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“RELIGIÃO E VIOLÊNCIA”
Ano 6 - Nº 25
Agosto de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigos
 
Novos grupos católicos exclusivistas e a violência simbólica: Rastros de reflexão
Por: Rodrigo Portella

Cada vez mais grupos religiosos cristãos têm capitaneado, em seus discursos, mentalidades, teologias e práticas de temáticas religiosas/simbólicas que operam conceitos como “conquista”, “batalha”, “posse”, “território”, “domínio”, “verdade”, a partir de uma concepção de fundo dualista e maniqueísta, que percebe a história – em seus diversos sentidos - como sendo definida por lutas urânicas entre Deus e o Diabo, entre verdade e mentira, bem e mal. Em determinados grupos católicos esta batalha tem se estendido ao interior da própria Igreja, em que grupos religiosos católicos interpretam que a Igreja Católica, em seu interior, é afetada por uma grande batalha, pois que o Diabo também estaria se servindo de certas tendências teológicas para enfraquecer ou tentar destruir a “barca de Pedro”. Outrossim, certos grupos – ou, ao menos, certos integrantes desses grupos – manifestariam, igualmente, suspeita, desconfiança ou rejeição a outras Igrejas cristãs – e, mais ainda, a religiões não cristãs – interpretadas como perigosos desvios da verdadeira fé cristã, entendida como monopólio católico romano.
O presente artigo apresenta breves recortes destas mentalidades. Baseia-se, fundamentalmente, em pesquisa de campo realizada junto ao grupo católico Toca de Assis, de inspiração neofranciscana, carismática e que se caracteriza, entre outras coisas, pela defesa de um catolicismo idealizado no passado, cujas principais referências são a época medieval e o catolicismo tridentino. Este grupo, da Toca de Assis, embora seja aqui a nossa referência básica, representa, a nosso ver, uma nova tendência católica, capitaneada também por outros grupos similares, muitos de inspiração carismática, que advogam a religião a partir de um referencial exclusivista que opera em lógica “bélica espiritual”, ou seja, em concepções de batalhas espirituais intra e extra catolicismo, no primeiro caso a bem de purificar o catolicismo de ataques que o Diabo faria à Igreja, e no segundo caso para exorcizar tudo o que não é compreendido como legitimamente católico segundo a ótica de tais grupos.
Chamamos, aqui, tal tendência de “violência simbólica”, ou seja, uma violência que, se não se traduz por atos físicos de violência, manifesta-se pela exclusão e desqualificação de quem pensa e age de forma diferente, no interior da própria Igreja ou em seu exterior. Quando se move uma “batalha espiritual” por considerar-se que aquele que pensa e age de forma diferente está a pensar e agir porque influenciado pelo Diabo, ou pelo mal – ainda que compreendida, essa pessoa, no papel de vítima -, se está, a nosso ver, a produzir um ambiente e concepção de mundo cujas principais formas hermenêuticas de leitura da realidade se dão através de conceitos como os de violência e intolerância em nível simbólico.

A desqualificação do “outro”
Se a identidade construída em certos novos movimentos – ou comunidades – católicas, enquanto defesa e retorno a um catolicismo de lastro exclusivista e totalizante, pode conferir, principalmente a jovens, segurança diante de um mundo sem âncoras definidas, ela tem, por suposto, outro lado: o de fechamento dentro da religião que leva a ver o outro, o diferente, como portador de mensagem falsa (SODRÉ, 2004, p. 22). Em entrevista, um membro de nova comunidade católica de vida e aliança, por exemplo, traduz um pouco do pensamento de algumas novas comunidades e movimentos católicos referente ao diálogo e convivência com as demais Igrejas cristãs, só para ficarmos no âmbito do cristianismo:

Eu vejo [o ecumenismo] como o papa ensina: a Igreja Católica não é irmã de nenhuma outra Igreja, é mãe e... quanto a ecumenismo e tudo mais assim tem que tomar cuidado para não se tornar um sincretismo, tipo vamos fazer uma religião com aquilo que une; não, se quiser vão se unir com a Igreja, com a verdade. A Igreja de Jesus é única, santa, católica, apostólica, acabou.

