaços públicos
de reflexão e de exposição da problemática a qual
identificam como não resolvida ou a ser “explorada” parece-nos
uma maneira bastante fértil de tirar do âmbito privado questões
que passaram a fazer parte do interesse político e social de toda a sociedade,
passando a se formar, resgatar ou re-significar identidades coletivas.
Sabemos que à época da colonização brasileira foram
lançadas idéias de que era necessário se fazerem profilaxias,
preservando-se a identidade do “nós” (brancos, cristãos,
civilizados, economicamente prósperos, etc) em contraposição
a todos os tipos de “outros”. Articularam-se, assim, atitudes estigmatizadas
em torno da alteridade através de práticas do medo e de autoritarismo
ainda que em alguns momentos camuflados, que, negando a existência dos
diversos grupos étnicos se vê a si própria, se assume e
é compreendida como uma expressão “regeneradora”.
O que está subjacente não é somente uma suposta inferioridade
de um grupo, mas a alteridade ameaçadora da homogeneidade e sua resistência
à assimilação.
A partir dessa lógica, as chamadas identidades sociais minoritárias,
resistentes à assimilação são consideradas secundárias,
“irremediavelmente particularistas” e, principalmente, “atrasadas”
em oposição às culturas dos grupos classificados como universalistas.
As culturas “diferentes” são consideradas como entraves ao
progresso e às “culturas superiores”, o que re-situa o tema
da hierarquia, onde, como mito, a “hierarquia natural” deposita
na cultura a instância decisiva de classificação, organização
e controle das relações sociais, fato que merece destaque, na
medida em que amplia o alvo dos processos de dominação-exploração
a todos os considerados “desviantes” da cartilha determinada.
Se por um lado, a partir do nefasto – porém largamente difundido
– e quase consenso sobre a idéia de democracia racial atribui-se
à contribuição das três “raças”
a formação da nacionalidade, por outro, deu-se ao branco papel
central dessa formação, onde coube ao branco contribuir com a
razão e ao negro e ao nativo brasileiro são admitidas “pequenas
contribuições” no campo da emoção, do folclore
e do exótico. Isso, sem dúvida, até hoje dificulta a formação
sócio-psicológica dos negros, pois nega já às crianças
negras a auto-estima tão necessária à formação
de qualquer pessoa, conforme demonstra Lovell (2000) em seu estudo norte-americano
sobre evasão e aproveitamento escolar correlatos ao concreto aproveitamento
no mercado de trabalho. A aplicabilidade de suas hipóteses para o caso
brasileiro parece bastante razoável.
Talvez não exista nada que conteste com maior freqüência
a democracia racial do que a própria situação visivelmente
desfavorável do negro brasileiro na sociedade contemporânea. Sobretudo,
muitas vezes, quem combate o racismo é visto como racista.
Nesta lógica, entendemos que nos atuais “tempos hipermodernos”
(Lipovetsky, G., 2004) a secessão dos bem-sucedidos figura como uma fuga
da comunidade. Em época de hiper consumismo, hiper hedonismo, e diversos
outros hiper, não há espaço para compromissos duradouros
e o comunitarismo figura como a filosofia dos fracos, posto que este formato
de sociedade precisa do individualismo para sobreviver. O princípio da
“comunidade” desestabiliza as bases dela e relativiza sua eficácia
na obtenção da satisfação e felicidade humanas.
Nesta lógica a negação da comunidade e constituição
de movimentos dão uma esperança ilusória de redistribuição.
Os “novíssimos movimentos”(Abramo, P. 2001) sociais representam
apenas uma gota d’água que é incapaz de saciar a sede do
povo, mas o mínimo suficiente pra apagar o pavio de dinamite que sua
organização representaria.
Partindo deste cenário, trabalhamos com o conceito de território
que é inicialmente objetivado pela geografia e, posteriormente incorporado
por outras disciplinas a partir de uma abordagem, como a de Milton Santos (2001)
e Zilá Mesquita (1995) e que este não se limita em espaços
físicos determinados. Na perspectiva destes autores (e nossa) o território
é definido pelas práticas que nele se dão e que, em alguma
medida, influenciarão e serão impactadas na construção/resgate/re-significação
de um conjunto simbólico e/ou concreto orientado baseado nas identidades
individuais e coletivas que engendram a noção de pertencimento.
