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“RELIGIÃO E VIOLÊNCIA”
Ano 6 - Nº 25
Agosto de 2011
Publicação Virtual de KOINONIA (ISSN 1981-1810)
_Artigo
 
Mundo, violência e Capeta Capital: homofobia e insanidade de um norueguês
Por: Jorge Atilio Silva Iulianelli

O mundo do medo e o medo do mundo se sobrepõem para além de um simples jogo de palavras. A mundialização do capital – ou do Cap(e)tal, como diz Gentileza, o profeta – faz com que os fluxos do sociometabolismo do capital controle mentes e corpos, sustente novas formas de reificação e nos faça ficar reféns de uma lógica em que o consumir se sobrepôs ao produzir. Ao fim e ao cabo, somos todos dispositivos dos mecanismos e engrenagens, os moinhos de gente – como dizia Darcy Ribeiro – que violentam nossa mente e corpo. A mesma lógica que rege as reações conservadoras contra a PL 122 é aquela que anima a insanidade Anders Bhering Breivik? Talvez seja demasiado atribuir a mesma lógica e insanidade a ambos, porém, certamente, o temor à diferença é algo que está num limite que os assemelha, senão os unifica.

A noção de pertencermos a um mundo e de sermos copartícipes do mesmo é próxima daquela de sermos membros da mesma espécie. Esse continente da espécie humana nos faz, também, ter a impressão de uma soberania que nos distingue das demais espécies de seres vivos, animais e vegetais. Essa visão retroalimenta a lógica determinante dos controles e reduções de todas as demais espécies de seres vivos em submercadorias, porque mercantilizadas por outras mercadorias – a própria espécie humana. O termo lógica está sendo usado aqui no sentido de racionalidade que orienta cursos de ação e determina modelos de operacionalidade num mundo. Este mundo que realizamos por meio de nossos que fazeres.

Há uma forma de relação do ser humano com as outras espécies que podemos afirmar de profunda violência. Entendemos que há normalidade em submeter as demais espécies a tratamentos vis, reduzindo-as a meras maquinarias a serem desmontadas para que aproveitemos de seus funcionamentos, como meio de tornar operativo os nossos próprios dispositivos. Imaginem as granjas de produção em larga escala de aves para abate e consumo, e todo o sofrimento que os galináceos suportam: seu confinamento, a intensificação de sua atividade reprodutiva, sua alimentação carregada de hormônios para que intensifique o crescimento e torne o abate mais rápido, enfim, seu abate com requintes de crueldade. Não tenho nenhuma intenção de fazer apelo a uma atitude vegetariana como conseqüência desse argumento. Porém, quero chamar atenção para nossa displicência em relação ao tratamento oferecido às demais espécies.

Numa sociedade desigual a crueldade é prato do dia. O Brasil é apenas um reflexo dessa sociedade mundial desigual, aqui há cinco mil famílias que detêm 48% do PIB – segundo M. Pochmann – e um contingente ainda imenso de pessoas que passam fome, e que morrem por doenças decorrentes da fome. Não é muito difícil fazer um esforço de reflexão para compreender que essa é uma raiz social das violências, vinculada àquela raiz filogenética – espero que quem leia possa partilhar essa crença. O que estou a dizer? Para aquelas 5 mil famílias e para os seus satélites, as maiorias dos despossuídos, são ou não mais uma outra espécie? Há menos de 200 anos a população afrodescendente vivia a escravidão no Brasil. O discurso que justificava a escravidão descrevia os afrodescendentes como coisas, peças. Eles tinham que ser desqualificados como gente, como pessoa humana, para que a consciência tranquilia (ou tanquilizada?) não se incomodasse com as “rubras cascatas” que jorravam das costas dos santos pelas mãos dos que aplicavam as chibatadas (como nos ensinam Aldir Blanc e João Bosco na linda canção).
É um modelo de universo de discurso e universo mental que sacraliza a manipulação do meio ambiente e das pessoas com vistas à reprodução social da lógica do consumo. Um consumo cada vez mais acelerado porque os bens não são mais duráveis. Aliás, o conceito de bem durável precisará ser alterado em Economia. A durabilidade não faz mais parte do ethos da mercadoria de forma alguma. A inovação tecnológica tem como conseqüência imediata o descarte, cada vez mais acelerado, de forma que aquilo consumido agora e que ainda poderia ter utilidade seja absolutamente desprezado em nome do novo produto que opera a mesma função.  A relação entre função, funcionamento e utilidade está abolida. O que vale é a relação entre aparência e inutilidade que implicou numa estetização perversa da economia.

É uma economia que funciona para manter os fluxos do capitalismo financeiro, numa espécie de cibernetização dos circuitos econômicos, para os quais os fluxos de pessoas e bens é absolutamente secundário (secundário? Estou eu a ser benevolente?). Os seres humanos são uma subespécie no mundo em que a espécie financeirizada é o Real. Há uma sacralização do Cap(e)tal que o diviniza, ele precisa ser adorado, precisa do seu Santíssimo, dos cofres bancários e paraísos fiscais, precisa de sua circulação livre – da liberdade suprema, a liberdade que não pode ser atributo humano, porque para o Capital os seres humanos precisam de vistos para sua circulação neste mundo, de limitações para seus fluxos migratórios.