Ecumenismo, para determinados novos grupos católicos, é uma via de mão única: reconhecer a verdade toda inteira na Igreja mãe, a Católica, e a ela retornarem as demais Igrejas. Isto, aliás, não está tão distante do modelo de instituição total da Igreja Católica, quando não acrisolado pela visão teológica. Conforme Libânio: “Toda vez que a instituição é mais importante que a expressão da fé, o ecumenismo não é possível. Também conosco, católicos, quando nossa visão institucional se sobrepunha à nossa leitura teológica, não queríamos ecumenismo” 1.
Certo sacerdote, ligado a uma nova fraternidade de aliança católica, em uma pregação em evento da Toca de Assis, já deixa claro, lateralmente, o que pensa dos protestantes: “Os evangélicos só querem o poder de Deus, e se esquecem da fraqueza de Deus” 2. Se para certos novos grupos católicos de caráter exclusivista o diálogo interno com modelos eclesiais e teológicos é feito sob tensão e desconfiança, ele simplesmente inexiste para fora da Igreja. O tema “outras Igrejas” é ignorado por alguns destes grupos e, quando vem à tona, se revela como contraste à verdade: a Igreja Católica detém o magistério; os evangélicos não; a Igreja Católica tem a Jesus na eucaristia; os evangélicos têm mero símbolo 3; a Igreja Católica é fundada e inspirada por Jesus; as demais são oriundas de iniciativas humanas, de revolta contra a verdadeira Igreja, de insubmissão, quem sabe satânica. Por fim, a Igreja Católica tem o ápice da potência do mistério de Deus, isto é, Jesus vivo, no pão e no vinho: “Se tivesse aqui um monte de pastores evangélicos e perguntassem como Deus pode ser comida, eu diria: Deus é comida, é seu mistério, ou vocês não acreditam na potência de Deus?” 4
Se, conforme postula Berger (1985), o ecumenismo é, forçadamente, uma exigência do pluralismo religioso reinante nas sociedades modernas, e não fruto voluntário de afinidades/amizades – numa sociedade pré-moderna não existia, ao menos nos moldes de hoje, o ecumenismo -, a negação do ecumenismo, sua recusa radical, é a recusa do pluralismo, do reconhecimento de sua legitimidade. Mais, pois que no limite é a recusa de que se deva, ainda que somente forçado pelo pluralismo moderno e concorrência entre agências religiosas, usar a estratégia da diplomacia para se amainar disputas veladas. Novos grupos católicos de caráter exclusivista parecem ancorar-se de forma absoluta numa religião absoluta, como num dantes de um mundo uníssono, como o idealizado mundo medieval, o que a leva, evidentemente, a uma atitude mais distante do ecumenismo, de uma suposta preocupação em dialogar com o outro, pois o outro está aí para ser convencido de que só existe uma verdade. 
Assim, tanto para dentro como para fora da Igreja Católica, tais grupos revelam muito de sua identidade pela oposição, sendo tal postura regida pelo espírito que separa o legítimo do ilegítimo, dentro do espectro da concorrência simbólica (BRANDÃO, 1988, p. 39). “’Distinção’ significa: a divisão entre nós e eles (...) é claro como a água quem é ‘um de nós’ e quem não é” (BAUMAN, 2003, p. 17). Esta clareza é necessária para grupos que precisam construir e reforçar sua identidade ou que querem reforçar radicalmente a identidade de sua Igreja, tornando-a impermeável.
Querer um mundo “curado”, novo, um mundo restaurado – como parece ser a proposta religiosa católica doutrinariamente restauradora do tridentinismo e socialmente assistencialista de alguns novos movimentos católicos – implica em querer um mundo supresso do pluralismo que, por revelar versões diferentes da realidade, solapa uma versão única (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 58). É preciso, portanto, defender-se do pluralismo, interno e externo. Melhor é não saber dele. Se souber, então atacá-lo, denunciá-lo como cupim da barca petrina ou vício protestante. Não é sem razão que a Toca de Assis veta o estudo acadêmico aos seus, afinal, o contato com o estudo costuma ser o contato com o pluralismo do mundo e das ideias. É preciso preservar os filhos da santa Igreja da tentação pluralista de pensar e perceber o mundo. Pois que é perigoso fazer uma viagem ou realizar um encontro com quem não está na coextensividade de certo nomos e plausibilidade construída, sendo tais viagens e encontros um perigo à pureza da plausibilidade, devendo, por isso, serem evitados (BERGER, 2004, p. 63). Ainda mais em relação aos mais jovens. O outro questiona e ameaça a estrutura. Tende a ser linha cruzada na conversação do grupo. Em grupos sectários, o cuidado com o plural se manifesta no laconismo e reserva em relação aos de fora.
Eu disse sectário? Sim, pois sectário vem da palavra sica, pequena faca de cortar. Sectário é o que corta, divide, estabelece fronteiras bem definidas e intransponíveis. É de se salientar, quanto ao tema, que a desconfiança frente a crenças díspares foi pressuposto de cristianização no mundo antigo e medieval (CARRANZA, 2000, p. 178). Desconfiança que alguns novos grupos católicos exclusivistas sustentam no intuito de fixar fronteiras católicas intransponíveis e, assim, recristianizar ou reencantar a Igreja em seu catolicismo.  Neste ínterim é de se perguntar se tais grupos também não se aproximam de conceitos como o de “fundamentalismo” que, embora surgido em contexto protestante, ganha, sob as cores católicas, nomes como integrismo e conservadorismo, alicerçados no acento radical da infalibilidade do magistério e exclusividade do catolicismo, e crítico à modernidade (TEIXEIRA, 2008, p. 198-201). Fundamentalismos, posições rigoristas e intransigentes são reações à banalização das fronteiras interreligiosas (PACE, 1999, p. 38). Fronteiras que certos novos grupos católicos querem guardar bem.