Não obstante, conforme afirma Lipovetsky (op. cit.), na contemporaneidade
haja um movimento (hipermoderno - como ele mesmo diz) de individualismo exacerbado,
um hiperindividualismo, também há, paradoxalmente, um movimento
de busca de “raízes” e de pertencimentos.
Este movimento global está consubstanciado na dinâmica da sociedade
moderna e é importante fazer vistas para a existência do mesmo
ao perceber que é justamente a noção de um esvaziamento
da dimensão política nos termos de Arendt (op.cit) que irá
implicar na reflexão que dimensiona a importância da ressignificação
dos territórios não apenas como questão ideológica
ou política, mas da própria existência de grupos humanos.
Conforme Mesquita (1995), o território é um espaço selecionado
para a vida e sobrevivência de um sistema, onde a identidade é
definida “pela e na relação com o outro” (Vinagre
Silva, 1999) e é consubstanciado na dinâmica sócio-histórica.
Entendemos, então, que “a criação de uma identidade
racial negra positiva implicará então um processo constante de
identificação do eu ao redor do outro em relação
ao eu” (Silva, J. 2000 pp.48-49 apud D’Adesky, J. 1997.p.33). A
criação de territórios negros torna-se imperativa quando
se pretende uma recriação/elaboração de uma identidade
positiva como forma de pertencimento social e como direito individual à
diferença que a coletividade vai assegurar, dando uma leitura especial
à idéia de cidadania.
Visando a preservação desta cidadania, e portanto, a garantia
concreta de direitos nos espaços público e privado, entendemos
que precisam estar enraizadas nas práticas e relações humanas
determinadas regras de sociabilidade. Não seria excessivo colocar em
relevo que este processo passa pela ordem legal e institucional dependendo,
sobretudo, de uma cultura pública democrática que se abra ao reconhecimento
da legitimidade das lutas pela formação de identidades e territórios
alternativos como meios de conquista desta cidadania.
Neste contexto, vemos que os paradigmas norteadores do projeto profissional
do Serviço Social explícitos no Código de Ética
Profissional a partir de 1993; na Lei de Regulamentação da Profissão
(866/93); e na Proposta de Diretrizes Gerais para o Curso de Serviço
Social, tornando regra dentre a categoria profissional os compromissos e valores
a serem concretizados nos espaços sócio-institucionais (territórios
mais diversos), através de mediações. Afirma-se, com destaque,
no Código de Ética, diversos compromissos e poderíamos
citar uma profusão deles, mas é suficiente saber que o Assistente
Social é comprometido com: “a ampliação da liberdade
– concebida como autonomia, emancipação e pleno desenvolvimento
dos indivíduos”; “a defesa intransigente dos direitos humanos
contra todo tipo de arbítrio e autoritarismo” e a “defesa,
aprofundamento e consolidação da cidadania e da democracia”.
(CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL, p.16.).
Sendo assim, percebemos um intercâmbio entre as noções
de formação de identidades, de territórios e o conceito
de sociedade inclusiva, na qual a demanda por direitos tem o sentido da construção/resgate/re-significação
de identidade e da inclusão de grupos ou segmentos sociais minoritários,
em situação de exclusão e/ou subordinação,
objetos prementes da intervenção ativa do Serviço Social
como profissão necessariamente comprometida ideologicamente com as minorias.
Tal direcionamento é parte substancial do Projeto Ético-Político
do trabalho do Serviço Social enquanto profissão, que, pela dimensão
ética, convoca os profissionais a refletirem sobre os valores que orientam
as suas ações e, pela dimensão política e interventiva
visa à construção de estratégias no campo democrático
popular, para estabelecer mediações nos territórios do
cotidiano.
Estela Martini Willeman - Assistente Social pela UFRJ; mestranda em Serviço
Social pela PUC- Rio; consultora convidada do projeto GLC – global language
center - pela diversidade na educação; consultora convidada do
projeto AYV – ampliando vozes pela educação.
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1 - Principalmente a partir do surgimento da “teoria da democracia racial” de Freyre, foram paulatinas e gradualmente fortalecidas as idéias de que a colonização portuguesa, em relação a outras práticas de escravidão, foi uma colonização que, grosso modo, não maltratou tanto o negro. E quando isso acontecia, as punições eram justas. Florescia assim, a teoria da harmonia entre negros e brancos no Brasil, o que implicava, e implica ainda hoje, na perda de sentido das discussões das questões raciais: “somos um país moreno”.