Num mundo como este, discutir a liberdade do amor é algo absolutamente desprezível. Homoafetividade pode apenas ser um mecanismo a mais para distorcer as verdades que nos deixam confortáveis em nosso mund(inh)o; no qual a heterossexualidade se confunde com sexismo, machismo, e tantos outros preconceitos. Depois ficamos perplexos em como no Brasil, mesmo com o marco legal da Lei Maria da Penha, permanece a violência doméstica e sexual a crescer. Ainda bem que lideranças religiosas, como o Rev. Sérgio Andrade, produzem reflexões alternativas a essa voz comum que banaliza, aceita tudo e trata como parte da normalidade.  Porém, hegemonicamente para as lideranças conservadoras a sexualidade humana é vista como sendo mais um elemento de nossa biologia. Os gêneros são biologicamente determinados. Essa naturalização despreza tanto a construção social da realidade, inclusive da realidade sexual, como a possibilidade de diversas constituições do cérebro humano.  Estes são temas que precisam de outro desdobramento, abandono-os aqui para retomar essa reflexão sobre a construção social da subespecialização no mundo. Porém aqui, podemos afirmar que esse cristianismo homofóbico é de um fundamentalismo exclusivista, o não-eu precisa ser reordenado. Isso me faz pensar em toda a teologia do sacrifício como teologia do reordenamento.

Tinha um incômodo com a sustentação do discurso da matriz ocidental da lógica sacrificial em oposição à matriz semítica da lógica da gratuidade nas relações entre pessoa humana e Sagrado. Cheguei à conclusão que isso é um equívoco de interpretação, não se pode contrapor Abraão a Ifigênia, se não notamos a continuidade entre Abraão e Jefté. Outro dia recordei que Jefté sacrificou a filha virgem, como parte da promessa à Javé (Jz 11, 35ss); o mesmo Javé que aceita a troca do sacrifício de Isaac pelo do cordeiro (Gn, 22). Deixando de lado a disputa exegética que argumenta contrariamente à realização do sacrifício da filha por Jefté, não podemos deixar de notar que os textos bíblicos permitem as duas situações, o sacrifício de outros seres da mesma espécie como reparação ou confirmação da ordem divina, e a abolição do sacrifício de seres da mesma espécie por aceitar a economia do dom. O que está em jogo? Há uma circularidade nessa relação com o Sagrado, na qual o sacrifício não é um elemento exógeno, nem um elemento desconectado da ambivalência do Sagrado.  Nem quero discutir a lógica sacrificial, nem a lógica da gratuidade. Notemos, porém, a ambivalência e apenas isso. A ambivalência permite a submissão do diferente, quer seja da mesma ou de outra espécie, e ela repara a hybris, a situação de confusão. A necessidade dessa harmonia, como eliminação do caos, provocado pela desordem trazida pelo estranho, nessa construção de visão religiosa de mundo, exige que exista eliminação do diferente com vistas à reparação da ordem (cosmos).

Eliminar o diferente é uma necessidade ontoteológica nessa compreensão. Essa eliminação do diferente se não é a mesma é muito semelhante à exigência do consumo do sempre novo, que está nessa construção da idolatria do Capital. Emerge aqui uma desconfiança (suspeita): a lógica que afirma uma economia verde, a partir dos centros do poder, pode ser apenas uma forma de limitar, conter, represar, a possibilidade de participação nos processos de construção de conhecimento e interação com um meio ambiente que não seja ameaçado, nem se transforme em ameaçador. Essa última intuição ainda está muito embrionária. Partilho porque pode auxiliar a entender como interessa ao comunismo liberal a economia verde. Zizeck chama de comunistas liberais aqueles que tendo ganhado muito com os processos de industrialização e da economia cibernética, fazem o discurso da responsabilidade empresarial com o meio ambiente o seu canto de Sibila e de Caribidis. Daí que Zizeck nos mostra a generosidade de um comunista liberal Bill Gates que afirma: não me preocupo com computadores, me preocupo com a fome no mundo. Heidegger analisou a preocupação em Ser e Tempo. Ele mostra que apenas quem está (des)ocupado se pre-ocupa, ou seja, a falta de ocupação autêntica produz essa atitude vã, quase que apenas uma curiosidade.

Estamos navegando demais? Não. Estamos refletindo que esta onda de violência de um norueguês cristão fundamentalista é tão nociva quanto a de lideranças religiosas homofóbicas e/ou temerosas de ceder à necessidade de uma ordem social que reprima comportamentos e atitudes que atentam contra a integridade física e psicológica de homossexuais. O norueguês insano agiu contra uma ordem política que diz sim à miscigenação e aos migrantes, que tem alguma tolerância com o universo islâmico na Europa – sim, alguma, porque a Europa fez parte das forças que legitimaram as guerras preventivas no Iraque e Afeganistão. Aliás, o insano norueguês desejava legitimar uma ordem eugênica e racista de nórdicos cristãos.