O “próprio” em suspeita
Buscando pistas e uma síntese provisória para entender as relações de tais novos grupos exclusivistas católicos com a própria Igreja Católica, assim como a relação deles com a sociedade moderna pluralista, algumas anotações devem ser sublinhadas.
É importante notar que a Toca de Assis e grupos similares a ela cumprem, como organização eclesial, um efeito contrastivo. A Igreja Católica, como observou Benedetti (1994, p. 20) se articula, internamente, em “ecclesiolas”, pequenos – ou grandes – modelos de igrejas dentro da estrutura eclesiástica maior e oni-abrangente. E, a partir desta característica, grupos diferenciados, muitas vezes, nascem, se sustentam, crescem e encontram sua missão a partir de sua relação – explícita ou não – com os “outros”. Novas comunidades católicas de corte exclusivista buscam explicitar um modelo de Igreja enquanto contrastivo a outros modelos de Igreja, considerados menos fiéis ou ortodoxos.
Há a tendência, nesses grupos, como em todo grupo auto-considerado inspirado, separado e carismaticamente constituído, de marcar fronteiras entre os de fora e os de dentro, seja no âmbito civil como no eclesiástico. Weber (2002, p. 230) já notara que tais comunidades são marcadas pelo dualismo, “da moral do nosso-grupo e do grupo exterior”. Acontece que o modelo de communitas de tais grupos se imbrica e relaciona de forma quase harmônica (?) com o modelo de estrutura hierárquica da Igreja, pois que a legitima, a defende e pede sua bênção. É uma “anti-estrutura” – enquanto organização crítica a determinados modelos de Igreja - a serviço da estrutura. Quer articular crítica purgativa, acrisoladora e redentora.
Alguns novos grupos católicos constituem-se como consciência crítica e vigilante da Igreja por perceber que a mesma estaria sob a ameaça de influxos danosos da sociedade moderna, pluralista e secular, a infiltrarem-se pelas sacristias, altares e seminários. A partir da realidade da pluralidade societária e eclesial, crises subjetivas ou intersubjetivas de sentido têm espaço quando valores antes comuns e estruturados não são mais partilhados integralmente, não determinam o agir geral, nem ordenam uma realidade única (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 33 e 39). A Igreja parece não ser a mesma, diante de uma imagem romântica e idealista retrocedida e conferida a ela. Justamente diante deste contexto que se desenvolvem comunidades de sentido forte, que visam blindar seus membros da crise intersubjetiva, que deverá ficar lá fora, através do erguimento de muros protetores, seja pela lei (doutrina ortodoxa), seja pela desconfiança em relação ao “outro” (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 40 e 50). Sub-culturas religiosas – ainda que dentro de estruturas religiosas macro – servem tanto para minar as influências da sociedade circundante (BERGER, 2001, p. 11), ou do “mundo”, ou dos riscos modernos que ameaçam plausibilidades, como também são pára-raios dentro de uma estrutura que, como a católica, de tão ampla e diversificada, ao invés de significar riqueza cultural-religiosa, pode vir a significar anomia ou ameaça a uma identidade definida e rígida, bem cercada. Isto leva a grupos que, dentro da Igreja, quase se assemelham a seitas, por sua estrutura de contraponto, questionadora da Igreja e ligada a um líder carismático.
Pluralismo tende a desestabilizar auto-evidências desejadas, ordens unívocas de sentido e valores que, segundo Berger, sustentam a identidade (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 73). O pluralismo religioso da modernidade, a um tempo mina monopólios eclesiásticos ou de sentido e, alargando o mercado religioso, cria uma “religiosidade difusa” (FERNANDES, 2001, p. 69). Pois bem, alguns novos movimentos católicos exclusivistas pretendem combater sentimentos religiosos difusos ou não ortodoxos. Para eles interessam não sentimentos religiosos pessoais, mas a conformação a um único sentimento religioso que se quer adequar a uma única verdade religiosa. Dentro do espectro do pluralismo religioso – e por causa dele – se reforça um discurso de institucionalização exclusivista que rejeita as misturas religiosas e prega a fidelidade à ortodoxia institucional (MARIZ; MACHADO, 1998, p. 25) . Alfredo Teixeira (1997, p. 103), seguindo o pensamento de Hervieu-Léger em Vers un nouveau christianisme?, aponta que tais novos movimentos dentro do catolicismo se encontram dentro do espírito de uma “cruzada Ratzinger”, como forma de reconstituir uma catolicidade e unidade idealizadas diluídas no discurso e prática da Igreja que se queria e se quer aberta ao mundo.
