Tempo e Presença Digital - Página Principal
 
“RELIGIÃO E VIOLÊNCIA”
Ano 6 - Nº 25
Agosto de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
“Violência, mídia e religião”
Por: Luiz Carlos Ramos

Não por força, nem por violência,
mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos.
(Profeta Zacarias 4.6)

A tensão dialética entre violência e não-violência na experiência fé/religião é antiga. O verso em epígrafe é uma expressão flagrante disso: ao mesmo tempo em que apela para o Espírito, como contraponto da força e da violência, a frase é assinada pelo Senhor dos Exércitos. A contradição é flagrante, pois não há nada mais violento do que o exército.

Religião/fé e violência
Cruz e espada demonstram serem boas e históricas companheiras. Foi assim durante as cruzadas, foi assim durante a inquisição, foi assim durante a colonização dos “novos” continentes. Mas esse não parece ser mérito exclusivo do cristianismo. O mesmo senti­mento, com variações culturais, o mesmo espí­rito bélico, parece seduzir indivíduos de todos os credos em todas as épocas. Todos se “alistam” nos exércitos sagrados para “combater o bom combate”, para travar a “guerra santa”, para “batalhar contra os inimi­gos de deus”.
Em nome de Deus, da sua fé e da sua religião, os Bôeres instituíram o Apartheid na África do Sul: um sistema social que divide a sociedade em cidadãos de primeira e de segunda linhas. Em nome da mesma fé, ingleses espoliaram a Índia e tantas outras colô­nias. Também amparados pelas mesmas cruzes e coroas, portugueses, espanhóis e ingle­ses promoveram o genocídio de quase 100 milhões pessoas, habitantes originais do con­tinente americano.
Os mesmos colonizadores, em nome da mesma fé, perpetuaram durante séculos a abo­minável prática da escravidão de homens e mulheres negras, arrancadas à força da sua terra africana. Para não falar da Inquisição, da tortura e da pena de morte, devidamente sacramentada pelos homens da fé.

Religião/fé e não-violência
Por outro lado, paralela a essa história, desde os tempos bíblicos, a pregação e a prática da não-violência, ainda que timidamente, se fazem notar. Profetas e poetas hebreus, como vozes solitárias e errantes, defendiam o direito e a justiça apelando para o bom-senso pacífico, contra o beligerante senso-comum. Como se sabe, obtiveram pouco êxito.
Haverá maior exemplo de resistência pacífica e não-violenta do que o do próprio Jesus de Nazaré? Este, reiteradas vezes conteve os ímpetos bélicos dos seus seguidores, e numa atitude de máximo altruísmo pacífico entrega sua própria vida “como ovelha muda diante dos seus tosquiadores”.
Os que seguiram o exemplo de Cristo receberam a alcunha de “mártires”?—?que, a prin­cípio, significava simplesmente “testemunha”, mas que logo passou a ser sinônimo daquele ou daquela que morre por sua fé. A maioria entregando a sua vida sem oferecer resistência, orando por seus inimigos, perdoando-lhes a ignorância.
Exemplo mais recente encontramos na linda história do mártir dos direitos civis estadunidenses, Rev. Martin Luther King Jr. Sua prática de resistência não-violenta, mas enfática e persuasiva, reverteu, em meados do século 20, os rumos da segregação racial no país, e inspirou o mesmo sentimento em todo o mundo.
Mas a resistência não-violenta não é exclusivamente cristã (nem mesmo deve ter sido por ele inventada). O mais belo exem­plo disso foi dado por Mahatma Gandhi. Ambos, Luther King Jr. e Gandhi pagaram com sua própria vida por sua opção de fé e civilidade. Mas o fruto de sua prática não pode ser ignorado nem mesmo pelos mais céticos, nem desconsiderado pelos mais obstinados e contraditórios defensores do uso da força para fins pacíficos.

Religião/fé, violência e mídia
O proibido, a fealdade, a monstruosidade, o fracasso, a morte, a loucura, a ausência, etc, misteriosamente exercem tanto fascínio sobre as pessoas quanto o jogo e o sexo.
Na mídia, a violência torna-se igualmente entretenimento. Esta ampliou consideravelmente a oferta das desgraças, das catástrofes, das tragédias, dos perigos, das ameaças, para alimentar a fome de “sangue”, para satisfazer o prazer do medo, para realizar as fantasias mórbidas e todas as for­mas de perversões, enfim, para alimentar o inferno interior que cada um tem guardado nas regiões mais sombrias de suas personalidades. Pois, como afirmou certa vez o pesquisador e crítico da mídia Joan Fer­res, “se o lixo seduz é porque remete inconscientemente o espectador às dimensões mais obscuras de si mesmo […] porque atua como espelho[!] inconsciente das zonas mais turvas do próprio psiquismo”.
A criação de mecanismos vitimários, que não é exclusivo do espetáculo, lhe vem muito bem a calhar, como o faz com a religião. Por esses meca­nis­mos, os alvos, ou objetos, da violência são apresentados como sendo a razão dos males da sociedade. Assim respon­sabilizados, é possível concordar com a sua destruição. Ocorre, então, a transformação de uma pessoa, grupo, ou figura, em um monstro que precisa ser exterminado. Nesse ponto, eleito o bode expiatório, as pessoas podem saciar sua fome/sede de sangue sem se sentirem culpadas por isso. Não se faz necessária justificativa melhor para o ataque aos inimigos da fé.
Para a indústria espetacular, a grande constatação é a de que “a crueldade vende”. O produto disso, como constatam os estudiosos da mídia, é que as desgraças humanas se converteram numa das principais moedas de troca no mercado televisivo, no qual uma das principais transações consiste na comercialização da dor. Nas metonímias espetaculares, com que facilidade as personagens espetaculares desferem golpes, socos e pontapés, disparam tiros, destroem carros, explodem casas, torturam e são torturados e, no final, saem realizados e satisfeitos ficando assim justificado o uso da violência.
Como o que é bom para a mídia, parece ser bom para certo segmento religioso, pelo menos para a parte mais ambiciosa deste, vê-se o mesmo tipo de incremento trágico-violento no discurso e na prática religiosa contemporânea.

Conclusão
Quando gente de igreja se queixa da violência, principalmente quando se vêem vítimas da violência urbana, não se dão conta de que nós mesmos, historicamente, somos “fiéis” e incansáveis promotores desse espírito de violência. Basta, para isso, ler criticamente a nossa literatura religiosa, ou atentar para as letras dos nossos hinos beligerantes, ou os sermões agressivos dos líderes religiosos.
É esse caldo cultural que banha a nossa fé. É esse substrato cultural que perpetua uma fé de força e de violência. Tendo consciência disso, não podemos em nome da fé, comba­ter a violência, posto que combater, por si só, já seria um ato de violência. Há que se buscar outras formas de resistência.
Os exemplos de resistência pacífica, de prática da não-violência, e de uma conduta pelo Espírito, estão aí a nos cercar como nuvem de testemunhas/mártires. Seria um verda­deiro milagre a mídia romper com seu compromisso com o senso comum, sedento de violência, e aderir ao bom senso da não-violência, ansioso por paz.

Abril/2009

Luiz Carlos Ramos (Doutor em Ciência da Religião, Prof. na Faculdade de Teologia da Igreja Metodista e na Univ. Metodista de S. Paulo)