Neste ponto vale a discussão sobre o qualificativo de fundamentalista cristão ao insano norueguês. Talvez existisse um consenso ao negar o qualificativo de seguidor de Jesus Cristo, ainda que, também aqui, coubesse controvérsia. Zizeck faz uma reflexão interessante a respeito da sobredeterminação judaica e cristã. A primeira, reflete o filósofo eslavo, é claramente exclusivista, porém não reclama maior soberania de humanidade aos fiéis judeus. Ele faz uma hermenêutica perversamente divertida do texto paulino, não há mais grego ou judeu, homem ou mulher, escravo ou livre, todos são um em Cristo: esta unidade, interpreta ele, é da ordem da desumanização do diferente. Para os cristãos, os limites não são mais de um povo eleito entre outros povos humanos, idólatras. O limite é entre humanos e não-humanos. Todos são humanos se cristãos. É perverso, e é divertido, porque nos deixa antever em Kramer, do Maleus Meleficarum, em Savonarola, em Cortez, cristãos fundamentalistas. Eles são tão cristãos fundamentalistas quanto Anders. Porque esse cristianismo fundamentalista é desumano e desumanizador. Exige a eliminação do diferente, o diferente precisa ser exterminado. É tão cruel quanto a Soha, o holocausto nazifascista.

Os limites desse processo de construção de uma lógica da eliminação dos descartáveis estão ainda por ser descobertos. Porém, já assistimos à politização desse discurso que assegurou as guerras preventivas contra o Iraque, no pós Onze de Setembro, e contra o Afeganistão, mas, também, contra a Líbia. As regras e a normatividade do direito internacional ficam abolidas diante dessa lógica que atribui a descartabilidade a toda possibilidade de ameaça. É uma doutrina extremamente perigosa, porquanto legitima uma violência orquestrada pelo poder de um Estado soberano contra outros como se fosse em nome da defesa da ordem internacional. Uma defesa que assegura o uso das fontes de energia, de riqueza, em detrimento dos interesses mais diretos das populações locais – por mais que existam disputas políticas internas, não é legítima a defesa contra a ameaça do extermínio de populações. Lembremos de Ruanda! A Sérvia valeu mais que Ruanda?

Encerremos essas já extensas reflexões. O insano norueguês agiu com a máquina que a Noruega produz em altas proporções no mundo: as armas leves. A Noruega é um dos maiores produtores de armas no mundo. E a maioria dessas armas tem sido vendida para os países africanos. O inferno das crianças soldado tem muito que ver com as armas norueguesas. O insano norueguês não pensou nisso – talvez, até se alegrasse com o resultado desse comércio do mal. Porém, notemos bem, é a eliminação do diferente, do não-mesmo, que almeja aquele que se quer superior. Talvez, o insano norueguês tenha olhado para os jovens militantes do partido trabalhista como os policiais militares que mataram as crianças que dormiam nas calçadas da Candelária, no Rio de Janeiro, sementinhas do mal. Os homens de bem precisam eliminar as sementes do mal: crueldade necessária numa lógica de autoafirmação promovida por meio do temor da diferença. O Brasil é o quarto maior exportador e a Noruega é a 12ª maior exportadora de armas leves no mundo. Porém, diferente do Brasil, a Noruega não tem ao redor de 35 mil jovens, negros, pobres, entre 15-25 anos, sendo mortos por armas leves todos os anos, nos últimos 25 anos.

O insano norueguês e os fundamentalistas homofóbicos estão distantes, também, assim nos parece. Tão próximos, no desejo da eliminação do diferente, tão distantes numa prática física dessa eliminação. Ao menos, não temos nenhuma notícia que os fundamentalistas homofóbicos tenham participação no assassinato diário de, pelo menos, um homossexual, no Brasil. Esta é a violência que a PL 122 quer eliminar, e o debate público e necessário não pode ser recusado. A eliminação da violência é a garantia da convivência entre os diferentes. O debate público é a possibilidade do exercício de uma comunicação que produza consensos razoáveis, que possam ser aceitos por todos os envolvidos. Evidente que nenhuma lei que venha para prescrever preconceitos e atitudes perversas, que venha para sancionar punições a atos de violência física e psicológica, poderá ser usada para eliminar algum outro direito, como a liberdade de consciência e de expressão, por exemplo. Porém, nenhum direito de liberdade de consciência e expressão poderá se sobrepor à defesa da vida ameaçada, ou ao direito de ser do diferente. Este equilíbrio entre os direitos é o que se costuma chamar de justiça. E, como cremos, não poderá haver paz no mundo, sustentabilidade socioambiental, e direito de respeito à diferença, sem que haja justiça.

Jorge Atilio Silva Iulianelli (Assessor de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço para temas de direitos humanos - Dhesca, juventudes e questões ecumênicas; professor no PPGFilosofia da Universidade Gama Filho)