A partir destas e de outras características já vistas anteriormente poderíamos encaixar tais comunidades e movimentos no modelo sugerido por Libânio (2002, p. 77), da religião que se cerra perante a cultura moderna e pós-moderna com atitudes agressivas contra ela, em uma posição de cruzada neoconservadora. Em parte a Toca de Assis e similares aí se encaixaria, embora também eles usem, e bem, dos meios e sensibilidades modernos e pós-modernos.
Refletindo um pouco sobre conceitos úteis a uma classificação formal de novos movimentos católicos exclusivistas , surge a palavra integrismo. Segundo Tomka (1999, p. 139), o integrismo religioso – ou fundamentalismo católico - seria um totalitarismo que “quer subordinar tudo à religião e ao religioso, e ao poder direto da Igreja”. E, conforme Araújo Santos (1990, p. 14s), uma das possibilidades diante de um mundo fragmentário e relativista é a de que indivíduos e grupos tenham uma atitude reacionária, que defenda uma lei natural, uma essência das coisas, a verdade imutável, à qual o intelecto deve aderir e adequar-se. Enquanto o fundamentalismo protestante se baseia na Bíblia, atitudes e comportamentos integristas, no catolicismo, se baseiam na tradição (ORO, 1996, p. 38). O integrismo nasce, na tradição católica, em fins do século 19, como propugnador da necessidade “de os católicos se manterem fiéis às tradições, hierarquia e docência católica contra os valores modernos que se consolidavam” (CALDEIRA, 2004, p. 101). O fundamentalismo católico consiste, assim, justamente em acentuar a infalibilidade do magistério, buscando a reafirmação do tridentinismo (TEIXEIRA, 2008, p. 200-201). Se quisermos interpretar, um tanto, a via católica de certas novas comunidades católicas através do conceito integrismo/fundamentalismo católico, que não se aplica in totum a elas, pode-se afirmar que, se existem atitudes ou posições de vida fundamentalistas é porque existe uma verdade fundamental a se defender ou a se impor, como absoluta e universal, o que gera, inevitavelmente, a intolerância com o diferente e plural (NEVES, 2004, p. 89). Para Libânio (1996, p. 11), o integrismo e os neofundamentalismos – entendidos como reforço de uma “cultura tradicional, da integridade da fé”- são respostas à pós-modernidade que planta liberdade, secularização e desfiliação religiosa.
Outra possibilidade de olhar para alguns desses grupos é o de relacioná-los à definição de seita. Rodrigues (2007, p. 164) resume com eficácia algumas das características presentes em um grupo de tipologia seita, que são: estrutura simples e pouco burocratizada; exclusivismo; monopólio da verdade; membros que se consideram “eleitos”; forte componente emocional; caráter contestatório em relação a valores e costumes da sociedade e da Igreja; retirada dos membros do grupo familiar para viverem exclusivamente para o grupo; pouco espírito de diálogo; expressões de fidelidade ao líder; busca da “perfeição” entre os membros; líder religioso tido como mensageiro de uma verdade incontestável. Mas por estarem, tais comunidades, vinculadas a um todo maior, a Igreja Católica, e também sê-la, o conceito “seita” não parece muito operacional, além de ser estigmatizador, conforme o senso comum. Contudo, novas organizações católicas exclusivistas buscam incentivar a conversão pessoal e a experiência de fraternidade grupal; têm forte apelo centralizador; experimentam fechamento, com tendência a se considerarem mais fiéis à herança religiosa matriz, mais católicos que outros grupos; têm uniformidade, através de estruturas fortes e bem definidas, independentes das culturas locais onde se inserem; e supervalorizam  certa espiritualização de tudo, com a desvalorização das dimensões e mediações históricas (SILVA, 2003, p. 300ss).

Quem se combate dento e fora da Igreja?
O articulador sobrenatural que se oporia a tudo que é bom, sagrado, verdadeiro, tem nome: o pai da mentira, o Diabo.

O Diabo atua de forma sutil, pelos prazeres, pela ganância, pelo poder, pelo ter (...) pelo questionamento da fé católica, que é um dos piores; a ação do demônio é... historiadores, filósofos, teólogos, estuda tudo, desculpa eu falar isso aqui na tua frente, estuda, estuda pra ser burro, questionar aquilo que a Igreja ensina a mais de 2000 anos. (membro de uma nova comunidade católica, em entrevista).

O Diabo, portanto, é aquele que, silenciosamente e sem se fazer perceber, manipula pessoas a questionar a fé. Na teologia liberal católica, particularmente após o último Concílio, o Diabo é substituído pelo mal enquanto termo genérico (COPEGUI, 1997, p. 327-339). Contudo, o imaginário sobre o Diabo, na RCC e nos novos movimentos católicos exclusivistas, retoma o mundo mágico e encantado medieval (CARRANZA, 2000, p. 199) que estaria a influir poderosamente sobre este mundo e sobre a Igreja. A antiguidade da Igreja e de sua doutrina também é acionada como indicador de verdade a ser crida e preservada contra o inimigo da racionalidade moderna. O apelo ao tempo de existência da instituição, como legitimador de seu ensino e de sua própria existência, enfim, de sua autoridade, faz parte de uma das características fundamentais que visa à legitimidade da instituição diante de seus adeptos, ou seja, a historicidade, o passado, o longo período de tempo (BERGER, 2002, p. 168). Não é a crítica acadêmica que pode questionar os ensinamentos eclesiais tidos como eternos. Aliás, isto não só é considerado demoníaco como, muito humanamente falando, burrice.
O estudo – inclusive teológico – e a aliança entre Igreja e sensibilidades modernas e seculares, são considerados uma mistura explosiva: explode a Igreja, o mistério, a fé. “Hoje, parece, os cristãos estão misturando aquilo que é santo, que é da Igreja, com aquilo que é secular, mundano” (LETTIERI, 2002, p. 36). Como impedir esta mistura? Como lutar contra ela? Valei-me, São Miguel! Sim, São Miguel Arcanjo, anjo guerreiro, que derrota o Diabo, colocando-o, na iconografia católica, abaixo de seus pés, é cultuado de forma especial em alguns desses novos movimentos católicos. Ora-se bastante a São Miguel Arcanjo. A sensibilidade religiosa de alguns desses movimentos é, em muito, devedora da devoção a anjos e santos. Indicando a devoção a São Miguel Arcanjo e ao “mistério da batalha espiritual” (Revista Toca, n. 38, p. 2), – cujo ícone é o anjo Miguel – algumas dessas novas comunidades buscam combater, através da oração que invoca o anjo, a diluição do mistério e da fé na Igreja.
Ao valorizar, ou super-valorizar, o mundo angélico, tanto dos anjos bons como dos anjos caídos, percebe-se que alguns desses novos movimentos católicos se cobrem de uma estrutura mitológica como base da fé e do mistério. Entendo, aqui, como estrutura mitológica, uma visão de mundo em que forças sagradas estão continuamente a permear, influenciar e dirigir os humanos e a sociedade (BERGER, 2004, p. 47). Ademais, a supervalorização que dão aos mediadores, seja o arcanjo Miguel ou os padroeiros, aponta para o modelo de “religiões que cultuam santos como modelos de conduta (...) [e] sistemas ideológicos que preservam a memória dos heróis e mártires encontram um caminho fecundo para seguir iluminando o caminho das novas gerações” (BINGEMER, 1998, p. 86). Quando faltam heróis modernos, no campo da política, dos ideais; quando desaparecem ideologias e sonhos comuns, e se instala a incerteza e o risco na sociedade (e na Igreja), entram os antigos heróis que oferecem modelos de vida seguros e exemplares. Assim, há, em uma sociedade e Igreja marcadas por incertezas, a volta a projetos de neocristandade e teocracias (AZZI, 2008, p. 164).
O sagrado, o sacrossanto, o mistério e o sobrenatural dão o tom católico em tais movimentos. Tudo aquilo que é suspeito de ferir ou diminuir esse dossel é denunciado e rejeitado. “Não entrem na onda feminista, sejam mulheres segundo Deus”, diz o Pe. Roberto, fundador da Toca de Assis (Revista Toca, 2005, p. 6). Teologias contemporâneas e questões contemporâneas que fujam a paradigmas tradicionais ou idealizados como tais são tidos como grave ameaça à estrutura sagrada da Igreja e, mesmo, à vivência secular.
Para o combate a tudo que não é interpretado como legitimamente católico, surge a batalha espiritual – com todas as novidades modernas e pós-modernas que traz em seu bojo. É um conceito bélico que vê a história e a Igreja envolvidos nas lutas entre Deus e o Diabo, lutas que se tornam empíricas e nas quais os membros de muitos desses novos movimentos percebem estar envolvidos. Não deixa de recuperar, a chamada “batalha espiritual”, de forma nova, a antiga tradição bélica do catolicismo de modelo cristandade (AZZI, 1993, p. 114). Portanto, nas orações e ritos de claro sentido belicoso (contra o Diabo, contra o desvio), o que está em jogo não é só uma identificação vicária com o Deus que luta contra as trevas; mas o lastro da guerra, da conquista de territórios espirituais e vitória sobre o inimigo oculto. E também vitória sobre os inimigos declarados: dantes os mouros; agora sobre as forças que fazem com que se abandone o catolicismo ou que se tenha posturas pouca ortodoxas nele.
O tom beligerante, que sempre vê potenciais inimigos em tudo que não é explicitamente católico, conforme certa interpretação do que seja o catolicismo legítimo, é constante em muitos novos movimentos católicos exclusivistas, indicando que inimigos podem ser todos em potencial, pois, conforme o Pe. Roberto, fundador da Toca de Assis, “o apocalipse é aquilo que já foi e o que acontecerá. Naquela época era o império romano. Hoje, são outros impérios, outras realidades” (Revista Toca, n. 45, p. 5). A teologia da batalha espiritual também é, assim, um elemento de expressão anti-sincrética (MARIZ; MACHADO, 1998, p. 26). Se dantes a cruz era instrumento de conquista militar físico-territorial – embora também de almas, em tal conquista, num viés religioso (AZZI, 1993, p. 117) – hoje a ênfase é a da conquista de almas – mas que também tem, é claro, repercussões territoriais (re-conquista do espaço católico, dentro e fora da Igreja).
Contudo, até aí, embora de certa forma nova, membros de algumas dessas novas organizações católicas estão sintonizados com determinada tradição mística da Igreja, de monges e santos que, através de jejuns, penitências e sacrifícios, sentiam a disputa, neles ocorrida, entre os reinos da luz e o das trevas. Tal tradição tem início com os monges do deserto, mais especificamente com Santo Antão, que lutava intrepidamente com o demônio, no deserto, lugar da morada dos demônios (LABOA, 1999, p. 54-55).
A Toca de Assis, por exemplo, é identificada por leigos como um “grande exército de Cristo” (Revista Toca, n. 60, p. 6). Um exército que, ao contrário do medieval exército dominicano e do renascentista exército inaciano, que combatiam - cada um a seu turno -, a hereges cátaros e a hereges protestantes, combate nos “ares”, no âmbito “espiritual”, místico – no sentido não material do termo – os males modernos, ou melhor, o Diabo que, através de suas criações modernas continuaria a fustigar a barca de Pedro. Por outro lado, se é verdade que o Diabo é considerado o grande artífice da Igreja que sofre sob frieza e abandono da fé, também é verdade que os sacerdotes que caem nas artimanhas demoníacas e os leigos que, idem, são enredados pelo Diabo são, de certo modo, co-responsabilizados pela decadência da fé, da ortodoxia, da Igreja e, consequentemente, por males no mundo que se distancia de Jesus. Afinal, é de conformidade com as religiões de veio profético que muitas das desgraças do mundo estão ligadas ao pecado como ofensa ou descrença no profeta ou Deus e seus mandamentos (WEBER, 2002, p. 193).

Concluindo
É de se chamar à atenção o fato de que, como no catolicismo bélico de outrora, na sociedade competitiva de hoje as pessoas vivem constantemente uma atmosfera de disputa, de vitórias de uns e derrotas de outros. Assim, como para o povo de Israel no Antigo Testamento, “numa sociedade guerreira, emerge a divindade autoritária e militar” (MAGALHÃES, 2008, p. 125). Não é sem razão que o arcanjo São Miguel, de armadura e espada a subjugar o Diabo, é um dos grandes ícones inspiradores desses movimentos. Como aponta o historiador José Murilo de Carvalho (2008, p. 25), a respeito da formação da identidade de um povo ou grupo, “guerras são poderosos fatores de criação de identidade”. Conquanto o eminente historiador se referia a guerras empíricas, pode-se fazer uma leitura semelhante quanto às guerras simbólicas, ou “metafísicas”, chamemo-las assim, que para os que nelas crêem são até mais reais e dramáticas do que as guerras empírico-históricas, pois mesmo influenciariam as pessoas para as tais. O que quero denotar, no entanto, é que a guerra espiritual reforça a identidade de grupos. Se os jesuítas, no passado, tiveram a alcunha de “soldados de Cristo”, não seria de todo injusto dizer que certos grupos religiosos atuais a combater em uma batalha espiritual nos ares podem ser denominados de soldados ou exércitos de Deus. Quando se luta contra um inimigo, se reforçam as noções de quem é quem, de fronteiras e de identidade de um grupo.

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Anotações pessoais sobre pregação sacerdotal colhidas no Toca Rio, em 06/07/08.

O Padre Roberto Lettieri, fundador da Toca de Assis, afirma que “ninguém pode ser mãe de uma coisa, ninguém pode ser mãe de pão, de um simbolismo. (...) A Virgem Maria é a mãe do Santíssimo Sacramento” (Revista Toca, n. 30, p. 3). Aqui a afirmação da presença real de Jesus na eucaristia ganha, como reforço, outro ícone de identidade católica: a virgem Maria.

Anotações pessoais colhidas de pregação sacerdotal no Toca Rio, em 06/07/08.

Contudo é interessante notar o paroxismo da questão: pessoas escolhem ser não plurais de modo pluralista.

Entretanto é preciso frisar que tais organizações não se esgotam ou se enquadram perfeitamente em conceitos bem definidos e fechados.

Rodrigo Portella (Doutor em Ciência da Religião, Prof. do Depto de Ciência da Religião da Univ. Federal de Juiz de Fora, MG)